Crônicas dos Caídos - Capítulo 21
— Que merda de calor infernal é esse? Sinto que estou cozinhando — Marcelo resmungou. Sua cara estava vermelha e suada.
Apesar dos avisos de Pamela e Ítalo, o homem, com notória falta de cabelos, teimou em continuar vestindo sua calça jeans clara, e camisa abotoada. Ítalo imaginava quão quente a careca do homem deveria estar.
— Como exatamente deveríamos dormir assim? — reclamou, remexendo-se sobre o chão de pedra.
— Falando de cinco em cinco minutos, é que você não vai dormir mesmo — Tyler retrucou, com os olhos fechados, deitado em uma posição relaxada demais para alguém naquela situação.
Marcelo murmurou, revirando-se novamente.
Ítalo considerava seu esforço para se sentir confortável um pouco inútil. Não importava o quanto mudassem de posição, não faria com que o chão rochoso ficasse menos duro. Nem a areia sumiria, ou o vento quente, que, em especial, incomodava bastante a Ítalo. Para além disso, o homem tinha o braço quebrado atado ao ombro. Pamela o enfaixara, amarrando um pedaço de madeira para imobilizá-lo. Mesmo assim, dormir em tais condições era um desafio. Ítalo mesmo duvidava de conseguir fazê-lo, estando em condições melhores que o homem. Mas, o cansaço causado pelas horas de caminhada da noite anterior sempre o vencia no fim. Assim como a Pamela e Daisy, que dormiam aninhadas, uma à outra, no outro lado do corredor natural que se formara no rochedo.
Eles seguiam viagem pela encosta escarpada das rochas a noite, se refugiando para dormir sobre as sombras de seu interior quando amanhecia. Também encontraram outras cavernas e estruturas pelo caminho, parecidas com as que viram na primeira noite. Era uma sorte que aquela estrutura geológica se estendesse daquela forma. Ítalo não imaginária quanto tempo durariam vagando por aquele mar de areia no horizonte. Repetiram isso por dias a fio, sem muito mais o que fazer além de procurar por alimentos. Algumas lebres e aves estranhas, que Tyler pegara em lugares mais “verdes” os alimentaram durante esse tempo. Marcelo os instruíra a como caçar e preparar os animais. O velho Homem parecia ter bastante experiência com o campo. Em especial com a caça. Não que gostasse muito de comentar a respeito. Seu humor era terrível graças ao braço quebrado, junto a mais outra coisa.
Ítalo olhou para o grande homem, com as mãos, pés, e boca amarrados, deitado a alguns metros de distância. Não estava dormindo. Mantinha um olhar fixo no horizonte além do imenso deserto.
“O que ele olha tanto?”.
Mesmo se perguntasse, o homem não responderia. Ele não falara nada desde o primeiro dia, após quase matar Ítalo, se limitando a gritar e berrar por conta dos braços e pés atados. O que fez com que pusessem algo em sua boca para que se calasse, sobre protestos de Pamela, que era a única que parecia se importar em falar com ele, ou ao menos tentar.
Por Tyler e Marcelo, eles o teriam deixado na caverna. Pamela fora contra, e os fez mudar de ideia. Daisy tinha medo do homem, na verdade, ela parecia ter medo de todos, exceto de Pamela, que conseguira conquistá-la no primeiro dia. Quanto a Ítalo, ele não sabia como se sentir. Deixar o homem para morrer teria sido muito cruel. Mesmo assim, não conseguia relaxar perto dele. Ainda sentia aquelas mãos apertando sua garganta, tirando seu ar. Como também das lágrimas caindo em seu rosto.
“Por que ele estava chorando?”, se perguntava frequentemente.
Mesmo se o perguntasse, a resposta que receberia seria um grito para que se afastasse, como o homem sempre fazia com Pamela. De qualquer forma não parecia que ele faria qualquer coisa com os braços, e as pernas, amarrados.
Ítalo procurou afastar seus pensamentos dele. Remexeu em sua fronha improvisada até sentir algo. Respirou fundo e a pegou. Uma dor começou a se espalhar por sua mão, como se seus músculos estivessem se contorcendo. Mesmo assim, ele conseguiu retirar a adaga e segurá-la. Tinham encontrado outras armas em ruínas e cavernas que encontraram no caminho, porém estavam todas quebradas e desgastadas. Essa, porém, parecia em melhor estado. A luz do sol, podia perceber melhor sua aparência. Era um pouco maior que a sua mão, possuindo um formato curvo. Tinha uma lâmina branca e limpa, e um cabo verde claro, com pequenas dobras em sua extensão. Parecia ser uma arma comum, se não fosse pela dor que provocava ao ser segurada.
O que a fazia ter aquele efeito sobre as pessoas? Por que alguém faria uma arma que ninguém poderia segurar? As perguntas brotavam em sua cabeça, como ervas daninhas indesejadas invadindo um jardim. A dor estava menor daquela vez também, percebeu, antes de colocá-la de volta na fronha.
Após algumas tentativas, ele percebeu que quanto mais forte a segurasse, maior seria a dor, como apertar uma pedra de gelo. De fato, o frio da arma lembrava uma. Se apenas a tocasse, o incômodo seria menor, porém, se a agarra-se com força, a dor seria estonteante.
“Quarenta e sete segundos…”, contou.
Ele repetia isso todos os dias, como um ritual, ou um experimento, como gostava de chamar. Segurar a arma o máximo de tempo que conseguisse. No início não conseguia fazê-lo por mais do que cinco segundos. Mas, dia após dia, aumentara esse tempo. Mesmo a dor também parecia ter diminuído. Ainda que fosse difícil de aguentar, não se comparava a sensação dos primeiros dias, em que parecia haver dezenas de agulhas rastejando como vermes pelo seu braço.
No entanto, sua evolução nesse aspecto pouco importava naquele momento.
Pamela lhe dissera, mais de uma vez, para se livrar dela. Marcelo o xingou de todos os nomes conhecidos quando encostou na arma. Mesmo Tyler não via motivos para manter aquilo com eles, referindo aos experimentos de Ítalo com a coisa como apenas “um fetiche estranho”. Ainda assim, isso o ajudava a se distrair. Desde a quadra, não conseguira descansar nem por um momento.
Sacudiu sua cabeça.
“Não”, disse a si mesmo. Não queria lembrar, não devia lembrar. Se lembrasse a dor voltaria. Mas era tarde, ali estava ela. Em seu peito, membros, cabeça. Seu copo estremeceu, começando a tremer. Suor frio escorreu por sua pele.
Ouviu novamente aqueles sons. Dos tiros, gritos e passos. Os passos, sim. Altos, irritantes, dolorosos, angustiantes. O que ouvia era som de dezenas de sapatos o pisoteando enquanto estava caído no chão, tendo sua voz abafada, sentindo seus ossos rachando, os órgãos estourando e sua mente colapsar. Por mais que quisesse, a dor não parava, os passos não paravam, os sons não paravam. Pareciam não ter fim. Ele fechou os olhos, tampando os ouvidos. “Sumam, desapareçam de uma vez, não quero ouvi-los”, dizia a si mesmo. Mas então, algo mudou. Não os ouvia mais. Tinham mudado. Para algo mais terrível. Escutou novamente aquele barulho que não compreendia. O que tinha escutado na sala do deus.
— Ítalo, o que há contigo?
Ele abriu os olhos. Pamela estava agachada próxima a ele com uma expressão preocupada em seu rosto.
— Está todo suado — Ela pôs sua mão suave sobre a testa de Ítalo. Ele sentiu-se repentinamente relaxado.
“Ela cheira bem”.
Ele se preocupou que o suor a incomodasse, e fez um gesto para tirá-la.
— Nada. Foi só… um pesadelo, eu acho — disse, tentando olhar para qualquer coisa que não fosse o decote exposto de sua túnica devido a posição em que ela se encontrava.
Pamela suspirou, sentando-se ao lado dele.
— Estou exausta — declarou ela — esqueci do quão difícil é cuidar de outra pessoa, mas vê-la assim é bem reconfortante.
Pamela olhou para onde Daisy dormia sobre uma espécie de “cama”, feita de meia dúzia de fronhas. Parecia estar tendo bons sonhos.
— Bem, você parece acostumada com esse tipo de coisa — observou Ítalo.
— É que eu tive uma irmã mais nova — Pamela disse, com um olhar vago para as mãos juntas sobre os joelhos.
Seu sorriso afável pareceu perder força.
— E você, tem irmãos? — Ela virou-se, e perguntou para ítalo, abrindo mais os cantos dos lábios.
Ítalo piscou com a pergunta.
— Sim, mas só por parte de pai — Ele olhou para baixo ao responder.
— Hum, mas vocês são próximos?
— Não muito — Ítalo expirou, coçando o nariz e o queixo.
— Ah, certo — Ela disse, talvez sentindo o desconforto dele — Se incomoda de eu dormir aqui?
Ítalo piscou em surpresa novamente. Ele limpou a garganta antes de responder.
— Não, pode ficar à vontade — disse tentando parecer mais natural possível.
— Ótimo. Nada de travessuras enquanto eu estiver dormindo.
Ítalo não fazia ideia da expressão que fizera ao ouvi-la dizer aquilo, mas foi o suficiente para que ela risse.
Pamela se reclinou, relaxando o corpo, pondo uma fronha cheia de tecidos contra a parede rochosa do corredor. Ela expirou fechando os olhos. Deixando apenas Ítalo acordado.
Por pouco tempo, no entanto. Após alguns minutos de pura contemplação da bela mulher ao seu lado, ele calmamente apagou.
Se viu então sentado em seu quarto, na frente do computador. Via os perfis de alguns colegas seus. Carmen postara imagens de alguma série médica, dizendo o quão falso aquilo era. O grupo do fundo aparentemente tinha ido a uma festa, apesar de ser plena quinta feira. Provavelmente faltariam a aula no dia seguinte. Jonas tinha posto uma mensagem de parabéns para um dos avós, a qual Júlia curtira. Leticia postara uma foto na praia. Seu corpo atlético caia bem em um bikini. Ele ficou algum tempo parado, admirando-a, quando percebeu alguém ao seu lado.
— A mãe vai brigar contigo se souber que tá vendo essas coisas ao invés de estudar.
Ítalo olhou para o lado assustado, encarando um leve sorriso adornado pelos olhos atrevidos de Abner.
— O que tá fazendo no meu quarto? — perguntou irritado.
— Vim pegar seu tênis emprestado para o passeio de amanhã — O garoto respondeu, se adiantando em pegar os sapatos, antes que Ítalo esboçasse qualquer reação.
— Os meus? Cadê os seus?
Abner deu de ombros.
— Você nem procurou né? Cara, se arrumasse o seu quarto, não perderia as coisas.
— Mamãe disse que eu podia pegar — O garoto respondeu, antes de sumir pela porta com os tênis nas mãos. — Ah — Pôs a cabeça para dentro do quarto. — Ela disse para você desligar o computador e ir dormir logo — falou, e desapareceu novamente.
Ítalo suspirou, fazendo o que lhe foi pedido, ou teria o computador tomado novamente. Eram apenas nove horas da noite, mas sua “mãe” exigia que ele dormisse nesse horário, para que acordasse cedo e fizesse as tarefas da casa no dia seguinte, antes de ir para a escola. Se não o fizesse, ela ficaria irritada. Seu pai estava viajando por conta do trabalho. Embora, mesmo que estivesse em casa, não faria muito para defender o filho. Afinal “Ítalo era culpa dele”, como ouvira escondido sua “mãe” dizer tantas vezes.
Após desligar o computador, ele saiu do quarto caminhando pelo corredor, desejando não ver a sua “mãe” no caminho até o banheiro. Ainda que ela normalmente não lhe fizesse nada além de uma cara feia, Ítalo desejava evitá-las mesmo assim. Sentiu-se aliviado quando chegou a porta do banheiro sem encontrá-la. Virou a maçaneta, estranhando a facilidade com que a velha porta abriu. Habitualmente precisaria erguê-la para que não emperrasse.
Ele atravessou a porta, e então tudo ficou escuro. Procurou pela tomada, não a encontrando em seu lugar habitual. Olhou para trás, percebendo que até a fraca luz do corredor havia desaparecido. Procurou as paredes do banheiro, sem conseguir encontrá-las. Pareciam terem simplesmente desaparecido. Olhou para baixo, notando algo. Uma sombra. Depois levantou sua cabeça para cima, na direção oposta a ela. Havia uma chama azul irradiando um pouco de luz na escuridão.
— Enfim consegui entrar em contato contigo, oh portador da pedra de Hefesth — Uma voz vinda da chama falou.
Ítalo a encarou sem entender o que estava acontecendo.
— Ouça as minhas palavras. Atravesse o grande mar dourado em direção à estrela da tarde.
— O que… o que isso quer dizer, quem é você? — perguntou, perturbado. Já tinha ouvido aquela voz antes, mas onde?
— Lá encontrarás…. — A chama subitamente desapareceu, se extinguindo em fagulhas, enquanto Ítalo a encarava atordoado.
Então um som alto irrompeu em seus ouvidos. Ele imediatamente os tapou, tentando abafá-lo. Um som agudo, como se garras estivessem arranhando seus tímpanos. Já o tinha escutado antes, mas onde?
A dor aumentou em seus ouvidos. Ítalo ouviu um grito, e então abriu os olhos. Um homem encapuzado estava caído, se contorcendo. Ao seu lado jazia a adaga branca que tinha pegado da tumba.
— Droga Luqa, eles acordaram — alarmou uma voz.
Ítalo se levantou de sobressalto, vendo que mais estavam espalhados pelo corredor rochoso. Contou ao menos quatro.
— Ladrões — gritou Tyler, derrubando um deles com um soco.
As garotas acordaram assustadas.
Os homens encapuzados se agitaram ao verem Tyler derrubando um dos seus. Outro deles correu na direção de Ítalo, com uma mão dentro de sua capa.