Crônicas dos Caídos - Capítulo 23
O vento do deserto soprou sobre o rosto de Zaya. Ela olhou para o horizonte, onde o sol há muito tempo submergira por detrás dos infindáveis montes dourados que compunham o mundo em que vivia. Ouvira histórias de outros mundos, muito diferentes daquele. Seu pai lhe contara sobre lugares além da areia. Um mundo azul conhecido como mar, feito inteiramente de água, onde viviam estranhos seres conhecidos como peixes. E um verde, repleto de árvores, em que a comida era abundante.
Era difícil imaginar ambos. O único azul que conhecia era o do céu acima de sua cabeça. E só vira verde nos cactos cultivados na aldeia e em tecidos que encontrara.
Estava cansada. Tinham demorado meio-dia para retornar ao ponto de encontro após falharem em roubar aqueles estranhos viajantes. Depois, tiveram de voltar ao local para procurar quem ficara para trás, por insistência de Luqa. E depois, demoraram mais um dia inteiro para voltar a aldeia.
Quando se aproximaram, para sua surpresa, ela sentiu que havia alguém vivo. Era Touma. Encontraram-no caído no mesmo local. O imbecil estava com braço e perna quebrados. Mas estava vivo. Parecia querer comprovar isso pelo tanto que falara durante a viagem de volta, sobre como resistiu à crueldade dos viajantes que o capturaram. Pelas ataduras e curativos, a história carecia de veracidade, porém Zaya não se importou em questioná-lo. Queria apenas voltar para a aldeia.
Luqa, no entanto, não ficara satisfeito. Persistindo em procurar pelos outros dois até a hora em que o sol estava quase tocando a areia, no limiar do horizonte. Foi então que concordou em retornar.
Rume carregou Touma, que não podia andar, em seus ombros largos. Talvez por vergonha de ter sido derrubado por um chute, antes que Touma o salvasse, avançando sobre aquele homem assustador com quem brigaram. Zaya tentou senti-los novamente, porém sem sucesso. Estavam longe demais.
Bom.
Esperava não os ver nunca mais. Principalmente aquele homem com a “sombra” estranha.
“Por Assh’hur, o que era aquele monstro?”, pensou recordando da sensação de sua sombra.
A forma como ele derrubara Rume, logo após nocautear Batna com um golpe, a encheu de medo. Além do estado que Touma tinha ficado. Nem ela, ou outro dos coletores podiam usar armas. Apenas os guardas do anfitrião tinham permição para tal. A única coisa que Zaya tinha para se proteger era o pó de areia vermelha que carregava consigo. E após usá-lo, ela fugiu como um rato de areia se escondendo de um gato dourado. Correu até o local de encontro, e esperou ansiosamente até que Luqa e Rume apareceram. Touma havia ficado para trás para que os dois fugissem. Porém não viram sinais de Batna ou Sargh.
Provavelmente já haviam voltado para a vila, decidiu pensar.
E agora eles estavam voltando também. Embora a única coisa que tivessem conseguido naquele dia fossem tecidos, restos de armas velhas, sementes, e pedaços velhos de pergaminhos rabiscados que conseguiram tomar dos viajantes.
“Tomara que sejam do agrado do anfitrião”, desejou.
Chegaram até dois grandes portões de ferro negro. Não sabia quando tinham sido feitos, apenas que eles já existiam antes de seus avós nascerem. Luqa bateu palmas três vezes, e após poucos segundos eles se abriram.
Zaya respirou aliviada ao atravessá-los. Sentia a areia entrar em cada parte do seu corpo. Isso em si não a incomodava, mas lhe dava um lembrete. Estavam próximos da época das tempestades, onde nem os enormes vermes de areia se atreviam a subir a superfície. Logo as nuvens douradas seriam grandes o bastante para invadir até mesmo as mais profundas cavernas da passagem de pedra. Seria difícil sobreviver fora de uma aldeia. Seus pais não sobreviveram.
Os guardas os observaram passar com desdém. Alguns lançaram olhares com certo interesse sobre ela, que fazia o possível para ignorá-los.
Um corredor seguia até se abrir em um pátio aberto, repleto de casas de pedra, que se amontoavam desde o solo até o alto da enorme abóbada que cobria a praça. Centenas de hóspedes da aldeia se aglomeravam em volta de uma grande fogueira no centro do pátio para fugir do frio da noite. Estavam divididos em dois grupos. Cultivadores, covardes que não saiam da aldeia. E coletores, como ela, que se arriscavam todos os dias fora dos portões, tendo de lidar com viajantes, ladrões e coletores de outras aldeias.
— Ah, que saudades senti desse cheiro — declarou Rume.
O cheiro referido era o de uma sopa distribuída entre os moradores, junto a pedaços finos de pão. Aquele seria o seu jantar naquela noite. Assim como fora em todas as outras.
Zaya ouviu seu estômago roncar quando o aroma familiar invadiu o seu nariz. Fitou a multidão, imaginando se Batna e Sargh estavam lá, comendo e bebendo, após serem castigados pelo Anfitrião por retornarem de mãos vazias. Assim como ocorreria com eles logo mais. Pensou se a sua irmã estaria naquele meio também. Talvez já houvesse ido embora. A garota era uma das primeiras a pegar a refeição, apesar da tenra idade. Muito por causa de Zaya e de seu dom.
Desejou ir para casa e se juntar a ela. Porém, o seu grupo ainda tinha de se apresentar ao Anfitrião Baaz antes.
Deixaram o pátio para trás, subindo uma das várias escadarias que levavam para as casas elevadas. A aldeia era iluminada por tochas noite e dia, devido à falta de luz solar.
Enquanto subiam os degraus, seu corpo começou a tremer levemente. Não por causa dos olhares dos homens em volta, ou do frio. Mas pelo que os esperava. Passaram quatro dias fora, e retornaram sem muito o que oferecer. O Anfitrião era paciente, mas não tanto assim.
Talvez ele se agrade do que trouxeram. Mas Baaz já tinha muitas túnicas, e ricos tecidos. Além de não ser um grande apreciador de riscos e papel. Quão estúpida ela devia ser para pensar em trazê-los a sua presença? Mas já era tarde. Eles já tinham se aproximado demais da casa do Anfitrião para voltar.
Era um grande arco, cercado de pilares em ambos os lados. Uma porta de ferro no centro do arco dava acesso ao interior.
Zaya congelou a poucos metros da entrada, atraindo a atenção dos guardas próximos. Luqa se adiantou.
— Viemos nos apresentar ao grande Baaz. Sou Luqa, filho de Behnam.
Os guardas discutiram entre si por um momento antes de lhes darem passagem.
O anfitrião era a figura mais importante na aldeia, com todos os hóspedes que buscavam refúgio nela lhe devendo o mais devido respeito. Porém, abaixo dele existia uma classe que detinha certa influência. Eram os chamados residentes. Eram os moradores mais antigos, os quais davam conselhos ao anfitrião com relação proteção e o governo da aldeia. Os filhos de um residente também eram considerados com grande estima. Luqa era um desses. Ela já fora também, embora isso não mais importa-se.
O interior era iluminado por dezenas de tochas espalhadas pelas paredes do grande salão de audiências. O anfitrião Baaz estava sentado em um cadeirão de argila vermelha forrado de almofadas e sedas, atrás de uma grande mesa de pedra. Guardas o cercavam em ambos os lados. Com lanças e cotas de couro costurado. Ele usava uma túnica branca com botões azuis. Suas mangas pareciam apertadas nos ombros e braços. Um olhar duro jazia em seu rosto, observando-os com indiferença enquanto se aproximavam.
Ao seu lado, em pé, estava um homem de aspecto magro, com braços longos e finos, vestindo uma longa túnica azul escura que o cobria do pescoço aos pés. Um sorriso se formou no canto de seus lábios quando os viu.
“Saadi? Por que ele está aqui?”, Zaya perguntou-se perturbada.
— Filho de Behnam — falou o anfitrião com uma voz rouca.
— Grande Baaz — Luqa o saudou curvando-se em uma reverência, que os demais imitaram. — Retornamos com nossas contribuições — Ele ajoelhou oferecendo sua bolsa.
Zaya se concentrou no que poderia agradá-lo. A bolsa estava repleta de ovos e sementes, coisas que poderiam agradar o paladar do homem. Como também de pedaços de ferro, do que for que encontrassem. Ferro era valioso. Podendo ser derretido para fazer panelas e armas. O anfitrião os estudou sem muita reação.
Zaya fez o mesmo. Mostrando-lhe os pergaminhos e tecidos. A isso ele demonstrou apenas um suspiro de desdém.
— Preocupei-me após ouvir dois dos seus que voltaram mais cedo sobre o seu incidente, filho de Behnam. E agora vejo que tal preocupação não era infundada — disse olhando para Touma, que ainda estava nos ombros de Rume.
Zaya levantou uma sobrancelha ao ouvi-lo se referir a Batna e Sargh. Então de fato tinham voltado mais cedo.
— Não foi nada muito sério — Luqa respondeu. — Apenas não esperávamos encontrar tamanha dificuldade.
— Entendo.
O anfitrião pôs ambas as bolsas na mesa, e voltou sua atenção para Luqa. Zaya percebeu algo estranho em sua expressão. Não mostrava mais aquela monotonia aborrecida de sempre.
— És um jovem valente, e um combatente valoroso — disse Baaz com um suspiro.
— Fico grato que me estime dessa forma grande Baaz.
— Quantos anos tem, filho de Behnam?
Luqa arqueou uma sobrancelha.
— Será minha décima nona tempestade de areia, grande Baaz.
— Lembro-me que seu pai tinha essa idade quando veio a nós pedir abrigo ao antigo anfitrião. — Ele lambeu os lábios secos, produzindo um incomodo som úmido, antes de voltar a falar. — Eu era o filho de um residente na época, pouco disposto a assumir qualquer responsabilidade, até conhecê-lo. E graças a ele, tornei-me o que sou hoje.
Zaya olhou para os lados. Havia tantos guardas assim quando entraram?
— Perdoe-me, grande Baaz, mas não entendo o que quer dizer — disse Luqa, visivelmente confuso.
Baaz revirou os olhos com claro aborrecimento. Ele grunhiu fazendo os pelos no pescoço de Zaya se eriçarem.
— Tragam-nos — ordenou com um brado.
Logo depois, guardas entraram por uma porta lateral arrastando três homens perceptivelmente machucados. Um deles era o pai de Luqa.
— Pai? — Luqa gritou, se levantando de imediato.
— Batna, Surgh — Zaya falou surpresa, dando um passo para frente inconscientemente.
Os guardas baixaram as lanças, cercando a Zaya e os outros em um círculo fechado.
— Senhor, o que significa isso? — Luqa perguntou transtornado.
Baaz bufou em desdém.
— Ainda fingirá que não sabe, garoto?
— Baaz, ele não sabia de nada — gritou o pai de Luqa —, apenas eu e… — Ele começou a sufocar e se engasgar.
Saadi chiou, pondo um dedo nos lábios.
— Não fale com o grande Baaz tão mundanamente, traidor — disse em um tom assustadoramente animado.
— Pai! Pare com isso — gritou Luqa, avançando na direção do homem.
— Calma, Luqa — Rume o segurou.
— Acha que vou acreditar em suas palavras traidor? — disparou para o pai de Luqa, que ainda tossia no chão.
— É verdade, oh, grande Baaz — Batna ergueu a voz desesperado —, não sabemos de nada sobre o que quer que esteja acontece… — Um soldado o silenciou acertando-o com cabo da lança.
O anfitrião olhou para o pai de Luqa.
— Behnam, assim como me ajudou a ser o que sou hoje, você também conspirou para me derrubar, e assumir meu lugar. Não posso perdoar tal crime. Mas, como me auxiliou por todos esses anos, darei essa pequena misericórdia ao seu filho e o pouparei.
O rosto do pai de Luqa pareceu aliviado com as palavras do anfitrião. Zaya, no entanto, se preocupou com as palavras ditas, e ainda mais, com as lanças ainda apontadas em sua direção.
Baaz então se voltou para Luqa, Zaya se encolheu ainda que ele não estivesse olhando propriamente para ela. O homem retirou algo de sua cintura e a apontou em direção a Luqa.
Era uma faca.
— Corte a garganta de seu pai, e prove sua inocência — ordenou.
Luqa permaneceu parado, sem qualquer reação. Zaya partilhava de seu sentimento. Por um instante ela esquecera de como respirar.
— Por que está parado como uma estátua, garoto? Não ouviu o grande Baaz? — disse Saadi.
Zaya percebia o divertimento do homem enquanto assistia a cena.
— Ou será que também tens parte nesse crime?
O rosto de Luqa se contorceu. Parecia ainda digerir aquela situação.
— É um engano — se ajoelhou —, meu pai jamais o trairia grande Baaz.
Baaz bufou, abaixando a faca.
— Behnam, diga ao seu filho se sim ou não.
Zaya olhou para o homem, vendo um rosto marcado pela culpa e pelo arrependimento. O mesmo rosto que seus pais fizeram quando partiram.
— Pai, por que não nega? — Luqa falou. Lágrimas escorriam por seu rosto.
— Precisa entender, Luqa, eu…
Um guarda o acertou com o cabo da lança.
— Sua decisão, filho de Behnam — Baaz jogou a faca aos pés de Luqa.
Luqa maneou a cabeça, respirando com dificuldade.
Baaz estalou a língua.
— Faça — ordenou, olhando para a direção em que o pai de Luqa e dos outros dois estavam.
— Não!
— Batna!
Luqa e Touma gritaram ao mesmo tempo. quando um dos guardas abriu a garganta de Batna com uma faca. Rume caiu de joelhos chorando.
Sargh ficou pálido quando o corpo de Batna caiu ao seu lado. Implorando por misericórdia.
Zaya apenas encarou aterrorizada enquanto o líquido carmesim se espalhava pelo chão de pedra lisa.
— Agora, filho de Behnam, direi novamente. Decida-se — Baaz falou.
— Faça filho — Vociferou o pai de Luqa.
Luqa então pegou a faca e se ergueu, caminhando na direção de seu pai.
O peito de Zaya batia incontrolavelmente. Ela não podia acreditar em seus olhos.
— Ele vai mesmo fazer isso? — Touma perguntou, perplexo.
Luqa, então, parou a três passos de seu pai, e num movimento rápido, virou-se com a faca em mãos e avançou contra Baaz. Pulando sobre a mesa, para o espanto de todos, menos do próprio Baaz, que não esboçou qualquer reação quando um de seus guardas se pôs entre ambos em uma velocidade sobre-humana, e sacou sua espada, decapitando Luqa com um corte rápido.
— Não! — gritou o pai dele.
Zaya levou as suas mãos a boca, enquanto via o corpo do companheiro tombar sobre a mesa de pedra sobre as bolsas que ali estavam, espalhando seu conteúdo pelo chão. Touma vomitou, e Rume apenas encarou a cena perplexo.
Baaz se levantou. Era um homem alto e corpulento, com um físico imponente apesar da idade. Ele contornou a mesa, caminhando até o pai de Luqa.
— Seu filho era realmente leal e corajoso, velho amigo. Muito diferente de você — disse tomando a lança de um dos guardas.
— Maldito bastardo — Berrou o pai de Luqa. Antes que a lança fosse afundada em seu peito.
— Grande Baaz, o que faremos com eles? — perguntou o guarda que decapitara Luqa, olhando para Zaya e os outros.
— Matem-nos, com exceção da buscadora — respondeu Baaz com indiferença.
Os soldados avançaram com as lanças erguidas contra eles. Zaya ouviu a voz esganiçada de Surgh sumir repentinamente.
— Espere, grande Baaz — disse alguém.
— O que foi, Saadi — Baaz falou erguendo uma mão.
Os guardas pararam no mesmo instante.
O homem magro se aproximou deles com pergaminhos amarelos nas mãos.
— Onde encontraram isso? — Ele perguntou.
Zaya lutou para responder. As palavras pareciam fugir de sua língua.
— Encontrámos com os viajantes com que lutamos — Ela disse com a cabeça baixa.
— Oh — disse o homem, admirando os papeis.
— O que há com esses papeis, Saadi? — perguntou Baaz.
Falavam como se quatro pessoas não houvessem acabado de morrer na sua frente. Zaya tentava não se desmaiar por conta do cheiro forte de sangue infestando o salão.
— Embora não possa comprovar, é quase certo que sejam tomos encantados.
— Tomos encantados? — A expressão de Baaz mudou. Seus olhos se alargaram.
Zaya escutara sem entender nada.
— Lembram-se onde esses viajantes estão? — Saadi perguntou para eles. — Desejo muito encontrá-los. Quem sabe não há mais com eles.
— Fugimos após o confronto. E quando retornamos, e… eles já haviam partido… senhor — respondeu Rume.
A expressão de Saadi se fechou.
— Ah, que decepção — disse se afastando.
Baaz baixou a mão e os soldados voltaram a avançar.
— Espere, espere — gritou Touma. — Eu sei para onde eles foram, eu sei.
— Mesmo? Para onde então? — Baaz questionou, erguendo a mão novamente.
— Para Narkul, eles partiram em direção a Narkul.
— Para o norte, ótimo — Saadi murmurou, e então se virou para o anfitrião. — Peço permissão para levar um grupo de coletores e guardas até lá, Grande Baaz.
— Esses tomos são importantes de tal forma?
O homem magro apenas concordou com a cabeça.
— Então, está bem. Leve quem tiver vontade.
— Agradeço sua generosidade — Saadi fez uma reverencia. — Precisarei da buscadora — disse, olhando para Zaya.
— Quanto aos outros?
— Não tenho necessidade alguma.
— Está decidido então — Baaz abaixou sua mão, e os soldados avançaram.