Crônicas dos Caídos - Capítulo 20
Eles se moviam o mais rapidamente que podiam através dos lamacentos brejos. E das grossas raízes, que se espalhavam como cabelos caídos pelo chão. Mais de uma vez, Jonas tropeçou nelas, ou afundou seus pés até os joelhos no solo traiçoeiro do pântano. Leandro e Túlio ajudavam graça a caminhar. A senhora já parecia ter chegado ao seu limite a muito tempo. Tendo imensa dificuldade em se mover pelo difícil terreno. Várias vezes ela pediu para que parassem. Mesmo assim eles não pararam. Não podiam. Jonas sabia disso.
Não fazia ideia de quanto tempo havia se passado desde o começo do dia. Apenas que tinham andado o suficiente para que o cansaço o enfadasse. Sua cabeça ainda doía devido aos terríveis gritos que ouvira na última noite. Continuava carregando a espada do soldado morto, alternando-a entre as mãos. Hora ou outra, desejava jogá-la fora para se aliviar de seu peso. No entanto, mesmo exausto, a mantinha. Se sentia aliviado em poder dizer que já não escutava nenhum som além dos chiar de insetos, e do feito por eles mesmos.
— Gente — Túlio os chamou. — Vamos descansar um pouco?
— É — concordou Leandro. — Não sei se a dona Graça consegue continuar.
— Não — respondeu a senhora —, não se incomodem comigo.
Ela mal se mantinha em pé. Tendo de ser amparada por Leandro, que mantinha um olhar preocupado em seu rosto.
Jonas trocou olhares com Eric, que suspirou.
— Acho que já tá bom — disse ele.
Jonas apenas acenou concordando.
Rostos de alívio sucederam a decisão. Eles escolheram descansar sentados sobre grossas raízes, que chegavam à altura de seus joelhos. Á arvore a qual elas pertenciam também era digna de nota. Sendo facilmente da altura de uma mangueira. Embora não fosse nem de longe tão frondosa, e os galhos estivessem cheios de vinhas e musgo.
— Meu Senhor, como meus tornozelos estão inchados — choramingou Graça, massageando suas pernas cheias de varizes.
Jonas imaginou o quão difícil devia ser para ela caminhar por aquele terreno traiçoeiro, tendo de acompanhar o ritmo deles. Mas ele também não podia dizer que estava melhor.
Pôs a espada de lado e sentou-se.
Ao relaxar seu corpo, Jonas sentiu uma enorme fadiga pesar sobre si. Ele respirou fundo, sentindo uma dor se espalhar por todas as suas juntas. Andar por horas e duvidava que suas pernas tivessem forças para se levantarem de novo. Olhou para os seus braços. Pareciam mais finos do que se lembrava. Manchas vermelhas os cobriam, desde as mãos até os ombros, devido as recorrentes picadas de insetos. Ele se envolveu neles, encolhendo-se. Seu estômago bramiu, apertou, e se remexeu. Desejava preenchê-lo. De preferência, com o bolo de milho de sua avó. Podia sentir seu cheiro, seu gosto. Tinha saudades de ambos. Saudades de seu quarto. Da oficina de seu avô. Dos dias em que sua mãe estava bem o suficiente para reconhecê-lo. E dela.
Sim.
Por mais que ele detestasse admitir, tinha saudades dela.
— E agora? — perguntou, a ninguém em particular.
— Continuamos andando — respondeu Eric.
— E depois? — insistiu ele.
— Estou pensando. Mas minha cabeça não está em plenas condições de fazer isso no momento, então tenha paciência.
— Pelo menos você consegue pensar em algo — resmungou Túlio — A única coisa que me vem à mente são os pasteis depois da escola.
— Como se ‘tu’ pensasse em outra coisa além de comida — Eric replicou.
Leandro riu. Uma risada fraca, percebeu Jonas, mesmo assim, era surpreendente que ele conseguisse rir. Antes parecia tão cansado eu até seu costumeiro topete estava para baixo. Mesmo assim era bom que alguém risse. Isso ajudava Jonas a se distrair. Ele não conseguia deixar de se perguntar o que aconteceria se topassem com monstros como aqueles de novo. Ou se outros piores os encontrassem. Vira um certo movimento nas águas quando passavam perto das margens, assustando-se. Imaginando o que poderia ser.
— O que vamos fazer se aqueles monstros nos acharem? — Túlio perguntou, obtendo apenas silêncio em resposta. O qual perdurou por tempo o suficiente para se tornar incômodo.
— Na verdade, o que eram aquelas coisas? — questionou Leandro, esfregando as mãos uma na outra. Era costume seu fazer isso quando nervoso — Pareciam crocodilos.
— Os outros os chamaram de “dentes de draga” ou algo assim — Eric comentou, pondo uma mão sobre o queixo.
— Dentes de adaga — Jonas respondeu.
— Achei apropriado — comentou Leandro, ainda com suas mãos irrequietas.
Jonas concordou, relembrando a extensa fileira de dentes que o monstro tinha em sua mandíbula.
— Espero nunca os ver novamente — Túlio murmurou.
— Lamento dizer querido, mas vamos vê-los sim — A voz fraca de Graça chamou a atenção de todos.
— Não precisa ser pessimista senhora — disse Leandro.
— Ah, não estou sendo pessimista. Eu não sei… apenas sinto que vamos nos encontrar de novo com aquelas coisas.
Seus braços começaram a tremer. Pareciam mais frágeis do que antes.
— Sentir isso ou aquilo não muda muita coisa — Eric suspirou. Se levantando em seguida — Precisámos continuar andando.
— Agora? Não podemos esperar mais um pouco? — Quis saber Túlio.
Eric apenas maneou a cabeça em resposta, descendo entre as raízes até o chão. Túlio praguejou, mas se pôs em pé.
Leandro ajudou Graça a se levantar. O rosto da senhora, que tinha idade para ser mãe deles, mudou, de branco para vermelho, e depois para amarelo quando se pôs a descer as raízes. Ela arfou, descendo cuidadosamente da árvore, um passo de cada vez, enquanto Leandro a segurava.
Jonas se preparava para fazer o mesmo, tomando uma tragada do ar úmido do pântano. Porém algo estalou em seus ouvidos agora sensíveis. Sons estranhos. Diferentes dos que escutara antes, enquanto caminhavam pelo grande lamaçal, que era o caminho entre os lagos e rios em volta. Não os percebera a princípio devido ao seu cansaço. Mas agora os ouvia. Não sabia dizer como, mas percebeu que eram passos. Pesados, podia dizer. Quem quer que os estivesse fazendo, com certeza estava afundando bruscamente seus pés na lama.
Ainda em cima das raízes, que se espalhavam como tentáculos pela lama. Jonas perscrutou as árvores na direção de onde acreditava estar ouvindo o barulho.
— O que foi? — Túlio perguntou com uma cara de preocupação.
Jonas não respondeu. Prestando atenção enquanto o som se aproximava. Então o viu.
Era um homem se arrastando por entre a lama. Erguendo seus pés, apenas para afunda-los de novo em passos pesados e desajeitados. Vestia uma armadura suja, muito familiar a… Jonas pestanejou, engasgando-se, ao reconhecê-lo como um dos soldados que o haviam prendido. Recuou um passo, quase tropeçando para trás.
— Olhem ali — disse Túlio, percebendo a figura — Alguém está vindo.
— O quê… Onde? — balbuciou dona Graça, procurando na direção apontada.
— Aquilo é uma armadura. É um soldado? —Leandro murmurou, cerrando os dentes.
Dona Graça se sobressaltou.
— Mas… achei que… aqueles monstros…
Jonas pôde ouvir o som que a garganta de Eric fez quando engoliu em seco. Olhou para ele. Surpresa e medo se misturavam em seus olhos cansados. “O que faremos?”, queria perguntá-lo, até que o soldado caísse, com um pesado baque sobre a lama.
Continuaram o observando, confusos. O homem permaneceu caído. Sem mostrar sinais de que iria se levantar.
Jonas desejou descer e ir até o seu corpo. Mas o medo, e as memórias da noite anterior, eram maiores do que a curiosidade. Percebeu um súbito movimento a sua esquerda. Graça se esforçava para descer das raízes e começou a caminhar no repugnante solo lamacento, em direção ao homem desconhecido. Jonas teve um rápido vislumbre de seu rosto. Mostrava um olhar preocupado. Sim, todos estavam preocupados. Mas era diferente. Era direcionado não e ela, mas ao homem que caíra. Era compaixão, percebeu. Leandro gritou para que esperasse, e correu atrás dela, a alcançando rapidamente. Porém não a convenceu a voltar pelo que Jonas percebeu, decidindo acompanhá-la. Eric e Túlio permaneceram parados. Assustados ao que parecia.
Ele refletiu por um momento, e, tomando a espada consigo, desceu também ele mesmo, caminhando até o soldado.
Atrás de si, ouviu Túlio bufar, inconformado. Não olhou para trás, no entanto.
Quando chegou perto do homem, dona Graça estava ajoelhada sore a lama. Leandro a ajudara a virar o homem, que tinha caído com o rosto no chão, para cima. Ele usava um capacete de metal cobrindo o seu rosto. Com uma couraça amassada no peito, e manoplas nas mãos, por cima do que pareciam ser roupas feitas de couro. Embora estivessem sujas pela lama, Jonas podia ver manchas de sangue na armadura.
— Ele não parece bem — afirmou dona Graça.
— Eu também não ficária bem depois de cair de cara no chão assim — observou Leandro.
Eles assustaram-se quando o homem se remexeu, tentando se levantar. Coisa que não conseguiu. Permaneceu deitado. Ofegando, gemendo. Jonas podia ouvir sua respiração pesada. O homem levou uma mão até o pescoço, tentando desabotoar algo com dedos nervosos.
— Calma — disse Graça — se acalme moço.
Ela o ajudou a retirar o capacete, revelando seu rosto. Era um jovem, viram. Mais velho do que eles. Tinha um rosto claro, cheio de sardas, e um cabelo claro. O qual Jonas não podia dizer se era loiro ou ruivo. Seus olhos verdes os encaravam, assustados.
— Quem sois? De onde vens? — exigiu saber.
— Quê? — respondeu Leandro.
— Você está bem? Está ferido? — Graça perguntou.
O soldado abriu a boca para responder, mas gemeu de dor, fechando os olhos em uma careta profunda. Ele levou a mão até a cintura. Onde havia uma pequena bolsa. Retirando um frasco pequeno o bastante para caber na palma da mão de Jonas. Havia um líquido transparente dentro. O soldado o destampou com dedos trémulos e o bebeu. Se acalmando logo em seguida. Seu rosto pareceu ganhar cor, e sua respiração ficou mais tranquila. Ele tentou se levantar, mas conseguiu apenas se manter sentado.
— O que foi isso que você bebeu? Algum remédio? — Jonas ouviu Eric perguntar ao seu lado.
O soldado olhou para ele.
— Foi uma solução preparada pelo meu fármo.
— Fármo? — Leandro repetiu confuso.
— Poderia ser que sois tão incultos que não sabes o que é um Fármo? — O soldado indagou com voz ríspida. Ajudem-me.
O homem ordenou que eles o ajudassem a retirar a armadura e limpar-se. Leandro e Jonas o carregaram pelos ombros, até o encosto da grande árvore que estavam descansando. Graça pegara um pouco de água, usando o capacete de Orland, para limpar as feridas do homem. Túlio se manteve mais afastado. Eric passou a maior parte do tempo o encarando.
Estava coberto de vários machucados e hematomas. Um deles, em especial, era um grande buraco vermelho escuro do tamanho de uma laranja logo acima de sua cintura. Não sangrava, mas estava aberto em carne viva. O que fez Jonas se questionar como ele continuava vivo, lembrando-se do frasco que Orland tomara um pouco antes. Graça ficou pálida ao ver o ferimento e se distanciou, tentando se acalmar. Ficando apenas Jonas, Túlio e Eric próximos ao homem.
— E quem é você? — Jonas perguntou.
O soldado então virou a cabeça em sua direção.
— Sou sir Orland Capro, filho de sir Radulf Capro. Cavaleiro de sua graça, Senhor Willhein Vogel, duque de Solar dos pássaros — disse com uma voz altiva e orgulhosa — E novamente, quem sois vós?
Jonas e seus amigos se entreolharam sem entender. Até que Leandro ergueu a voz.
— Meu nome é Leandro Borges do Nascimento, filho de José Almeida do Nascimento. Sapateiro que trabalha em uma lojinha no Centro.
O homem o encarou, sem entender.
— E o que faz a vagar nas marcas cinzentas, Leandro, filho de José, o sapateiro?
— Nós…
— Fomos atacados por dentes de adaga — Eric o interrompeu.
Jonas o encarou confuso. Eric apenas piscou um olho para ele.
— Dentes de adaga? — O cavaleiro estreitou os olhos.
—Sim — Jonas tomou a palavra —, estávamos viajando com uma caravana, mas os monstros a atacaram.
— A quanto tempo — Sir Orland exigiu saber.
— Alguns dias — respondeu.
O soldado, assim como todos os outros, olhou para ele confuso. Erick então, fez um leve aceno a os outros para que confirmassem, sem que o homem percebesse. Leandro e Jonas concordaram.
— Uma caravana? Tão longe das terras seguras? — questionou-se.
— De fato, escolhemos uma rota turbulenta — Eric sorriu.
Um sorriso inseguro, percebeu Jonas. Porém, para a sorte deles, o cavaleiro não os questionou mais sobre o assunto.
— E você não nos respondeu. De onde vens? — Ele questionou o soldado.
Mesmo que demonstrando certa indisposição, sir Orland respondeu.
— Faço parte de uma companhia sobre o comando de sir Gewarld Northbeth. Carregávamos mercadorias capturadas nas terras desoladas. E como vós, também fomos atacados por dentes de adaga durante a madrugada. Consegui escapar por pouco.
— Mercadorias? Que tipo? — Túlio perguntou.
O cavaleiro deu de ombros.
— Que importa, de todo o tipo. Pedras bestiais, relíquias e escravos.
Foi então que os pontos na cabeça de Jonas finalmente se ligaram. Ele olhou para Eric, que aparentemente já havia percebido muito antes.
“Ele estava levando a gente”.
O cavaleiro então olhou para a mão de Jonas.
— Essa espada, onde a conseguiu? — Seus olhos questionadores eram duros e afiados.
— É minha. Jonas respondeu.
— Lhe perguntei onde conseguiu — Orland insistiu mais uma vez, franzindo ainda mais seu cenho.
Jonas vacilou um pouco antes de responder — Era de um dos guardas da caravana — disse — peguei após ele morrer.
— Ele foi morto por um dos dentes de adaga? — Insistiu o cavaleiro.
Jonas concordou com a cabeça, e o homem suspirou com os olhos fechados, e então os abriu novamente.
— Uma vez que falam a língua de Palatinado, posso dizer que não sois bárbaros.
— Palatinado? — Túlio, que ficara o tempo todo atrás de Eric e Jonas, perguntou em voz baixa.
Eric fez um sinal para que ele se calasse.
— Sendo assim, peço que me sirvam e auxiliem até a próxima cidade, e os recompensarei de forma adequada — declarou sir Orland.
— É uma honra sir — Erick respondeu com um sorriso.
Jonas conhecia aquele sorriso. Suspirou cansado. Se perguntando para onde ele os levaria dessa vez.