Crônicas dos Caídos - Capítulo 17
— Acho que ele já dormiu — Caio sussurrou enquanto espiava o corredor pela porta entre aberta.
Eduardo assentiu, acendendo uma pequena vela, e a pondo em cima da mesa ao lado da cama em que Theo estava, agora, sentado, com as mãos sobre o rosto. Thierry passara quase uma hora conversando e contando histórias sobre a sua vida, e perguntando sobre os detalhes das deles, os quais ele teve o constrangimento de mentir diante do amigável homem. Apesar da falsidade de próprias palavras, ele se sentiu alegre, se lembrando das vezes que se encontrava com os seus tios e avôs nas reuniões de família. Após se dar por satisfeito, o velho homem se dirigiu até o seu quarto junto de seu neto, orientando Eduardo e seus companheiros a fazerem o mesmo.
Os garotos dormiriam no quarto em que Theo estava, e as garotas no de Júlia. Pareceu meio estranho para Eduardo que o homem lhes desse a confiança de deixá-los dormir em sua casa sem serem vigiados, querendo apenas que eles repetissem um juramento em nome Ellday, mas pensou que era assim que as pessoas agiam nesse mundo.
Caio pôs uma mão para fora e gesticulou. Pouco depois ele se afastou, abrindo a porta, e três garotas entraram no quarto.
— Que demora, pensei que nunca iam nos chamar — Leticia reclamou.
— Precisávamos ter certeza de que o velho dormiu — respondeu Caio se justificando.
— O que precisávamos tanto conversar? — perguntou Carmen, esfregando os olhos visivelmente sonolentos.
— Tudo hora mais — Theo respondeu de forma seca.
Carmen lhe deu uma cara de desdém em resposta.
— Gente — Eduardo chamou a atenção para si — Temos que falar sobre as coisas e decidirmos o que vamos fazer a partir de agora.
Ele sentou-se ao pé da cama, pensando em quais seriam suas próximas palavras.
— Não podemos ficar andando por aí sem rumo — disse —, precisamos saber mais sobre este mundo.
— Então, vamos só perguntar ao senhor Thierry — Caio sugeriu.
— Sim, e podemos dizer também que viemos de outro mundo e que nosso programa favorito na tv era o Domingão — caçoou Theo.
— Você assistia o Domingão? — Letícia perguntou surpresa.
Os outros encararam Theo, curiosos pela resposta.
— Quê, não, foi só um jeito de falar — Ele endireitou sua postura, se sentando com as pernas cruzadas sobre o corpo — O que quero dizer é que não podemos perguntar qualquer coisa de qualquer jeito.
— Como assim? Thierry me pareceu ser bem gentil, não acho que vai se importar de nos explicar — Júlia perguntou.
Theo soltou um suspiro cansado.
— Imagine que você está na sua casa, deitada no sofá, e um bando de gente aparece com roupas estranhas falando de um jeito que você não está acostumado, e perguntando coisas que são consideradas senso comum. O que você pensaria deles?
— Que são doidos — respondeu rapidamente Carmen.
— Exato — Theo apontou um dedo em sua direção — Já chamamos muita atenção, e isso é uma coisa que não precisamos agora enquanto ainda não sabemos de quase nada nesse mundo — Ele gesticulava ferozmente com as mãos enquanto falava.
— Caramba, você parece ter pensado em tudo — Leticia falou com um tom desdenhoso na voz.
— Acha que fiquei deitado nesse quarto dormindo o dia todo? Fui obrigado a pensar e raciocinar — Ele falou pondo um dedo na cabeça.
A garota revirou os olhos.
— Não chamar atenção você diz — Eduardo murmurou, recebendo um assentir de cabeça de Theo em resposta — Tá certo, não sei se entendi, mas então como faremos para saber algo deste lugar?
Théo se deteve, olhando para baixo em silêncio.
“Acho que o encurralei”, pensou Eduardo, satisfeito.
— A gente vê isso depois — ele respondeu.
Eles debateram um pouco sobre o assunto até acharem um plano de ação que agradasse a todos. Na realidade, apenas Eduardo e Théo falavam na maior parte do tempo, com Caio pedindo explicações de vez em quando.
— Tá gente, se foi só para isso que nos chamaram, eu tô voltando, é tarde e já tô cansada dessa conversa — Leticia declarou.
Carmen bocejou, quase como se concordasse. Júlia permanecera um tanto taciturna por toda a conversa, olhando mais para as mãos do que para outra coisa. Eduardo temeu que ainda estivesse zonza por conta do pó.
— Mas antes — Caio interveio — Precisamos saber de algo.
— O que? — Eduardo quis saber.
— O que caralhos foi aquilo Theo? Tu lançou uma bomba nos bichos.
Os olhos de todos se voltaram para Theo, que recebera a pergunta com um olhar pensativo em seu rosto.
— Eu não sei… apenas… eu só pensei que poderia fazer, quero dizer, estava na minha cabeça.
— Então você apenas quis e fez? — questionou Leticia.
Theo assentiu com a cabeça.
— Que foda — Caio falou animado — pode me ensinar a fazer isso também?
Théo estalou a língua.
— Nem sei direito como fazer isso, pra começar, e também, depois que fiz, me senti um pedaço de merda. Meu corpo estava tão pesado eu mal conseguia andar. Francamente espero nunca mais ter que repetir aquilo.
Ele esfregava seus braços com as mãos, como se para se acalmar.
— Tá, mas, sério, como você fez? — Perguntou novamente Leticia.
Theo revirou os olhos soltando um suspiro pesado.
— Desculpa gente, mas, eu tô por fora disso — Carmen falou — O que exatamente ele fez pra vocês estarem tão… perplexos?
— É, eu também não sei do que estão falando — concordou Júlia.
Eduardo explicou pacientemente os detalhes, deixando as garotas boquiabertas.
— Você explodiu aqueles monstros? — Júlia disse perplexa.
— Por isso que havia aquela mancha preta e o cheiro de queimado — Raciocinou Carmen consigo mesma.
Theo olhou para as próprias mãos, que tremiam.
— Não diria que os explodi… eu não sei ao certo o que fiz.
— Bem, não precisa pensar nisso agora — disse Eduardo —, o que importa é que você nos salvou ali cara — pôs uma mão no ombro do amigo — valeu.
Theo baixou a cabeça e expirou pesadamente.
— Mas sim Edu — Caio falou mudando de assunto —, onde você aprendeu a lutar daquele jeito?
A atenção de todos se voltou para ele, esperando por respostas. Ele mesmo não pensara muito sobre isso naquele momento devido a adrenalina que sentira. A lança em suas mãos parecia a si como uma extensão de seu corpo, sentindo que poderia movê-la da forma que desejasse.
— Não faço ideia, meu corpo apenas se moveu… como se eu soubesse o que fazer.
— Isso meio que não responde nada — Comentou Leticia.
— Você também arrebentou lá — Caio afirmou animado — Onde aprendeu aquilo.
A isso Leticia respondeu flexionando seu braço, exibindo um bíceps bem torneado.
— Nove anos de muay thai e academia querido — respondeu alegremente.
— Talvez… — Theo os interrompeu — não deixa…
— O que? — Leticia inquiriu.
— Não tenho certeza, mas… o que eu tirei do baú foi um cajado com um cristal no apoio de mão, e… bem…
— Fala logo garoto — resmungou Leticia impaciente.
Theo franziu o cenho, mas continuou a falar.
— Eu sei que é ridículo, mas, magos em rpgs geralmente usam cajados como o que eu peguei, e aquilo… aquilo que eu fiz, pareceu uma magia.
O silêncio pairou sobre o quarto, enquanto todos se entreolhavam pensativos, menos Júlia que parecia absorta em seu próprio mundo.
Eduardo refletiu sobre a dádiva que recebera. Era uma arma longa como uma lança, com uma lâmina semelhante à de um machado próxima a ponta. Já a havia visto em jogos de rpg, embora nunca a tivesse escolhido antes, então não sabia ao certo o seu nome.
— Talvez seja isso — falou — Talvez as coisas que achamos naqueles baús tenham nós dado habilidades ou algo assim.
— Mas elas sumiram — Caio apontou.
— Sim, mesmo assim acho que elas têm alguma coisa a ver com isso.
Eduardo olhou para as garotas.
— Meninas, vocês notaram algo de diferente?
Leticia olhou para baixou.
— Não tenho certeza — disse pondo uma mão no próprio ombro.
Outro soluço de Carmen fez com que todos sentissem o peso do cansado.
— Tá bom galera, acho que já tá tarde né — disse Eduardo — Garotas, é melhor voltarem ao quarto de vocês.
— Espera — Júlia pediu —, tem alo que tenho que dizer.
— O que? — Eduardo perguntou.
Seu corpo começou a tremer.
— Eu os vi… o… o Fernando… e o irmão dele.
Carmen soltou um fino ganido ao ouvi-lo. Leticia empalideceu.
— Quem? — Eduardo questionou, tentando lembrar aquele nome.
— O garoto que atirou em todo mundo na quadra — Júlia respondeu.
Eduardo engoliu seco, apreensivo. Onde? Aqui? Suas mãos gelaram, enquanto seu estomago começou a se remexer.
— Onde — Caio perguntou se aproximando bruscamente dela.
Júlia se retraiu, remexendo nervosamente as mãos.
— Naquela sala cheia de estátuas — respondeu — antes de sermos mandado para cá.
Eduardo suspirou aliviado.
— Então quer dizer que eles vieram também — Theo refletiu — Mas, irmão? O que tem o irmão dele?
— Havia outro atirador na quadra — Eduardo recordou.
Júlia assentiu.
Eduardo sentiu suas costelas doerem. Ainda lembrava do medo e terror que sentira, enquanto via seus amigos e colegas caindo um a um na quadra. Mas acima de tudo, se lembrava da raiva enquanto socava o rosto do desgraçado que os matara.
— Você viu para onde ele foi? — Theo questionou.
Júlia meneou a cabeça negando.
— Não, foi muito rápido, os portais apareceram e eu os perdi.
O ar em volta pareceu mais pesado, enquanto um clima de desconforto tomou conta de todos. Eduardo pensou em algo para falar, mas não conseguiu dizer nada. Apenas sentiu o tremor em sua mão, antes de transformá-la em um punho cerrado.
— Gente, relaxa — disse Leticia — Acham que vamos cruzar a esquina e dar de cara com eles? — ergueu as mãos em um gesto de desdém — Na boa, se duvidar nem vamos ver esse cara por aí.
— É, provavelmente — concordou Théo.
As expressões de todos se aliviaram, e clima pareceu mais calmo. Mas Eduardo continuou apertando os punhos.
— Provavelmente — repetiu ele, torcendo para que fosse verdade.