Crônicas dos Caídos - Capítulo 19
“Um crocodilo?”, pensou Jonas, vendo a criatura de formato reptiliano se aproximar, e retirar a grande lança presa no corpo agora sem vida do soldado. Era um homem lagarto, Jonas notara. Porém, era diferente dos que estavam presos junto a ele, os quais tinham uma aparência muito semelhante ao de lagartixas gigantes. Esse, no entanto, era maior. Sua mandíbula protuberante dispunha de uma fileira de grandes dentes, que eram perceptíveis mesmo na fraca luz que os iluminava a distância.
Silvando, o monstro balançou sinuosamente seu longo pescoço, e se virou, caminhando desajeitadamente. Jonas pôde ver o brilho úmido de suas escamas, iluminadas pela luz das piras ao redor, enquanto ele se mexia. Logo pode ver mais iguais a ele, se movendo em meio a escuridão assombrosa. Dezenas de enormes vultos encurvados, segurando lanças quase tão grandes quanto eles mesmos.
— Meu Pai amado — Graça berrou alarmada.
Uma onda de pânico percorreu a fila de prisioneiros amarrados.
— Dentes de adaga, são dentes de adaga — Ouviu alguns gritarem em desespero.
Eles se debatiam violentamente, tentando se desvencilhar das grossas cordas, que rasgavam os pulsos de Jonas.
— Que é que foi? O que tá acontecendo? — Túlio acordou atordoado pela confusão.
— Jonas, a hora de se soltar é agora — gritou Eric, se contorcendo.
Jonas obedeceu. Contorcendo suas mãos, tentando passá-las pelo apertado nó.
Os monstros silvaram, acenando uns para os outros. Um deles apontou em direção a torre quebrada em que os soldados estavam acampados. E, sobre o manto das brumas que os cercavam, eles avançaram até lá. Ignorando a Jonas e os outros.
Grato aos céus por ver as criaturas se afastarem, ele continuou forçando suas mãos pela corda, em uma tentativa desesperada para se soltar. Pareceu-lhe que a carne de sua mão ia se rasgar quando a livrou do aperto do nó. Mesmo assim, um alívio o preencheu. Ouviu sons da direção onde os soldados estavam. Gritos confusos e desesperados.
“Estão lutando”, percebeu, em um misto de medo e satisfação.
— Tá fazendo o quê Jonas — Leandro gritou — A gente precisa sair daqui.
Com menos esforço, Jonas soltou sua outra mão, e contorceu seu corpo pela apertada corda que prendia todos a árvore. Sentiu-se livre pela primeira vez em muito tempo.
— Ótimo, agora solta a gente — falou Túlio.
Jonas puxou as cordas, tentando desatá-las de alguma forma.
Uma luz resplendeceu em meio a névoa na direção em que os gritos vinham.
— O que foi isso? — Leandro perguntou confuso.
— Não importa, apenas se concentre em se soltar — Eric berrou — Jonas — parou de repente.
— Que foi?
— O soldado. Ele tinha uma espada.
Como se acertado por uma bala, Jonas entendeu o que ele queria dizer. Olhou na direção do cadáver do soldado. E, engolindo seco, caminhou até ele, afundando seus pés no atoleiro do pântano. Parou a meio metro de distância, o encarando.
Viu seu rosto, que era iluminado pelas piras que ainda queimavam a metros de distância. Uma expressão de perplexidade parecia ter se formado em seus últimos instantes. Os olhos estavam arregalados e sem nenhum brilho. Uma linha de sangue escorria de sua boca aberta, que a essa altura já estava repleta de moscas. Em seu peito, uma fenda vermelha estava exposta onde a lança do grande crocodilo o havia empalado.
Sentia-se estranho.
Mesmo que tivesse achado o homem repugnante, vê-lo morto ainda lhe incomodou a certo modo. Não era sua primeira vez vendo um cadáver, recordou a si mesmo. Sua mente se voltou involuntariamente para a última lembrança que tinha de seu antigo mundo. Para o momento em que Murilo tombou sem vida no chão.
— Jonas, tá parado por quê? — Gritou Leandro.
Ele se virou, ao mesmo tempo em que uma luz resplandeceu na direção da torre. Sombras e vultos foram projetados através das brumas. Dando vida aos gritos que escutava ao longe.
Jonas se apressou. Agachando-se sobre o corpo, ele procurou pela espada que vira antes. Ouviu um estrondo próximo, ao mesmo tempo que sentiu um forte calor surgir. Virou-se em sua geração, e se deparou com uma das árvores, repleta de cativos atados, sendo tomada por chamas. Os gritos agonizantes dos que estavam presos reverberou pelo ar. Acompanhado pelo horrendo odor de carne queimada.
— Meu Deus, socorro — Graça pranteou, apavorada.
— Merda, rápido Jonas — Leandro gritou, se debatendo violentamente.
As mãos de Jonas continuaram tateando o corpo do homem, até conseguirem sentir a maldita espada. Com dificuldade ele a desembainhou, quase caindo para trás. Ele a ergueu, sentindo seu peso. Percebendo que era mais leve do que imaginava. E correu desajeitado, de volta para onde os outros estavam. Fazendo de tudo para ignorar a enorme pira humana ao seu lado. Ergueu a espada, imitando uma posição que vira tantas vezes em filmes e séries, e a fez descer entre Eric e Leandro, os quais tentaram se afastar. Precisou bater com a espada na árvore mais duas vezes, antes de finalmente partir a corda.
Os cativos correram para todos os lados. Jonas ficou atordoado, enquanto via as pessoas se espalharem e desaparecerem na escuridão. Eric sacudiu seu ombro, o instigando a fazerem o mesmo. Túlio e Leandro olhavam horrorizados para os corpos, que queimavam amarrados a árvore. Graça apenas olhou para aquilo, sem esboçar qualquer reação. O incêndio havia se espalhado pelas árvores em volta.
Jonas olhou em direção à torre. Os sons tinham diminuído. Precisava se esforçar para ouvir os distantes gritos dos soldados em desespero.
— Jonas, acorda — Eric o chacoalhou — vamos sair daqui logo.
Leandro pegou Graça pela mão, trazendo-a para perto deles.
— Pra onde vamos? — perguntou Túlio.
Eric estalou a língua. Jonas olhou ao seu redor. Apesar do nevoeiro, o mundo se tornara mais iluminado graças a árvore em chamas. Ainda assim, tudo a volta deles eram as margens lamacentas dos rios e brejos em volta. Um lugar difícil de se andar mesmo de dia.
— Ali — Ele ergueu o braço, apontando para um lugar que parecia mais elevado — Parece ser melhor para se andar.
— Tem certeza? — Túlio perguntou.
Ele não respondeu. Não conseguia mentir para o amigo.
— Não temos escolha — Eric declarou, tomando a frente.
Os outros permaneceram parados, em relutância. Andando apenas quando o próprio Jonas começou a se mover. Graça estava entre eles, sendo ajudada por Leandro a atravessar o atoleiro. A neblina parecia menos densa enquanto se moviam. Passaram pela árvore onde os homens lagartos deveriam estar presos. Jonas parou espantado em frente a ela, quando vira apenas os corpos sem vida das criaturas. Se perguntou se fora os soldados, até perceber que alguns tinham buracos vermelhos na altura do que seria os seus peitos. Semelhantes ao soldado morto pelo grande crocodilo de antes. Outros estavam desmembrados, sem braços, pernas, e até cabeças faltando em seus troncos.
Túlio e Leandro também olharam atônitos para a cena. Graça levou suas mãos a boca, claramente estarrecida. Jonas olhou para Eric. Por um momento o viu o que pensou ser horror em seus olhos. Até o amigo limpar a boca e ajeitar seus óculos trincados.
— Vamos — Ele disse pigarreando — Tá amanhecendo.
Um estrondo soou ao longe. Eles olharam em sua direção. Uma fumaça negra subia da torre quebrada, que agora podiam ver, destacando-a da neblina branca, que estava aos poucos se esvaindo a luz do sol nascente. A essa altura, Jonas ouvia apenas um som daquele lado. Não eram os gritos da batalha, ou os gemidos dos soldados. A única coisa que existia era o silvar dos monstros crocodilos.
Eric insistiu para que corressem. Coisa que todos fizeram, menos Jonas. Ele permaneceu naquele lugar. Olhando para os lagartos mortos. Sentindo um tremor gélido nas mãos. Ainda segurava a espada que pegara do soldado. Por que os monstros mataram seus semelhantes, mas os ignoraram? Virou-se de novo para a torre, que parecia mais quebrada do que no dia anterior. Olhou tempo o suficiente para distinguir grandes silhuetas escuras se movendo entre as brumas. Se aproximando. Procurando.
Se perguntou pelo que, até ouvir o grito dos prisioneiros ainda presos quando um dos monstros os encontrou.
“Por nós”, respondeu a si mesmo, antes de correr.