Crônicas dos Caídos - Capítulo 3
Estava claro como o dia, mas não havia sol. Apenas um vasto céu azul sem nuvens. Vazio. Tão vazio quanto aquele lugar. A sua frente, estava uma enorme porção de água, semelhante a um mar. Mas era um rio, ela sabia, tão grande que não conseguia ver a outra margem. Podia perceber quão poderosa era a sua corrente pelo som de suas águas. Atrás de si, havia campos brancos, que se estendiam até onde a vista alcançava. Eles lhe davam uma estranha sensação de calma.
Quando havia chegado ali? Não se lembrava. Era como se toda a sua vida fosse aquele momento. Seu corpo estava leve. Não sentia calor ou frio. Nem se lembrava o que era dor ou prazer. Todas essas palavras eram apenas sons sem significado. Ela olhou para os lados, para onde as praias, que se formavam na margem do grande rio, se estendiam.
Havia… pessoas, dezenas delas. As observou. Algumas estavam paradas, tais como ela. Outras, se afastavam da margem, indo alegremente até os extensos campos. Outras, entravam no rio, desaparecendo na correnteza, ou sendo jogadas de volta na margem, apenas para entrarem de novo. Usavam roupas brancas resplandecentes, semelhantes a vestidos. Olhando, finalmente, para si mesma, viu que usava as mesmas roupas.
Ela continuou observando o rio e aqueles que nele entravam. Permanecendo em pé por horas, ou dias. Não sabia. Não havia sol ou lua.
Mais de uma vez ela pensara em entrar nos campos, para onde muitos outros foram. Era o único caminho. Tentara seguir o curso do rio caminhando pela margem, mas não importava o quanto andasse, a paisagem não mudava. Decidiu por fim, continuar a olhar para as águas. O som de suas fortes correntes se chocando contra as rochas, parecia atraí-la. Algo estava lá, sabia. Algo que não podia ser encontrado nos campos.
Com passos calmos, ela avançou, deixando que as águas tocassem seus pés. Sentiu uma sensação familiar entre seus dedos enquanto estes eram envoltos pelo molhado, e frio, toque do rio. Sem diminuir o ritmo, continuou avançando enquanto a água cobria seus tornozelos e joelhos. Em pouco tempo, já estava na altura de sua cintura. Quando chegou até seu peito, ela não conseguia mais resistir a força das ondas, que batiam contra seu rosto. Ela precisava nadar, mas havia algo errado. Seu corpo não conseguia flutuar na água. Ela tentou bater seus braços e pernas, em um esforço contínuo, até finalmente perceber algo que havia esquecido. Nunca aprendera a nadar. Jonas zombara dela por conta disso muitas vezes. Ele até se oferecera para ensiná-la, mas ela o recusou, assim como recusara outras propostas dele. Ao menos, agora, gostaria de ter aceitado essa.
Quis gritar por ajuda, chamar seus pais. Mas eles não estavam ali. Desejava que estivessem, mesmo que discutindo um com o outro. Eles brigavam constantemente quando estavam juntos. Mas sempre estavam lá quando ela precisava. Pelo menos até agora.
A água cobriu sua cabeça.
— Eles vão se entender, não se preocupe — Jonas lhe dissera.
Eles voltavam para casa juntos. Era a última semana antes do início dos jogos. Jonas empurrava sua velha bicicleta, que usava para ir à escola todo dia, enquanto ajustava seus passos aos de Júlia. Ainda que ele morasse em outra direção, fazia questão de acompanhá-la o máximo possível. Ela sempre valorizara tal atenção.
— Foi o que disse da última vez — alegou ela, oferecendo-lhe o saco de salgados que comia.
— E as coisas se resolveram, não? — perguntou ele, pegando uma porção grande com a mão livre.
Ela deu de ombros em resposta.
— Mesmo assim, não vai demorar muito até eles se separarem de novo — suspirou.
Jonas ficou em silêncio por um tempo antes de falar novamente.
— Sabe aquela pizzaria da praça, que fica em frente a pista de skate? — falou ele.
— A pizzaria do Breu? — Ela juntava as migalhas do fundo do saco na mão.
— Sim, eu ganhei um sorteio para um rodízio nela — disse ele com a boca cheia.
— É mesmo? Legal — Júlia lambia os dedos, sujos de salgadinhos.
— Podíamos ir todos nós. Eu vou chamar o Eric e o Leandro, e cê podia chamar as meninas também — propôs com um sorriso no rosto.
Um calafrio tremulou pela barriga de Júlia.
— Acho melhor não, quero dizer — respondeu, amassando a embalagem vazia em suas mãos. — Estamos bem ocupados com o Inter classe, e também tem as provas daqui a algumas semanas.
A jogou fora.
Ele assentiu, subindo na bicicleta e se despedindo. Ela nunca pensara no porquê recusara. Talvez, porque seria melhor ficar em casa até seus pais se acalmarem. Sim, talvez.
Sentiu um frio. Um diferente do causado pela água. Parecia vir de seu interior.
A correnteza pareceu aumentar. Se debatendo, ela tentou voltar para a margem de que viera, mas não conseguia mais ver a margem em lugar algum. A correnteza a empurrou cada vez mais para o fundo, até que ela estivesse completamente submersa pela água. Movia seus braços e pernas em um esforço desesperado para voltar para cima, enquanto sentia o ar de seus pulmões se esvaindo a cada movimento.
Uma onda de arrependimento a tomou, enquanto ela se sentia cada vez mais incapaz de mover seu corpo.
A margem, deveria ter ficado na margem…pensou, deveria…
— Você aceita? — A voz de Jonas lhe veio à mente.
Era domingo, sua mãe se trancara no quarto, e seu pai havia se mudado, de novo. Jonas havia ido até a sua casa para instalar um programa em seu computador. Ou fora isso que ela pensara até ouvir sua proposta.
Ela se lembrava daquilo. Se lembrava de seu rosto, de seu cabelo estranhamente arrumado para a ocasião. Da forma desajeitada com que ele lhe perguntara. Se lembrava de tudo. Sim, de tudo, como também da forma como lhe recusara novamente.
Naquela vez, as palavras lhe soaram tão forçadas, como de fato eram. Se questionava se ele sentira o mesmo. Ela não sabia o que dizer, e ele não respondeu. Apenas acenou com a cabeça, como sempre fazia, e foi embora. Fora a última proposta que recebera dele.
Após isso, pouco se falaram. Ela gostaria de ter falado novamente com ele, brincado com seu cabelo desarrumado, suportado outra de suas piadas estúpidas. Contar suas inseguranças, e ouvir seus conselhos.
Deveria ter respondido melhor, ela refletiu, deveria ao menos ter conversado novamente com ele. Seu corpo parecia leve, ela calmamente fechou os olhos e se deixou ser levada enquanto a escuridão tomava conta de seu ser.
Júlia abriu os olhos. Ar encheu os seus pulmões, fazendo-a tossir violentamente. Ela estava se afogando, se lembrava, estava afundando, enquanto sua mente se desvanecia. Por algum motivo entrara em um rio, mas não sabia o porquê, ou como havia chegado lá. A última coisa que lembrara antes disso, era de estar na quadra da escola, assistindo a final do campeonato de futsal, quando Fernando apareceu. Uma dor de cabeça forte lhe sobreveio quando ela lembrou do que acontecera depois. As imagens a atingiram como um tapa. Seu corpo começou a tremer, e lágrimas escorreram de seus olhos. Ela lembrava de ter visto Jonas caído no meio da quadra. De Letícia nos braços de Ítalo, enquanto uma mancha vermelha se espalhava por suas roupas. De Eduardo socando Fernando, e do som que ouvira antes de… ela não se lembrava do que ocorrera depois. Parecia que tinha acabado de despertar de um pesadelo.
Mas, aquela não era a sua cama, percebeu. Na verdade, não podia sequer ser chamada de cama. Era duro e liso, como uma mesa de mármore. Confusa, ela se levantou e olhou em volta, mas não reconheceu nada ao seu redor. Era um salão grande e escuro. Dezenas de colunas estavam espalhadas por todos os lados, com tochas presas a elas, tornando possível ver alguma coisa. Mas, de alguma forma, sua fraca iluminação deixava aquele lugar mais sombrio. Ela podia ver várias outras mesas de pedra espalhadas por todos os lados, intercaladas pelas colunas. E, em cima delas, pessoas, deitadas como se estivessem dormindo profundamente.
Ela olhou para as suas mãos, decidindo puxar um de seus dedos.
Não estica, percebeu, então não é um sonho.
Se levantou, caminhando entre os corredores formados pelas colunas. Outras pessoas, que também haviam despertado, faziam o mesmo. Reconhecia algumas delas, eram de sua escola. Outras, eram completas estranhas. Quando tentou falar com uma garota de aparência asiática, percebeu que não falavam o mesmo idioma. Todos pareciam tão confusos quanto ela.
Cansada, Júlia se sentou em uma das inúmeras mesas de pedra vazias que havia, tentando entender o que estava acontecendo. A última coisa que lembrara era de Eduardo batendo em Fernando, e depois cair no chão. E depois, de Fernando rastejando até sua mochila, quando… não se recordava. Sua cabeça doía ao tentar se lembrar. Sentiu algo a incomodar, como se um calombo houvesse surgido na mesa antes lisa.
— Pode sair de cima da minha perna? — disse alguém próximo a ela.
Júlia se levantou, surpresa por ouvir uma voz familiar. Mas essa voz era a de…
— Jonas? — perguntou, com uma voz trémula.
— Sim — Ele se sentou, esfregando os olhos com ambas as mãos — Samanta, é você? Tive um sonho estranho, foi na escola, e depois em um rio, mas não lembro direito. Que escuro, ainda é de madrugada?
Seus olhos se focaram em Júlia, e ele ficou em silêncio, enquanto ela via sua expressão mudar através da fraca luz das tochas.
— Jonas, é… é você? — perguntou de novo.
— Que tipo de pergunta é essa? — falou ele, rispidamente — Cê tá zoando com a minha cara?
— Você, você está bem? Eu te vi… — estendeu a mão para tocá-lo, sua garganta apertou —… eu te vi caído no chão — sentia estar prestes a chorar.
— Quê? Por que você tá chorando. Eu caído? Que papo é esse? E onde a gente tá? Nós estávamos na escola, jogando, e aí… e aí… — Ele tocou seu corpo, tateando seu peito em busca de algo — e aí… um cara entrou na quadra, apontou uma arma, e… ele, ele atirou em mim. Eu tentei pegar dele, mas ele atirou em mim.
Sua respiração ficou pesada, parecia estar sufocado.
— Onde estamos? — perguntou, olhando assustado para os lados.
— Eu não sei — respondeu Júlia, limpando as suas lágrimas.
Ela queria abraçá-lo, sentir que ele estava bem. Compartilhar seus sentimentos de alguma forma. Falar com ele como fizeram por tanto tempo, mas não pode. Algo a impediu.
— Júlia? — Ouviu outra voz familiar dizer.
Olhou na sua direção em que escutara. Era Eduardo. Ele correu, e a abraçou. Seus braços a apertaram, mas não a ponto de machucar. Era um aperto aconchegante. Ela devolveu o gesto, passando seus braços pelo corpo dele.
— Você está bem? — perguntou ele — Não me lembro do que aconteceu depois que chegamos no muro.
— Eu tô bem, eu acho. Mas, e você, eu te vi cair — Ela olhou para o rosto dele.
— Que? Eu não lembro disso. Lembro apenas de bater naquele cara, e de depois, estar em frente a um rio… — Eduardo parou de falar, e passou a encarar o nada — Um rio — repetiu.
Eles se desvencilharam. Júlia olhou para o lugar em que Jonas estava deitado, mas viu apenas uma mesa vazia.
— S… será… — Eduardo gaguejou.
Ele empalideceu, e começou a tremer. Suor escorria por sua testa.
— Será que nós morremos? — perguntou.
Júlia ficou sem entender se a pergunta era para ela.
— Como assim? Mas, estamos vivos, nós estamos… — Ela ficou em silêncio quando uma pessoa apareceu na sua frente.
— Jú, que bom que te achei garota. Sabe que lugar é esse? Parece uma igreja estranha que se vê em filmes e… por que está me olhando assim? — disse-lhe Leticia.
Júlia foi até ela, para a ver de perto. A garota estava como se nada tivesse acontecido a ela. Seu cabelo estava liso, e bem penteado. A maquiagem bem-feita. E as unhas, pintadas lindamente em vermelho com bolinhas pretas, como se fossem joaninhas. Não lembrava em nada a lamentável figura que caíra nos braços de Ítalo. Júlia pôs uma mão sobre a barriga dela, onde mancha vermelha deveria estar sujando seu uniforme.
— Dói? — perguntou.
Leticia pareceu incomodada.
— Que? Não, não tá doendo nada — respondeu, com uma expressão confusa em seu rosto.
— Sério, você… você caiu, e… ficou mole, sem se mover — Júlia não conseguia pensar bem no que dizer, as palavras se atrapalharam em sua boca.
— Do que sê tá falando garota. Tá começando a me assustar — Leticia se afastou.
— Você lembra da quadra? — Eduardo perguntou.
— Da quadra? Sim, a gente tava na quadra, o Jonas tinha feito um gol, e aí… — Ela se calou, pondo as mãos onde havia levado o tiro.
Sua respiração acelerou, enquanto lagrimas começavam a escorrer de seus olhos. Ofegante, ela caiu de joelhos. Júlia abaixou ao seu lado a abraçando. Pouco tempo depois, perceberam que não eram os únicos em tal situação. Era possível ouvir gemidos, e até gritos mais ao longe.
— Onde estamos? — Leticia perguntou.
— Eu não sei — disse Eduardo —, mas eu não quero ficar aqui — Ele as levantou, e começou a caminhar, guiando Júlia pela mão.
Leticia os seguiu.
Sem falar mais nenhuma palavra, eles caminharam, sem destino, pelas fileiras de pilares e mesas. Encontraram mais alunos de sua escola. Júlia olhou para os seus rostos. Pareciam vítimas assombradas, saídas dos filmes de terror, que seu pai gostava de assistir. Deviam ter estado na quadra quando Fernando apareceu. Ela se perguntou se também pareceria assim para eles. Tentava encontrar rostos conhecidos, como seus colegas de turma, ou seus professores, mas não viu ninguém. Nem encontrara Jonas novamente.
Foi então que ela percebeu uma garota no chão, sentada com a cabeça, e braços, sobre os joelhos. Parecia estar chorando.
— Carmen? — perguntou Júlia, parando.
A garota olhou para cima.
— Ju… Jú? — disse, entre soluços.
Ela rapidamente se levantou e abraçou Júlia, fungando em seu ombro, depois virou-se para Leticia, com uma expressão de espanto.
— Leticia, é você mesma? — perguntou, um pouco de muco saia de seu nariz.
— Eu… eu não sei — respondeu Leticia. Sua expressão era quase sem vida.
— Como assim? — Carmen limpou seu nariz, o que fez sua voz soar abafada.
Antes que Leticia pudesse responder, Júlia sentiu um vento forte soprando em seu rosto. As tochas apagaram, dando um fim a pouca luz no local. Por um momento a escuridão tomou conta do mundo, e tudo o que Júlia conseguia ouvir eram gemidos e gritos assustados.
— Não solta a minha mão — gritou Eduardo, assustando-a.
Uma luz azul surgiu acima de suas cabeças. O vento parecia estar vindo dela. Júlia percebeu que ela tinha um formato espiral, como se estivesse girando, lembrando-a de um tornado. A princípio parecia pequeno, mas cresceu aos poucos, até que a sua luz fosse forte o bastante para iluminar todo o local. Ela olhou em volta, e quase não conseguiu acreditar em seus olhos. Os pilares haviam desaparecido, assim como as mesas de pedra.
Eles, agora, pareciam estar em uma sala fechada. Grande o bastante para comportar centenas de pessoas de uma vez. Ao fundo, ela viu estátuas, dezenas delas. Espalhadas em uma das quatro paredes que os cercavam.
O vento parou.
Eduardo ainda segurava a sua mão, com força. Parecia querer ter certeza de que não a soltaria.
— Eduardo, tá doendo — reclamou ela.
— Uh, desculpa — Ele relaxou o aperto, mas não soltou sua mão.
Júlia podia ver claramente quem estava ao seu redor agora. Havia pessoas de todas as idades, percebeu. Viu rostos conhecidos, tanto de seus colegas de escola, quanto de alguns professores. Percebeu Eduardo acenando, provavelmente para algum conhecido.
— Olhem aquilo — Carmen gritou.
A luz desceu lentamente. Parecendo cada vez maior enquanto se aproximava do chão. Era parecida com… um lustre? Um enorme lustre azul, saído de algum filme de época. Parecia flutuar a poucos metros do chão sobre todos eles.
— Saudações, filhos de Adão — disse uma voz, vinda do lustre —, sejam bem-vindos ao templo das eras. O lugar entre a vida e a morte.