Crônicas dos Caídos - Capítulo 15
O fogo crepitava na lareira de pedra negra, que iluminava o pequeno cômodo. Caio, Carmen, e Eduardo sentavam-se no chão de madeira, próximos a ele, buscando se aquecerem com o seu calor, gratos por estarem a salvos da noite lá fora. Podiam ver os poucos pedaços enegrecidos de lenha desaparecendo enquanto as chamas os consumiam, o que lembrava Eduardo da horrenda visão dos monstros que os atacaram sendo queimados vivos, e do cheiro nauseante de seus corpos carbonizados. Fora algo que nem mesmo Theo conseguira explicar, ele apenas “sentiu que podia fazer”, pelo menos essas foram as suas palavras antes de desmaiar. Agora mesmo se quisesse não poderia explicar melhor estando acamado, enquanto delirava de febre em um dos quartos. Ele caíra de exaustão enquanto caminhavam até o vilarejo, após serem encontrados no rio depois do ataque.
Eduardo ouviu o som de passos vindos das suas costas. Ele se virou, para encontrar apenas um garoto de dez anos segurando uma bandeja com cinco canecas contendo uma bebida quente, podia-se ver pelo vapor que saia de ambas.
— Meu avô as mandou — disse o garoto.
— Obrigado Roque — Eduardo agradeceu, pegando uma das canecas.
Caio e Carmen pegaram outras duas. Roque fez uma espécie de reverencia com a cabeça e saiu com a última restante, em direção a um dos quartos. Havia dois na casa. Theo estava acamado em um, e Júlia estava em outro. Ela havia despertado a algumas horas, mas parecia desorientada, voltando a dormir logo depois.
— Foram aquelas bestas desgraçadas — Havia dito Thierry — Elas agarram as moças, e sopram um pó alucinante em seus rostos, que as fazem desmaiar, e então as levam para as suas tocas, onde as violam.
O simples pensamento disso acontecer a Júlia trouxe calafrios a espinha de Eduardo, seu estomago se revirou mais de uma vez, embora conseguisse controlar o conteúdo dentro dele. Ele não podia acreditar que estivera perto de perdê-la. Desde então, Eduardo ficara ao seu lado desde o momento em que chegaram naquela casa, porém, após algumas horas, foi vencido pelo cansaço, dormindo ao pé de sua cama. Leticia o convenceu a também descansar, e ficou ao lado de Júlia, observando-a.
“Eu deveria estar no quarto quando ela acordasse, não aqui”, pensou.
Refletindo no quão patética sua atitude era, ele bebeu um longo gole da bebida quente. “Melgráz”, como Thierry a havia chamado. Tinha um gosto forte, parecido com xarope. Com um sabor doce quando se espalhava pela boca no início, porém amargoso ao engolir. Ainda assim, ele se sentia completamente revigorado quando o calor chegava em seu estomago.
— Ah, faz tempo que não bebo nada quente, isso é realmente ótimo — Carmen sussurrou.
— É, não se compara a um bom café, mas ainda sim é muito bom — Caio falou antes de virar a caneca, bebendo fervorosamente o seu conteúdo.
— Sinto falta do chocolate quente que minha mãe fazia — Carmem murmurou — Meu pai e eu bebíamos toda sexta feira a noite. Teria sido o dia de bebê-lo, se não tivesse acontecido — Ela suspirou e bebeu o xarope com um olhar triste.
Após isso eles ficaram em silêncio por um tempo. Mais de uma vez Eduardo pensou em se levantar e ver como Júlia estava, mas suas pernas pareciam grudadas no chão. Era para ele estar lá ao lado dela, e não na frente de uma lareira tomando um xarope qualquer. Juntando toda a sua vontade, ele tentou se levantar, suas pernas cruzadas agora pareciam-lhe um complexo nó, do qual não conseguia desatar. Ele se remexeu, se erguendo do chão sobre uma delas, quase perdendo o equilíbrio enquanto se levantava. Caminhou com passos tão largos quanto seus pés trêmulos conseguiam, entrou no corredor que dava acesso aos quartos. O de Júlia era o segundo, então tinha que passar pelo que Theo estava. Ao se aproximar da sua porta, lhe veio o pensamento de primeiro checar como o amigo estava.
Antes de ele tocar a maçaneta, ambas as portas se abriram, tanto a que estava a sua frente. Do quarto de Júlia, saíram Roque e Leticia, enquanto da outra, a sua frente surgira um homem já avançado em idade, com cabelos grisalhos, e um rosto branco repleto de manchas marrons em suas bochechas e testa. Um cordão escuro com uma marca branca pendia em seu pescoço.
— Ah, caro Edwardo, veio checar como o jovem Theon está? — disse o velho Thierry. Por algum motivo ele não pronunciava seus nomes corretamente — Como já lhes disse antes, o corpo dele está apenas exausto, após algum tempo de repouso, ele deve melhorar.
— Ah, sim, certo — Eduardo respondeu, e então olhou para Leticia que o encarava com um olhar cansado.
— Ah senhorita Letízia, que bom vê-la, pedi que Roque a chamasse.
— Ele chamou — Leticia respondeu.
— Vejo que sim, bem eu estava a caminho da sala nesse momento para falar com todos vocês, e queria que estivesse presente também — Thierry explicou, acenando para que fossem para a lareira.
Leticia acenou com a cabeça, começando a andar em direção a sala.
— E a Júlia, como está? — Eduardo perguntou.
Leticia coçou a cabeça, antes de responder.
— Melhor, eu acho, ela acordou comeu os biscoitos e o suco que o menino trouxe, e dormiu de novo.
— Isso é normal rapaz — Thierry se interpôs — Muitas pessoas ficam em um estado letárgico por alguns dias após entrarem em contato com esse pó, malditas bestas — Ele fez uma carranca de menosprezo, antes de sua face voltar a sua calma habitual — Mas deixemos isso de lado por agora, vamos — Estendeu a mão. Gesticulando para que Eduardo o acompanhasse.
Eduardo olhou para a porta do quarto em que Júlia estava, suspirou, e caminhou de volta para a sala da lareira.
Chegando lá, Thierry sentou-se em uma poltrona acolchoada, com Roque ao seu lado, enquanto Eduardo e Leticia se acomodaram em duas cadeiras ao lado da janela que ficava de frente para a lareira. Caio e Carmen continuavam sentados no chão, de frente para o fogo.
Eduardo olhou para fora, onde podia ver as luzes cintilantes das outras casas brilhando em meio a noite escura, e ao longe, pontos claros que julgava serem tochas, grandes o bastante para serem vistas de longe, penduradas no topo das paliçadas de madeira, erguidas nas extremidades do vilarejo. Algumas se moviam de um lado para o outro, provavelmente sendo seguradas por guardas.
Sua atenção foi chamada de volta para dentro ao ouvir a voz de Thierry.
— Bom meus caros, os reuni aqui pois creio que seja melhor conversarmos sobre vossa situação nesse momento — declarou ele.
Eduardo virou seu corpo na direção do velho, querendo prestar atenção no que ele dizia.
— Situação? — repetiu Caio.
Thierry confirmou com a cabeça antes de voltar a falar.
— Não comentei nada pois não me pareceu apropriado, uma vez que dois de seus companheiros se encontravam em situações tão lamentáveis, e, pela boa fé que tenho em Ellday, os acolhi em minha casa.
— E nós agradecemos senhor — Eduardo respondeu no tom mais respeitoso que conseguiu, sentindo-se grato pelos anos que sua mãe passou, lhe educando para demonstrar respeito aos mais velhos.
Thierry continuou.
— Vivi muitos anos meus caros, muitos deles próximo as margens daquele rio, e nessas terras verdes, e, em todos eles, nunca vi pessoas como vocês.
Caio levantou uma sobrancelha.
— Pera, como assim “como nós”? — disse claramente confuso.
Era verdade, Eduardo percebeu.
Quando ele os encontrou, na outra margem do rio, passou um tempo considerável apenas os observando, antes de finalmente resolver ajudá-los. O homem os guiou até um lugar propício a atravessarem, e quando chegaram ao outro lado da margem, ele segurava um machado, e sua face gritava cautela, que depois fora substituída por um olhar de perplexidade, e então preocupação ao ver o estado Júlia. Roque, que ficara o tempo todo ao seu lado, lhes dava olhares curiosos. Outras pessoas por quem passavam também. Para ser mais preciso, era para as suas roupas que estavam olhando. Tanto Thierry e Roque, como eles, usavam camisas de tecido grosso e com uma aparência rudimentar. Em contraste aos suaves tecidos do qual as fardas de Eduardo e os outros eram feitas.
— Como devo explicar — Thierry pôs uma mão sobre queixo — Como acabaram em tal situação? De onde vocês são?
Eduardo se remexeu desconfortavelmente em sua cadeira. Viu Caio o encarando, como se estivesse pedindo para que ele inventasse qualquer coisa. “Dá um tempo, eu não sou o Theo, não posso inventar uma mentira em dez segundos”, pensou. Sem saber o que olhou para frente, onde encontrou os olhos de Leticia o encarando claramente sem saber o que fazer.
— É que… bem… — Eduardo tentava falar algo em resposta.
— Nós nos perdemos… — Carmen respondeu — Estávamos viajando e tentamos atravessar aquela floresta, mas quando nos demos conta, não sabíamos mais por onde ir. Ficamos dias assim.
Quando Carmen terminou de falar, Eduardo olhou para Thierry, procurando saber que expressão ele fazia, mas tudo o que viu foi uma cara de espanto.
— Vocês… atravessaram a floresta de Gauss? — perguntou ele, com a boca aberta.
Seu rosto estava branco, os olhos estavam arregalados, e Eduardo podia ver gotículas de suor escorrendo por sua testa.
— Como? Por quê? Por que fizeram uma loucura dessas?
Ele pôs uma mão na cabeça, como se aquilo fosse demais para acreditar.
— Como assim? — Leticia perguntou.
— Vocês não sabem?
Thierry provavelmente entendeu a falta de respostas como um não. Ele se endireitou em sua poltrona, olhou para as suas mãos, respirou fundo, e então começou a explicar.
A floresta na qual haviam acordado, era a floresta de Gauss, aparentemente era a maior do reino, ou algo assim, começando nas margens de algum rio, e continuando até os “corredores rochosos” como Thierry os havia nomeado. Ele parecia ter a necessidade de explicar tudo em detalhes, o que foi um tanto enfadonho. Supostamente, tais coisas eram de conhecimento comum, mas era difícil para Eduardo acompanhar, tendo que algumas vezes fingir que estava entendendo. Pela cara dos outros, eles também não estavam entendendo muito. Thierry continuou explicando até chegar ao motivo de sua perturbação. Aparentemente ninguém até hoje conseguira explorá-la, ou sequer atravessá-la ao todo, e muitos poucos dos que tentaram retornaram com vida. Então quando Carmen dissera que eles o haviam feito, isso o surpreendeu.
— Como vocês conseguiram sobreviver? — Ele perguntou ainda perturbado.
— Nós… não atravessamos — Eduardo começou a falar, tomando cuidado com suas palavras — Entramos nela após dias de caminhada, e acho que andamos em círculos desde então.
— Mas vocês devem ser, ou bem competentes, ou muito afortunados, se conseguiram durar tantos dias — A face de surpresa de Thierry não afrouxara — Não, pensando bem, é claro que seriam, julgando pelo que vi no rio, sim.
Eduardo não sabia o que responder, ele mesmo não sabia o que havia acontecido no rio, nem como saíram de lá com vida.
— Desculpe senhor, mas estamos exaustos, e não acho que estou pronta para lembrar disso. Foi… horrível — Carmen disse com olhos tão assustados quanto um filhote de gato.
— Ah, sim, sim, desculpem-me, foi indelicado de minha parte, mas bem, agora que discutimos esse assunto, vamos jantar — Ele se levantou — Há uma bela refeição quente na mesa, deve revigorá-los depois de tantos dias naquela floresta escura.
A exceção de Júlia e Theo, todos se sentaram a mesa. O jantar era uma ave assada, muito parecida com uma galinha, se não fosse pelo par adicional de asas em suas costas. Pães, queijos, alguns cremes, e molhos de variadas cores, foram espalhados pela mesa. Tornando-a mais atraente. Thierry fechou os olhos, realizando um sinal de reverencia com as mãos, e realizou uma espécie de oração, Roque o imitou, em silêncio. O gesto fez com que Eduardo se lembra-se de sua mãe, que sempre reunia a família em volta da mesa para rezar, dessa mesma forma. Ele engoliu algo preso em sua garganta e baixou a cabeça em sinal de respeito, assim como Leticia. Caio e Carmen se limitaram a observar tediosamente o velho homem, esperando-o terminar a sua prece. Após isso, eles finalmente deram início a refeição.
Todos avançaram sobre a comida, como era de se esperar de pessoas, que a muito tempo não comiam nada além de frutinhas. Caio, sem cerimonias, arrancou uma das asas do suposto frango, e o mergulhou em molho laranja que estava próximo. Leticia passou um creme em um pedaço de pão, cortou algumas tiras de queijo, e o pós dentro, criando um sanduíche, que pareceu gostar. Enquanto Carmen que petiscava de tudo um pouco, provou um molho vermelho, fazendo uma careta de dor logo em seguida. Thierry riu ruidosamente, enquanto tirava um grande pedaço do peito da ave. O pássaro em si, tinha um gosto levemente parecido com o de frango assado, porém mais amargo e um tanto mais ensosso em comparação ao sabor que Eduardo lembrava.
Ele passou um pedaço de pão em alguns dos cremes espalhados pela mesa, curioso sobre os seus sabores. Cada um dava uma sensação diferente em seu paladar. Um lhe lembrava o gosto da mostarda. Outro era semelhante ao molho de tomate. Havia também uns que eram mais picantes. Como também cremes mais doces. Ele acabou se saciando apenas nessa degustação.
Pedindo licença ao dono da casa, ele se levantou da mesa, deixou a animada sala de jantar para trás, e caminhou em direção a lareira, onde o fogo começava a diminuir, deixando o cômodo um tanto mais frio do que antes. Lá fora as luzes haviam diminuído, deixando o mundo um tanto mais sombrio.
Sem muito o que fazer, ele se voltou para os quartos, parando em frente ao quarto de Júlia. Ele lentamente abriu a porta, produzindo um rangido horrível, que continuou até que ela terminasse de se mover. Se preocupou que o barulho a incomodasse, mas a garota parecia dormir calmamente. Ele se sentou ao lado da cama observando-a. Estava escuro, a vela que deveria iluminar o quarto havia se apagado, então não podia ver as belas e habituais maçãs rosadas de seu rosto delicado. Sentiu um calor em seu peito, enquanto um sorriso se formou em seus lábios, que se desfez quando se lembrou da visão dos goblins a arrastando para dentro da floresta, sem que pudesse fazer nada para os impedir. Ele apertou seus punhos sentindo-se inútil.
Um som vindo da cama o tirou de seus pensamentos. Júlia começou a se remexer de forma agitada, gemendo de forma desconfortável. Antes que Eduardo pensasse no que fazer, ela ergueu seu torço completamente, o encarando, com seus olhos escondidos pela escuridão.