Crônicas dos Caídos - Capítulo 22
A mão saiu da capa, e, um segundo depois, os olhos de Ítalo arderam. Ele os tapou com suas mãos, gritando. Sentiu um peso contra o seu corpo que o empurrou para trás, contra a dura parede rochosa. O mundo a sua volta se tornou uma confusão embaçada por um momento, até que sua visão voltasse ao normal.
Ele olhou para o seu redor, tentando entender o que estava acontecendo.
Marcelo estava em cima do homem que caíra antes. Mesmo com o seu braço incapacitado ele segurava seu oponente, xingando a mãe do mesmo de todos os nomes possíveis. Mais a frente no corredor, Tyler enfrentava Três homens encapuzados, desviando de um enquanto batia em outro sucessivamente.
— Rápido, Zaya já fugiu. Precisámos ir tamb… — Um deles gritou antes de Tyler elevar o pé até o seu queixo.
A parte superior de seu corpo girou noventa graus, retornando a mesma posição logo depois, como um chicote, antes que suas pernas cedessem e homem tombasse com um baque no chão.
Tyler então avançou contra o segundo que cambaleou para trás hesitante. Estava prestes a alcançá-lo, quando foi obrigado a se agachar, com o braço do terceiro inimigo resvalando em seus cabelos. Tyler então rodopiou sua perna, acertando a parte de trás dos tornozelos do adversário, derrubando-o. Isso deu tempo para o oponente que recuara tomar iniciativa.
Ítalo pensara em ajudar Tyler, quando ouviu um gemido ao seu lado. Marcelo agora estava sendo pressionado contra o chão por seu oponente, que agora estava em cima dele. Segurar alguém com um só braço realmente não era possível. Ítalo saltou, dando uma joelhada no rosto do ladrão. Percebendo depois, devido a dor no braço ao se chocar contra o chão, o quão ruim a sua ideia foi. Levantou-se de imediato, encarando o homem a sua frente. Tentou dar um soco nele, porém o mesmo se esquivou, girando o corpo. Ítalo sentiu uma pancada atrás da cabeça, cambaleou alguns passos, e virou-se, porém o capuz não estava à vista. Então sentiu algo acertando a parte de trás de suas pernas.
Ele caiu de joelhos. Então sentiu uma pancada na lateral de seu rosto, que fez o mundo ao seu redor girar. Ítalo caiu no chão, engolindo um pouco de areia. Ouviu vozes e passos. Tremeu por algum motivo. Ele se virou engatinhando, tentando se levantar. “Preciso me levantar”, repetia a si mesmo, “Ou acabarei daquele jeito novamente”, pensou lembrando da quadra. Tentou até que sentiu algo o agarrar e erguer. Um braço. Era Tyler, percebeu.
Com certo esforço, Ítalo se pôs em pé. Estava ofegante. Sua perna doía e um zunido incomodava o ouvido que fora acertado antes. Aparentemente os homens encapuzados haviam fugido.
Tyler os havia afugentado, percebeu com espanto, sentindo um gosto estranho na boca, junto com o sabor do sangue que de lá fluía.
Pamela ajudava Marcelo a se levantar. Daisy estava parada atrás dela. Como se escondesse. O homem gordo continuava dormindo, como se nada tivesse acontecido.
— Merda, quem diabos eram aqueles putos? — resmungou o velho e calvo Marcelo segurando o braço machucado.
— Vamos perguntar a um deles — Tyler disse secamente, caminhando até um homem, um dos que ele enfrentara, caído no chão.
Estava encolhido sobre um de seus ombros em posição fetal, sem a capa. O que tornou visível a sua pele marrom. Ítalo notou que seu pé estava virado em uma posição estranha.
Tyler pisou na perna virada. O homem soltou um sonoro grito de dor. Ao se aproximar, Ítalo reparou o quanto ele era jovem. Parecia ser mais novo do que ele mesmo.
— Ah, foi mal. Esqueci que tinha quebrado — Tyler disse com uma voz estranhamente divertida, comparada ao tom habitual.
Um sorriso malicioso surgiu em seus lábios, antes cerrados.
— Isso tá bem feio. Queria poder te ajudar, mas não sei o que fazer. Talvez aqueles seus amigos possam fazer algo, mas eles foram embora tão rápido — Pisou novamente.
— Pra quê fazer isso? — Pamela protestou. Daisy estava agarrada a ela.
— Depois de ser acordado de forma tão amigável, eu preciso desestressar — Tyler respondeu, dando de ombros, e então chutou a barriga do homem.
— Espera — Ítalo falou atraindo a atenção de todos — Podemos aproveitar para perguntar onde estamos.
Marcelo revirou os olhos.
— Acha que esse ladrão é algum tipo de guia moleque? — resmungou. A atadura em seu braço havia se rasgado.
Tyler saiu de cima dele.
— Não, o garoto tem razão. Você, diga, onde estamos?
O ladrão tentou se erguer, mas caiu sobre o braço, urrando de dor.
Tyler se aproximou, pisando novamente em sua perna.
— Anda, não temos o dia todo.
O garoto os encarou, assustado.
— Narsã… estão em Narsã — respondeu, mais gemendo do que falando.
Marcelo cuspiu.
— Não nos ajuda muito — bufou.
— Não, nos ajuda sim — Ítalo retrucou, avançando na direção do homem — Há cidades por aqui, ou algo do tipo?
De alguma forma, o seu lado curioso assumira o controle de seu corpo.
O ladrão lhe encarou confuso.
— Sim, há — respondeu hesitante.
Ouvir sua resposta encheu Ítalo de empolgação a um ponto que nem lembrava mais de suas dores.
— E o que importa se há cidades nessa caixa de areia gigante — murmurou Marcelo.
— Importa muito — declarou Pamela — Cidades significam pessoas, casa, comida e cama — Ela suspirou, fechando os olhos e fazendo expressões cada vez mais sofridas enquanto falava — Ah, o que eu não daria por um bom banho.
— Vamos para uma cidade? — Daisy perguntou a ela.
— Tomara que sim querida — Pamela respondeu, passando a mão sobre a cabeça da garota.
Tyler pigarreou.
— Um banho seria legal e tudo, mas acho que o mais importante agora é esse cara — Deu um peteleco na testa do ladrão.
Que se encolheu.
— N… não voltária a me tocar se fosse você — Balbuciou, erguendo a cabeça para Tyler, que apenas sorriu.
— E por quê?
O ladrão se contraiu um pouco e então tomou coragem para responder.
— Sou um servo do grande Baaz ouviu? — declarou com confiança.
Pamela, Tyler e Ítalo. Ambos franziram o cenho, trocando olhares entre si.
O ladrão os encarou, como se esperasse por alguma reação.
— E que caralhos isso deveria significar? — Marcelo grunhiu, exprimindo o que todos pensavam.
O garoto piscou os olhos em surpresa, engolindo em seco. Supostamente isso deveria significar algo. Mas o que?
— Quem é esse? — Tyler perguntou.
— O grande Baaz… ele… ele é o senhor dessas terras — respondeu-lhe o ladrão.
— De Narsã? — Indagou Ítalo.
O ladrão franziu as sobrancelhas, negando com a cabeça.
— N… não. De nossa vila, quero dizer. Ele é…
— Tá bom, tanto faz — Tyler declarou, interrompendo-o — Só nos diga logo como chegamos à cidade?
— E… eu não sei… — o ladrão gaguejou.
— É melhor descobrir nos próximos cinco segundos — Tyler se agachou, tomou uma das mãos do garoto e agarrou o dedo mindinho — Cinco… quatro…
— O que você vai fazer? — Pamela perguntou.
— Três…
— Ei, isso é exagero — Ítalo protestou, entendo suas intenções.
— Dois…
— O que? O que ele vai fazer? — O garoto disse desesperado.
— Um…
Um estalo foi ouvido. Junto de um grito de dor.
— Lembrou agora, ou vou ter que quebrar outro dedo? — disse Tyler, friamente.
— Tyler, para com isso — Pamela o puxou pelo ombro.
Ele se virou e a encarou com olhos irados. Ficou parado por alguns segundos, e então sua face mudou gradualmente. Seu olhar furioso sumiu, assim como seu sorriso. Sua expressão estranhamente calma. Olhou para Ítalo, Mauricio e Dais, inspirou e expirou, expelindo uma grande quantidade de ar pelo nariz, e então estalou a língua.
— Quer saber, tanto faz. Resolva isso aí se quiser, eu vou dormir. Me acordem se aqueles caras voltarem — falou, se afastando.
Ítalo ficou o observando, sem entender seu comportamento.
Pamela suspirou. Aproximou-se do ladrão ferido. Que se retraiu.
— Calma, eu não vou te machucar… ainda mais. Qual é o seu nome?
Ele a encarou por um tempo incomodamente longo.
— Touma — disse por fim.
— Tá bom, ‘Touma’, ok. É… meu nome é Pamela. Por que você tentou nos roubar?
O homem olhou para ela com uma expressão incerta.
Ítalo sentiu algo estranho, como se um cheiro diferente permeasse o ar. Sentiu-se mais calmo.
— É sério que ‘tu’ tá perguntando isso? — Marcelo grunhiu.
— Deixa ele responder — Pamela pediu.
— Eu… nós… O senhor Baaz nos mandou vigiar as estradas da passagem de pedra a procura de viajantes.
— Passagem de pedra? — Ítalo murmurou para si mesmo — É nome desse lugar?
Touma concordou com a cabeça.
— Se é uma passagem, então leva a algum lugar — Ítalo pensou em voz alta.
Pamela voltou a falar.
— Touma, pode nos dizer como chegar a uma cidade? — Ela pediu, segurando a mão dele.
O rapaz engoliu seco, se remexeu, e depois abriu a boca.
— Sigam naquela direção — Apontou com o braço — A passagem irá se abrir em um vale onde há uma cidade chamada Narkul — Ele levou a mão até a testa, limpando um pouco de suor.
— Aqui tem muitas fontes e oásis — Ítalo apontou — Não tem nenhuma vila por perto.
O ladrão olhou para Ítalo. Parecia incerto se iria responder ou não. Depois para Pamela, que confirmou com a cabeça.
— Há vilas dentro da passagem, porém todas são governadas por um anfitrião. O senhor Baaz é um. Eles — tossiu — deixam-nos ficar contanto que trabalhemos.
— Roubando — concluiu Ítalo.
Touma concordou, e então olhou para baixo.
— Obrigada por nos contar Touma — agradeceu Pamela, sorrindo de forma gentil — Vou te ajudar com esses ferimentos.
Pamela começou a tratar o jovem. Ela parecia ser bastante experiente em primeiros socorros, considerando que também havia ajudado Marcelo.
Ítalo teve sua atenção atraída para o velho homem calvo que grunhia ao seu lado.
— E agora lá é hora pra isso? — disse o homem observando-a cuidar do garoto — Precisámos dar o fora daqui. Não sabemos quando aqueles filhos da puta podem voltar.
— Verdade — concordou Ítalo — ‘Vamo’ ajeitar as coisas e depois acordar o Tyler.
Marcelo estalou a língua.
— Podíamos deixá-lo dormindo aí mesmo.
Ítalo apenas riu, se aproximando das fronhas que carregava e as juntando. Então se lembrou de algo. Procurou desesperadamente pelo chão até encontrar a adaga. Ele a revestiu de tecidos e a amarrou dentro de sua túnica. Só depois percebeu que o resto das suas bolsas havia sumido.