Crônicas dos Caídos - Capítulo 2
Os dois times entraram na quadra, um ao lodo do outro, e ficaram em linha reta, de frente para a arquibancada principal, como se fosse um jogo de verdade. O hino nacional tocou, enquanto todos fingiam cantá-lo. Júlia achava isso estupido. Não é como se fosse fazer alguma diferença no jogo. Apenas Ítalo parecia cantar realmente. Após o hino terminar, as equipes se cumprimentaram. Ela olhou para Eduardo, e notou algo. Nenhum de seus colegas de classe o cumprimentou enquanto passavam.
As equipes se separaram, com cada uma em um canto da quadra. Os garotos do terceiro ano estavam a sua frente, enquanto os da sua sala estavam no lado oposto. Eles se reuniram em um círculo, com um garoto chamado Eric no meio, falando palavras de apoio. O time da turma de Eduardo fazia o mesmo.
Quando se separaram, ele acenou para ela, que respondeu, acenando de volta.
— Ei, amiga — Letícia a chamou —, eu sei que ele é gato e tal, mas torça pro nosso time, tá bom? — Ela deu um cutucão em Júlia enquanto falava.
— Ah, Lê, para com isso, não tem nada a ver — disse, esfregando o ombro cutucado.
— Deixa ela torcer pro namorado. Eu queria ter um para quem torcer também — Carmen falou, agarrando Leticia. Que protestou, tentando se desvencilhar dos braços da garota.
Júlia olhou para o outro lado da quadra, e notou alguém se aproximando da grade do campo. Ele lhe parecia familiar.
— Prestem atenção, vai começar — disse ítalo, apontando para o campo.
O árbitro apitou, dando início ao jogo. A saída de bola era do terceiro ano.
Eduardo deu o toque inicial, passando para o goleiro, que logo depois chutou a bola para o campo adversário. Quando Júlia percebeu, um deles já a tinha na linha de fundo. Ele a cruzou para traz. Para Eduardo, que chutou de primeira. Gol, pensou ela. Mas Túlio, o goleiro do time, defendeu. Jonas a tirou de lá, mandando-a para fora pela linha lateral. O terceiro rapidamente tocou a bola, reiniciando o jogo, e trocou passes no campo de defesa.
— Rápido, pressionem, tirem a bola do goleiro — gritou Letícia, liderando a torcida da turma.
E foi isso o que eles fizeram. Três dos garotos estavam no campo do terceiro ano tentando pegar a bola. Quando de repente, o goleiro adversário a mandou de volta para o ataque. Para os pés de Eduardo, que estava de frente para Túlio. E dessa vez, ele não defendera.
Um a zero. Eduardo comemorou, abraçando os companheiros e acenando para a torcida. Sorrindo, ele olhou para Júlia. Ela não sabia como reagir.
— Merda, merda, merda, o que estão fazendo, seus lerdos? — Letícia gritava com toda a sua voz.
— Mal começou o jogo e já está um a zero. Esse time do terceiro B é forte mesmo — Ítalo lamentou com a mão na cabeça.
— Vai te foder, seu nerd retardado — repreendeu-o Leticia — Forte o caralho. O jogo mal começou, então cala a boca. E vocês aí — ela apontou para o resto da turma —, pararam por quê? Comecem a gritar para animá-los.
— Ela tá bem enérgica — comentou Carmen.
— Sim, é assim toda a vez que saímos atrás — Júlia agitava os pompons de papel coloridos que as garotas haviam preparado.
Sem perceber, ela procurou, novamente, aquela pessoa familiar. Estava lá, do outro lado da quadra. Ela já o tinha visto em algum lugar. Fora na escola, sabia. Mas não se lembrava quem era.
O juiz apitou novamente. O time do segundo ano tocou a bola, tentando passar pela defesa do terceiro ano, que parecia não dar nenhuma brecha. Jonas tentou driblar um deles, mas perdeu a bola, quando Eduardo aparecera pelas suas costas, a tomando. Ele a lançou para frente, em uma tentativa de contra-ataque. Que foi interceptada por Murilo, um dos garotos do fundo da sala.
— Boa — vibrou Letícia.
— Mesmo assim não conseguimos atacar. Se continuar assim e o primeiro tempo terminar, vai ser difícil virar no segundo — comentou Ítalo, como se fosse algum tipo de comentarista esportivo.
O terceiro continuou no ataque, tocando a bola em uma velocidade absurda para os olhos de Júlia. Eduardo recebeu a bola, mas, quando pareceu que ia tocá-la, ele a colocou de lado, esquivando do carrinho de Jonas. Seguiu, carregando-a até a entrada da área, mas foi derrubado por Murilo antes de chutar.
O juiz marcou a falta, dando um cartão amarelo para Murilo.
Ítalo estalou a língua.
— Pronto, agora eles têm outra chance — lamentou novamente.
— Fica quieto, seu merda — berrou Letícia.
A barreira foi feita. Os cobradores se posicionaram.
Eduardo e outro garoto estavam prontos para a cobrança. Um jogador do terceiro ano estava na área, entre os garotos do segundo. O juiz autorizou. O outro cobrador passou pela bola, correndo em direção a linha de fundo, deixando apenas Eduardo, que disparou para a bola instantes depois. Parecia que chutaria com toda força pela velocidade de seu passos, mas o que se viu fez Júlia levantar.
— Quê, uma cavadinha — Ela ouviu Ítalo dizer.
Por meio segundo, a bola viajou no ar até próximo a linha de fundo. Onde o outro cobrador, que havia passado da bola antes, girou a perna acertando o chute no ar.
Tudo o que se ouviu depois foi a vibração da torcida do terceiro ano.
— Dois a zero — choramingou Carmen.
— E com um voleio ainda mais — Ítalo completou.
A torcida do segundo ano ficou em silêncio. Até Leticia parecia ter perdido a língua.
Eduardo voltou andando após comemorar com a torcida do terceiro. Ele se aproximou da lateral da quadra até Júlia, que a essa altura estava em pé, se apoiando na cerca que separava a quadra da arquibancada, e a beijou, sem nenhuma cerimônia. Ela sentiu o gosto salgado do suor em seus lábios.
— Vamos comemorar depois — disse ele, se afastando.
— Podia ter feito “isso” depois — respondeu Júlia, se virando para olhar o resto de seus colegas, que a essa altura, a encaravam.
O jogo recomeçou. O segundo trocava passes na defesa, sem muitos problemas. O terceiro ano não tentava roubar-lhes a bola, nem os pressionava, se contentando em esperar em seu próprio campo. Pareciam satisfeitos com o resultado.
O som dos tambores parecia ficar cada vez mais alto com o passar do jogo, enquanto um silêncio mórbido reinava na torcida do segundo ano.
— Quanto tempo falta, Ítalo? — perguntou Letícia, com um olhar amuado em seu rosto.
— Dois minutos — Ítalo estava sentado no lugar de Júlia, que continuava encostada na cerca da quadra.
— Não acredito que passei horas escrevendo cartazes à toa — reclamou Carmen, que brincava com suas tranças.
Júlia partilhava de seus sentimentos. Cortar todo aquele confete tinha dado trabalho. Suas pernas estavam cansadas, mas preferia ficar em pé naquele momento. Sentia os olhares de todos sobre ela. Não fui eu que fiz os gols, pensou em dizer, mas ficou quieta, esperando que o clima melhora-se depois. Entediada, procurou novamente aquela figura familiar, sem encontrá-la. Talvez já tivesse ido embora.
Parecia que o primeiro tempo terminaria assim. Até Eric, que estava parado no meio campo com o pé sobre a bola, acenar para Murilo, e rapidamente tocar para a Leandro. Eles trocaram passes na defesa até a bola parar em Jonas, que driblou um dos garotos do terceiro ano, se livrando de sua marcação. Ele tabelou com Leandro e avançou mais pelo meio campo, onde se viu cercado pela defesa do terceiro. Eles tentaram desarmá-lo, enquanto Jonas parecia dançar entre suas pernas. Quando Júlia pensou que ele perderia a bola, ela sumiu. Reaparecendo nos pés de Eric, que estava próximo a linha lateral.
Ele chutou. A bola atravessou a área até o outro lado da quadra, parecendo prestes a sair pela linha lateral. Se não fosse por Murilo, que havia estado o lance inteiro atrás da linha de meio campo, e surgirá no momento exato para alcançá-la. Ela bateu em sua perna e foi em direção ao gol, para a defesa do goleiro, que a espalmou. Ela quicou na área, entre os jogadores do terceiro ano, mas, antes que pudessem demonstrar qualquer reação, Jonas a empurrou com a ponta da chuteira. A bola entrou no gol, rolando sem muita força até a rede.
Dois a um.
A torcida do segundo ano, antes morta, explodiu em alegria, assustando Júlia. Letícia, mais do que todos. Júlia podia jurar que a viu abraçar Ítalo. Ela mesma, no entanto, não esboçou muita reação, além de um sorriso.
— Toma essa, Jú — Uma de suas colegas gritou.
Outros de seus colegas diziam coisas parecidas. Ela virou novamente para a quadra e se encolheu.
Jonas correu ao lado da arquibancada, mandando beijos para a torcida do terceiro ano. O que lhe rendeu uma bronca do árbitro.
— Isso, agora sim, ainda temos uma chance — comemorou um dos garotos da arquibancada.
— Túlio, se tu levar mais algum gol, eu vou quebrar a tua cara — disse outro.
— Vamo virar meu povo — gritavam os colegas de sala para o time.
Momentos depois, o árbitro apitou o fim do primeiro tempo, os times trocaram de lado, e se prepararam para o segundo tempo. Quando então, uma pessoa caminhou até o meio da quadra. Ela não usava um uniforme de time como os demais, mas sim, um casaco com capuz cobrindo a sua cabeça, carregando uma mochila em suas costas. O arbitro pediu para que saísse, mas foi ignorado. Júlia olhou para ele, reconhecendo-o na mesma hora.
— Fernando? — disse, confusa.
— Quê, ele veio? — Outra pessoa perguntou.
— É ele mesmo, o que ele tá fazendo ali? — Carmen ficara em pé para ver melhor.
Os jogadores começaram a reclamar, pedindo ao árbitro para retirá-lo. Murilo avançou em sua direção, gritando para que ele saísse dali se não quisesse ser jogado no canal de novo. O árbitro se pôs entre ambos, afastando o jogador.
Os alunos se juntavam cada vez mais na cerca para olhar. Júlia se esforçava para escapar do aperto de dezenas de pessoas amontoadas, quando ela percebeu novamente aquela figura. Estava próxima a arquibancada principal. Entre os estudantes. Foi então que o reconheceu. Ela o vira uma vez na escola. Em uma reunião de pais e professores. Era o irmão de Fernando.
Um som alto e seco chamou sua atenção. Ela se virou para a direção em que o ouviu. O tempo parecia ter parado, ninguém se mexia. Murilo havia caído, e o árbitro parecia em desespero tentando ajudá-lo. Fernando estava com um braço estendido, segurando algo em sua mão. Ela nunca vira uma de verdade, apenas em filmes e jogos, então demorou até perceber o que era.
Outro som foi ouvido. Dessa vez, fora um jogador do terceiro ano quem caiu, libertando a todos do estado de transe coletivo em que estavam.
O mundo ao redor de Júlia entrou em desordem. Gritos se espalharam pelo ar, enquanto todos entravam em pânico. Ela lutava para se mover enquanto era espremida pala multidão, que tentava desesperadamente chegar à saída. Era difícil ver o que estava acontecendo. Ela só ouvia o som dos disparos perfurando as dezenas de vozes. Alguém a puxou pelo braço, a retirando do meio de todos. Era Ítalo, que estava em cima de um dos degraus da arquibancada. Ela viu Carmen em lágrimas abraçada com Leticia, que segurava o outro braço de Ítalo. Eles subiram mais um degrau para escapar da corrente de pessoas fugindo para a entrada. Os alunos corriam para baixo, se amontoando no espaço curto do corredor que levava até a saída para o pátio, deixando os degraus de cima quase vazios.
— Não devíamos tentar fugir também? — gritou ela.
— No meio dessa galera toda não vai dar — respondeu Ítalo — merda, essa arma nunca vai descarregar? — Ele disse ao ouvir outro disparo.
Júlia olhou para a quadra ao escutar o som.
Fernando continuava disparando contra seus colegas no meio da quadra. Murilo estava no chão, junto do árbitro, e Eric. Ela procurou por Eduardo, desejando não o encontrar do mesmo jeito, até ver Jonas. Ele estava no chão também, deitado sobre uma poça vermelha. Ela sentiu algo estranho no peito. Seu corpo se moveu para frente. Poderia ter corrido para lá, se ítalo ainda não estivesse segurando seu braço.
Leticia tentava acalmar Carmen que estava em estado de pânico:
— O que a gente faz, o que… o que… — gritava a garota.
— Calma, vamos… vamos atrás de um professor, tá bem? — Ela pôs as mãos sobre o rosto de Carmen — Nós vamos ficar bem, tá bom?
Subiu mais um degrau para se libertar de Carmen, e apontou para um lugar, com uma cara assustada.
— Ítalo, o… — Antes que terminasse de falar, ela caiu violentamente no chão, ao mesmo tempo em que o som de outro disparo foi ouvido.
— Lê? Leticia? — gritou Júlia desesperada.
Ela não respondeu. Ítalo saltou para socorrê-la, a levantando. Seu corpo estava mole. Uma mancha vermelha se espalhava por sua barriga.
Eles escutaram, então, outro som de tiro, mais alto, e mais próximo. Era o irmão de Fernando, percebeu Júlia. Ele estava nas arquibancadas, com outra arma. Uma maior. E a estava apontando para eles.
— Abaixem — Ítalo gritou.
Ele tentou protegê-las, mas tropeçou, e caiu da arquibancada, desaparecendo da vista dela. Outro garoto foi acertado pelo tiro e caiu por cima de Júlia, que ficou presa embaixo dele. Sentiu mais um peso em cima dela, e ficou lá, sem conseguir sair. Ela permaneceu no chão, com os olhos fechados, enquanto tampava os ouvidos. Tudo o que podia fazer era ficar parada em silêncio, enquanto escutava os disparos. Poderia ter permanecido assim por horas, mas alguém a puxou, levantando-a de entre os corpos. Foi Eduardo.
— Júlia, esse sangue, você tá bem? — Ele perguntou, lagrimas brotavam de seus olhos.
Ela olhou para si mesma. Seu uniforme estava vermelho, provavelmente do sangue do garoto que caíra em cima dela.
— Tô, eu tô — respondeu.
— Se abaixa, ele não nos viu — disse, se agachando.
Júlia fez o mesmo.
O atirador parecia ter ido para outro lugar. Júlia olhou para os arredores. Viu Ítalo caído lá embaixo, mas não achou Carmen em nenhum lugar. Os tiros continuaram, parecendo estar cada vez mais longe. Eles correram agachados até chegarem na ponta da arquibancada. O irmão de Fernando havia descido e estava atirando com uma espingarda na multidão amontoada no portão que levava ao pátio. Algo impedia os alunos de saírem. Talvez ele estivesse trancado.
— Escuta, vamos ter que pular o muro — Ele disse, apontando para cima.
— O que, o que cê tá dizendo? — disse ela, balançando a cabeça.
— O portão não abre, vamos ter que ir até o muro e pular — Eduardo disse de forma mais enfática — Eu te ajudo a subir tá, não se preocupa.
Júlia olhou para ele, sem conseguir esboçar qualquer reação. Suas mãos tremiam, lagrimas escorriam por seu rosto. Um som alto foi ouvido na direção do portão. Era diferente dos anteriores. Júlia viu uma nuvem de fumaça logo depois. Então ela ouviu mais tiros, e gritos. Os gritos se tornaram mais altos, assim como os disparos. Era Fernando. Ele estava lá, andando em sua direção.
— Merda — Eduardo se colocou na frente dela. — fica atrás de mim, assim que possível você corre, tá?
Fernando atirou.
A mente de Júlia se tornou turva. Ela permaneceu parada, sem entender o que havia acontecido a sua frente, se perguntando por que não estava morta. A arma falhou, uma voz dentro de sua cabeça falou de repente. Quando ela percebeu, Eduardo tinha avançado em cima de Fernando, o derrubando no chão. Ele bateu. Arfando e grunhindo feito um animal, ele bateu. Repetidamente. Fernando lutava para se soltar, mas Eduardo era visivelmente mais forte. Ele levantou e desceu seu braço mais vezes do que Júlia pode contar.
Ela caiu sobre seus pés, ficando de joelhos.
— Desgraçado, filho da puta — Eduardo gritou, entre lágrimas — Meus amigos, você os matou, você os matou — Ele ergueu seu braço mais uma vez, mas o baixou.
Júlia ouviu-o soltar um gemido estranho, e então Eduardo caiu, com as mãos sobre o corpo.
Fernando se arrastou para longe. Ele segurava algo vermelho em suas mãos.
— Porra — choramingou — vão a merda, todos vocês.
— Ele caiu — Alguém gritou.
— É agora, peguem o filho da puta.
Um punhado de pessoas correu em direção a ele. Quando se aproximaram, ele agarrou sua mochila, abrindo-a. Júlia viu algo.
— Esperem — Ouviu alguém gritar.
Júlia escutou um som alto, que fez seus ouvidos doerem, e então mais nada.