Crônicas dos Caídos - Capítulo 18
Ele acordou, amaldiçoando o som das vozes dos guardas que os vigiavam. Ao seu lado Túlio roncava ruidosamente. Jonas invejava tamanha facilidade para adormecer. Era custoso para ele cair no sono, passando longas noites em claro enquanto sentia o aperto do nó em suas mãos, que estavam presas em suas costas, amarradas junto aos outros prisioneiros. Sentia-se esgotado devido as longas caminhadas que fazia todos os dias, por caminhos irregulares, cruzando pântanos e ruínas lamacentas. Estava amarrado a outros prisioneiros, pela cintura, por uma grossa corda. Que era puxada por algum soldado quando este os achasse lento demais. Quase sempre um deles caia quando ocorria. Mas preferia o tormento de andar, ao de descansar, preso contra árvores bolorentas, paredes quebradas que poderiam desabar sobre eles a qualquer momento. Ou apenas junto às outras dúzias de presos, em uma roda no chão lamacento. Sendo importunado pelos inúmeros insetos que o faziam sentir saudade das muriçocas, que tanto o importunavam antes.
Dessa vez, após um longo dia de caminhada, tinham chegado a uma velha torre caída, o qual os soldados usaram como acampamento, enquanto eles foram amarrados junto a grossas árvores do pântano, sobre a água gélida. Uma pira queimava a alguns poucos metros, provavelmente para que os guardas os observassem. Via tochas sendo carregadas pelos soldados. Luzes fantasmagóricas movendo-se em meio a neblina. Ouvia as vozes dos soldados que os vigiavam, que ecoavam junto aos quase imperceptíveis sons do pântano. Desde que acordara em meio as ruínas junto aos outros percebeu que a sua audição melhorara de forma espantosa. Podendo ouvir claramente o que os presos nas outras árvores ao redor deles sussurravam entre sí. E até escutar as vozes distântes do acampamento dos soldados, como pequenos chiados em um rádio velho. Passava a maior parte da noite fechando os olhos e escutando, esperando que isso o ajuda-se a dormir.
— Ei Jonas, tá acordado? — Ouviu Leandro perguntar.
— Não.
— Consegue ouvir o que eles estão falando?
Jonas se concentrou nas vozes vindas dos guardas.
— Algo sobre como a água tem gosto de merda.
Leandro riu.
— Para mim tem mais gosto de mijo — disse ele.
— Talvez eles mijem na água antes de dá-la a gente — Jonas brincou, arrancando outra risada do amigo.
— Talvez.
— Dá para ficarem em silêncio — Eric murmurou — Assim vão acordar o Túlio.
— Ah tá, boa. O Túlio não acordaria nem com uma tijolada na cabeça — pontuou Leandro.
— Mas eu sim… Jonas, para de se mexer — resmungou.
Era fácil para os outros saberem quando um deles estava se mexendo. Toda a vez que um fazia isso, as cordas que os prendiam apertavam o resto. Mas havia um motivo para que Jonas se remexesse. Os guardas não estavam prestando atenção.
— Cara para com isso — protestou Leandro — Tu nunca vai se soltar.
— Se não tentar, nunca vou mesmo — retrucou ele, continuando o que estava fazendo. Até que suas mãos doloridas se cansassem.
— É inútil — falou Eric.
— Melhor do que não fazer nada — respondeu Jonas, tentando cutucar o amigo.
— Tá, gaste sua energia então. Vou poupar a minha.
Jonas suspirou, olhando para o escuro céu noturno acima. Que, como nos outros dias, não podia ser visto. Sem a mínima presença de lua ou estrelas. Não as vira, ou ao sol, desde que eles haviam chegado aquele mundo. Tudo o que existia acima de sua cabeça de dia era um nublado céu cinzento. Que a noite, parecia descer em forma de densas brumas.
Tanto ele, quanto seus amigos tentaram saber mais sobre onde estavam, mas os cativos eram comedidos, e os guardas os estapeavam se falassem sem serem pedidos. Percebra que escutar seus cochichos a noite era a melhor forma de descobrir as coisas. “Terras cinzentas”, foi assim que eles chamaram aquele lugar. Bem propício na opinião de Jonas. Eles estavam sendo levados para um mercado, Jonas ouviu os guardas conversarem entre si. Descobrira parte do que queria, mesmo que não o ajudasse a sair daquela situação.
Perto dele, alguém recitava, em voz baixa, uma prece familiar. Era uma senhora que aparecera junto a eles nas ruínas. Era corpulenta e um tanto pequena, com sua cabeça chegando no ombro dos mais baixos deles. Fora a primeira a ser pegue pelos soldados. Ainda possuindo um hematoma roxo em sua cabeça devido a pancada da empunhadura de uma espada. O outro homem, que viera com eles, tivera menos sorte. Tentou revidar, mas teve o corpo perfurado por lanças de três soldados diferentes. O que levou Jonas e os outros a se renderem ao ficarem cercados. As armas que eles haviam tirado dos baús desapareceram. Inclusive a sua espada, que possuía formato um tanto estranho. E uma flauta, que estava no mesmo baú.
Outros prisioneiros, ao redor, faziam o mesmo. Porém suas preces eram estranhas. Com nomes diferentes dos que Jonas era acostumado. Eram cativos desse mundo, dezenas deles, que também tinham sido capturados e presos. Por motivos dos quais ele ainda não sabia. Também não sabia para onde estavam indo. Jonas mesmo fora esbofeteado ao perguntar isso a um guarda.
“Claro que seria assim…”, pensou, “Afinal, tudo tem sido uma merda desde que ela apareceu com ele”. Sentiu um gosto amargo na boca, enquanto uma dor atacava seu peito, que parecia em tempo de se rasgar. Sempre era assim quando pensava nela. Tentou afastar aqueles pensamentos, dizendo a si mesmo que não valia a pena remoê-los.
Ouviu um som, parecido com o sibilar de uma cobra, vindo se outra árvore contendo mais cativos atados em cordas. Não conseguia vê-los por conta da densa neblina, mas sabia o que o fazia. Criaturas parecidas com lagartos, que andavam como homens, tendo uma altura semelhante a eles. Mesmo após dias vendo-os com os próprios olhos, ainda não se acostumara aos seres. Que pareciam ter saído de alguma história que sua avó contara.
“Papai foi a roça, mamãe foi trabalhar…”, as palavras foram cantaroladas involuntariamente em sua cabeça. Mas eles não eram a Cuca, sabia, eram apenas outros cativos. Que também haviam sido capturados. Eram mantidos separados, pelos soldados, dos prisioneiros humanos, tanto quando caminhavam, quanto paravam para acampar. Um cuidado que Jonas apreciava.
— Que fome — reclamou Leandro — Quanto será que falta pro sol nascer?
Eles eram alimentados duas vezes no dia. Pela manhã, antes de levantarem acampamento. E ao anoitecer, quando os soldados paravam para descansar. Sendo a comida, pequenas fatias de massa grossa parecida com pão duro, e um caldo com gosto de leite coalhado.
— Não faço ideia — respondeu Jonas, começando a sentir fome ao pensar em comida.
Leandro estalou a língua.
— Amanhecerá em menos de uma hora jovem — A senhora respondeu
— Como a senhora sabe — Eric perguntou.
— Estou acostumada a fazer vigílias. Passava madrugadas orando pelo meu filho — Soltou um suspiro cansado — Sabe, ele tinha a idade de vocês, ou ainda tem, eu não sei.
Jonas pode ouvi-la soluçar enquanto falava. Ainda que não fosse de forma nenhuma jovem, ela também não era muito velha, aparentando estar próxima dos cinquenta. “Quase a mesma idade da minha avó”, refletiu Jonas.
— Como a senhora se chama? — Jonas perguntou.
Ainda que tivessem convivido pelos últimos dias, eles ainda não tinham se apresentado.
— Graça — Ela respondeu — E você?
— Jonas — disse, cutucando Leandro com o cotovelo para que fizesse o mesmo.
— E aí dona Graça, me chamo Leandro — falou ele, com um certo ânimo na voz.
— Eric, é um prazer.
— Obrigada — Ela respondeu.
Jonas não conseguia ver, mas imaginou como estaria sua expressão. Passar noites em claro preocupado com seus filhos era pesado para qualquer um. Principalmente para pais. Embora ele não tivesse filhos, viu seus avos passando por tal situação com a sua mãe.
Leandro continuou a conversar com ela. Falando de sua própria mãe, e de como sempre apanhava ao chegar em casa sujo de lama quando criança. A senhora ria enquanto contava suas próprias histórias. Jonas os escutou, participando da conversa pontualmente, até eventualmente eles se cansarem e ficarem em silêncio. Eric apenas escutara tudo. Jonas até se perguntara se o garoto quatro-olhos ainda estava acordado. Desejando, ele mesmo, dormir mais um pouco.
Fechou os olhos procurando adormecer lentamente. Porém um som estranho na água chamou sua atenção. Ficou quieto tentando identificá-lo. Era distante, em uma direção oposta a que o acampamento estava. E soava cada vez mais próximo. Tentava se concentrar nele, até que uma luz se surgir-se por detrás dele, revelando um soldado trajando couro e ferro. Ou ao menos Túlio jurara ser isso. Jonas poderia perguntá-lo novamente, mas ele ainda estava dormindo. O soldado os encarou, iluminando seus rostos com a tocha em sua mão. Causando dor aos seus olhos acostumados com a escuridão. Um segundo seguia atrás dele.
O primeiro afastou a tocha de seus rostos e estalou a língua.
— Nenhuma mulher — resmungou.
— Eu bem avisei que não havia, mas o velho Doff precisava sujar nossas botas porque queria dar uma trepada — disse o segundo em tom de escárnio.
Jonas ouviu novamente o mesmo som de antes. Parecia que tinha algo se mexendo na água.
O homem que segurava a tocha grunhiu, e então a apontou para Graça.
— Enquanto aquela ali — disse — é uma mulher.
— Isso ela é — concordou o outro — Mas parece já ter apodrecido.
— É melhor do que a minha mão — disse o primeiro, cuspindo no chão logo depois.
— Fazer o que — O segundo homem respondeu, e ambos se aproximaram dela.
Graça se remexeu em seu lugar. Jonas podia dizer quão assustada ela estava pelo tremor que sentia através das cordas que compartilhavam. Ele pensava freneticamente no que fazer, sem nada lhe vir à mente. Olhou para Leandro que encarava ambos os homens com raiva estampada na face. Eric permanecia quieto, sem esboçar qualquer reação.
“Vamo lá seu merda”, pensou olhando pro amigo, “É tu quem tira as ideias para essas situações”.
— Calma, eles vão ter que desamarrar ela da corda — Eric sussurrou — Vai ser nessa hora.
Jonas olhou para os homens que agora se aproximavam de Graça, procurando desamarrá-la.
— Mas que merda é essa — Um deles se levantou, olhando na direção dos homens lagartos. Que haviam começado a sibilar, mais alto do que antes. Como se estivessem nervosos.
— Sei lá caralho — falou o outro — vai lá ver que porra tem com esses bichos.
— Sem calças?
— Foi tu quem se incomodou vir — respondeu dando de ombros.
Praguejando, o homem se afastou com a tocha. Se transformando em um vulto em meio a neblina.
— Ah, agora vamos a diversão — disse ele afrouxando o a corda de Graça.
Jonas sentiu o aperto em volta de si diminuir também.
Ele olhou para a cintura do soldado, e pode ver uma espada em sua cintura. Se pelo menos tivesse uma das mãos livres. Se remexeu, tentando desatá-las.
— Você fica quieto aí — O soldado ordenou, dando um tapa com as costas da mão em seu rosto.
Uma dor se espalhou por sua bochecha direita. Então percebeu que o som dos homens lagartos havia aumentado. O soldado também pareceu notar, se levantando.
— Onde o Doff foi? — Ele olhou na direção que o outro fora — Doff — chamou, sem obter resposta.
Foi então que Jonas sentiu a falta de algo. Do som que ouvira a poucos instantes. Ele havia sumido.
De repente algo acertou o soldado que ficara. Seu corpo tremeu com impacto, e então caiu, de costas para o chão úmido do pântano. O que parecia ser uma grande lança estava cravada em seu peito. Jonas ouviu novamente o som de algo se mexendo nas águas. E uma figura sombria surgiu envolta pelas brumas. Alta. Imponente. Silvando através de sua larga fileira de dentes. Olhando para eles.