Crônicas dos Caídos - Capítulo 16
Era uma manhã fria, temperada pelo doce aroma de café esquentado no bule. O qual enchia a cozinha. Júlia estava sentada na mesa, cantarolando, enquanto preguiçosamente passava um pouco de requeijão no pão de forma a sua frente. Sentado em frente a ela, seu pai mexia no celular, reclamando de qualquer coisa que lia com pequenos murmúrios. Sua mãe pôs a garrafa com café recém feito em cima da mesa, e se afastou de volta para o fogão. Parecia uma cena que já vira uma centena de vezes, mas havia alguma coisa estranha.
— Já decidiu o que vai fazer quando sair da escola? — A pergunta veio de forma súbita.
Júlia olhou para o seu pai, que havia tirado sua atenção do celular, e agora a encarava com uma expressão mal-humorada, que parecia ter sido esculpida em pedra.
— Não — respondeu —, não pensei muito nisso ainda.
Ele pegou a garrafa de café e se serviu.
— É melhor decidir-se logo, um ano se passa rápido — Deu uma mordida no pão e continuou a falar enquanto mastigava — O rodrigo entrou na faculdade esse ano, e ele se preparava para o vestibular desde o primeiro ano. Deveria se preparar também.
— Eu… estou — Júlia respondeu, misturando leite gelado a café fervente no copo.
Ela o levou a boca, fazendo uma careta amarga. Fazia uma semana que sua mãe decidira não mais colocar açúcar no café, e ela ainda não tinha se acostumado a pôr.
Após algum tempo seu pai se levantou, falou algo para a sua mãe, e saiu para o trabalho.
“Ele não a beijou”, Júlia percebeu.
Ela se deteve na mesa por mais algum tempo, ainda faltavam quinze minutos até que precisasse sair. Sua mãe então se sentou na mesa, e soltou um breve suspiro.
— Que foi mãe? — Júlia perguntou.
— Nada, só estou pensando nas coisas.
— É algo a ver com o meu pai?
Não era difícil de adivinhar quando os dois tinham um problema, uma vez que deixavam de lado certos gestos de afeto.
Sua mãe dobrou os cantos dos lábios, e a encarou com um olhar de censura. Júlia entendeu bem o recado.
— É melhor sair, ou vai se atrasar.
— Tá bom, benção — respondeu, pegando a mochila aos seus pés e levantando-se da mesa.
— Deus lhe abençoe.
— Ah — Ela parou em frente a porta da cozinha — Vou chegar um pouco mais tarde hoje.
— Por quê? — Sua mãe quis saber.
— Vou na casa do Jonas para fazer um trabalho.
Sua mãe levantou uma sobrancelha.
— Sozinha? — perguntou.
Júlia sentiu um calafrio tremular em seu estômago.
— Não, alguns colegas da minha sala vão comigo — respondeu.
A expressão de sua mãe pareceu mais aliviada.
— Certo, mas cuidado — disse ela —, não gosto que ande por aqueles lados. De todos os lugares, tinham de reunir naquela favela?
— É que outros dos meus colegas moram lá, então é melhor para eles.
Sua mãe respondeu com um suspiro de insatisfação enquanto espalhava requeijão dentro do pão que cortara. Pareceu-lhe que tinham encerrado a conversa. Júlia estava prestes a se virar, quando sua mãe a encarou novamente, no entanto havia algo em seu olhar, algo diferente.
— Vejo-te mais tarde, minha criança — sua voz soou mais rouca que o normal.
Assentindo, sem entender direito, Júlia se despediu e começou seu caminho até a escola.
Saiu pela pequena rua de calçamento, repleta de matos e ervas daninhas que dava acesso a movimentada avenida por onde seguia até a sua escola, que a essa hora da manhã estava extremamente movimentada pelo fluxo de pessoas se dirigindo até os seus trabalhos e escolas. Exceto que, não havia uma única alma viva na rua.
O céu estava nublado, as árvores que ocupavam o canteiro central da avenida se agitavam de forma irregular, porém Júlia não sentia qualquer vento, uma estranha neblina branca podia ser vista a distância. Ela caminhou pela calçada, onde pequenas lojas de todos os tipos deveriam estar abrindo naquele momento, no entanto, todas estavam fechadas. Tentou voltar para a sua casa, mas por mais que andasse, não encontrava sua rua novamente. Parecia ter desaparecido, não apenas ela, como todas as outras também. Olhou de um lado para o outro, vendo apenas cortinas de neblina a se aproximarem de ambos os lados da avenida, tão densas que não enxergava além delas.
Sentiu o coração tremular dentro de seu peito. Queria correr, fugir, mas não tinha coragem de adentrar o nevoeiro, que se aproximava lentamente. Então viu algo. Não, algo não, alguém. Uma figura sombria se movia pelo nevoeiro, aproximando-se dela à medida que aquele véu branco avançava em sua direção.
Ela se encolheu junto a parede de um dos prédios, com o nevoeiro formando um semicírculo ao redor dela. Sentia a sua respiração pesar, e suor frio pingava de sua testa. Lágrimas escorreram de seus olhos, enquanto via a sombria silhueta se aproximar, o qual parou, a pouco mais de três metros dela.
Ouviu uma voz, alta como um grito, porém soando como um calmo sussurro em seus ouvidos.
— Desperte emissária.
O nevoeiro avançou, sufocando sua voz quando tentou gritar de surpresa e desespero. Não sentia mais o chão sobre os seus pés, parecia estra flutuando em meio ao nado, até que sentiu seu corpo se mover, como se estivesse caindo, não, parecia mais que estava deslizando involuntariamente, como se estivesse em deitada em cima de uma piscina de gelo. Dava-lhe uma sensação calma no início, porém logo sentiu um grande desconforto em seu corpo, que parecia estar se contorcendo conforme se movimentava.
Tentou se mover, falar, berrar, gritar, qualquer coisa que não fosse ficar parada, mas nada acontecia. Então sentiu algo sobre suas costas, e rapidamente se levantou. Uma tontura atormentava sua cabeça.
Estava escuro, ela passou alguns segundos tentando entender onde estava. Algo se moveu ao seu lado, uma silhueta sombria. Ela guinchou, se encolhendo de medo.
— Júlia, tá tudo bem sou eu, estou aqui com você — escutou uma voz dizer. Era a de um garoto.
— Q… quê, é você? — perguntou atordoada.
“Sim, claro que ele está aqui”, pensou, afinal ele sempre estava presente quando ela precisava.
Sentiu sua mão ser tocada por
— Relaxa, sou eu, o Eduardo.
— Oh — deixou escapar, enquanto um sentimento estranho remexia o seu interior.
Inconscientemente ela recolheu sua mão, se desvencilhando do toque de Eduardo.
— O que houve, tá se sentindo mal? — perguntou ele, claramente preocupado.
— Não — respondeu — estou melhor, só… só tive um sonho estranho.
— Ah, tá certo.
Ele ficou em silêncio por um tempo. Júlia não podia ver o seu rosto devido a escuridão do quarto. Sua cabeça ainda doía, pensou se era por causa da pancada que recebera daqueles horrendos monstros. Ela se esticou, e sentindo os ossos de suas costas se estralarem, e respirou fundo, espirrando logo em seguida. O local tinha um certo cheiro de morfo que incomodava levemente o seu nariz.
— Desculpa — A voz de Eduardo cortou o silêncio como uma faca atravessando manteiga.
— Ãhn, pelo quê?
— Eu… aqueles monstros… — A voz dele falhou — Eu devia ter te protegido — Ainda que não conseguisse ver, Júlia percebeu o pesar em sua voz
Quando Eduardo os citou, a memória dos monstros acertando a sua cabeça e agarrando lhe veio à mente, causando calafrios em seu corpo. Podia sentir suas garras nojentas rasgando sua pele, e puxando seus cabelos.
— Foi culpa minha — Ele continuou a dizer — não devíamos… eu não devia ter te deixado sozinha.
— N… não foi sua culpa — Ela respondeu, após um breve período de silêncio, sua voz tremeu involuntariamente — Eu… — A porta se abriu, interrompendo-a, sendo atravessada por um homem carregando uma vela de cera, que trouxera luz ao quarto.
— Ah, vejo que despertou garota — O homem falou, fechando a porta após si. Júlia não se recordava de como ele se chamava, mas sabia que soava como algum nome europeu — Oh, o que houve Edwardo, não se sente bem?
— Não é nada senhor Thierry, estou bem — Eduardo respondeu, passando a mão sobre o rosto.
Júlia viu algo brilhar no canto de seus olhos, antes que ele os limpasse.
O homem encarou-o, não parecendo muito convencido de sua resposta, mas então voltou sua atenção para Júlia, lhe fazendo perguntas sobre o seu estado, e dando-lhe recomendações sobre o seu descanso e recuperação. Parecia uma espécie de médico. Eduardo, nada mais falou, permanecendo sentado no banco, quieto, até que o homem o convida-se a se retirar junto dele. Aparentemente era impróprio que Eduardo continuasse por lá, estando Júlia acamada naquela situação.
Após eles saírem, Júlia tornou a se deitar, olhando para o teto acima de sua cabeça. Não estava com vontade de se levantar, e nem tinha vontade de dormir de novo. Não se recordava do que acontecera após apagar, ou antes de acordar embaixo do teto de madeira que agora não conseguia enxergar. Letícia permanecera ao seu lado, com aquele típico olhar preocupado que tinha sempre que uma de suas amigas parecesse mal. “Ela tinha esse mesmo olhar na quadra, quando…”, ela os vira, se lembrou, acima dos degraus daquele templo estranho, os observando a distância. Lembrou-se, e sentiu um terror, maior do que mil monstros daqueles poderia provocar, percorrer o seu corpo.
“Eles estavam lá”, repetiu para si mesma de novo, “Fernando e seu irmão”.