Crônicas dos Caídos - Capítulo 4
Os ouvidos de Júlia pareciam formigar. Embora a escutasse claramente, não conseguia identificar se a voz era de um homem, ou de uma mulher.
Murmúrios e sussurros se espalharam, enquanto as pessoas pareciam tentar entender o que aquilo deveria significar.
— Quem é você, onde estamos? — gritou um homem mais velho que os demais.
Apenas quando Júlia olhou com mais atenção, percebeu que era seu professor de educação física.
— Vós estais no templo das eras, um lugar criado entre os mundos, aonde que as almas dos aflitos se reúnem.
— Entre os mundos? — Eduardo repetiu em voz baixa, como se para si mesmo.
— E o que quer dizer com “almas dos aflitos”? — Outra pessoa perguntou.
A confusão se espalhou, enquanto a multidão reunida murmurava.
— Eu chamei neste lugar a vós, que chegaram ao final de suas vidas, mas não estão prontos para aceitar a morte — A voz disse por fim.
A confusão só pareceu aumentar.
— Que não aceitaram a morte…? — Eduardo repetiu.
—O que quer dizer, hein? — Carmen se abraçou, tremendo.
— Estamos mortos — Leticia falou, com um olhar desolado em seu rosto.
Algumas pessoas caíram de joelhos, chorando. Outras gritaram ofensas e xingamentos a luz, para então chorarem amargamente. Havia também aquelas, que simplesmente encaravam o nada, com um olhar vazio em seus rostos. Júlia não sabia o que pensar. Apenas torcia para que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, e ela acordasse em sua cama, com sua mãe a mandando se arrumar para a escola.
— Se estamos mesmo mortos, então o que é isso aqui? — Outro adulto gritou, era seu professor de matemática — Não deveríamos estar no céu, ou algo desse tipo?
— Não lhes é possível ir ao além vida — respondeu a voz —, pois vos mesmos o recusastes, guardando vossos desejos não realizados, e adentrando o rio Estige, atrás daquilo que os mantinha conectados ao seu mundo.
— Desejos? — Júlia disse pensativa.
— O mar — falou Eduardo —, eu estava parado em frente a uma praia. Eu entrei no mar e… não lembro o que houve depois.
— Eu me afoguei — sussurrou Leticia, como se para si mesma. — Eu entrei nele, e me afoguei.
Seu rosto estava pálido como uma folha de papel.
A voz continuou:
— Vosso destino seria o de serem levados pelas águas, até que esquecessem seus desejos, e vossas almas se purificassem, retornando aos campos eternos.
— Então, por que estamos aqui? — Eduardo questionou.
Outras vozes de protesto soaram também.
— Silêncio — ordenou a voz, fazendo todos se calarem — Estão aqui, pois eu os trouxe. Necessito de vossa ajuda, pois estou aprisionado em algum lugar entre os mundos. Preciso de vós, almas de outro mundo, para que me libertem.
— O que quer dizer, que está presa neste lustre?
O lustre se desfez, tomando a forma de uma figura humana. Só era possível distinguir seu corpo, uma grande silhueta azul clara.
— Não, não estou aqui, apenas a minha consciência jaz com vós. Meu corpo físico está em algum lugar distante, em um grão de areia no enorme mar do cosmos.
O professor riu.
— Então como quer que a gente te ajude, se nem você mesmo sabe onde está?
A voz continuou.
— Eu era a divindade guardiã de uma parte da existência. Más, assim como vós, eu também morri de forma trágica, não me sendo permitido ingressar no além vida. Por isso, permaneci preso, em um estado de leniência por milênios.
Divindade guardiã? Isso significa que ela é…?
— Você é um deus? — Júlia perguntou.
A divindade assentiu.
— Assim me chamavam. Embora já não possa ser considerado como tal.
— Pera aí, isso tá ficando cada vez mais confuso — alguém gritou. — Nós estamos mortos, e você é um deus, e quer voltar para casa. Quer que engulamos isso?
— Não há como lhes explicar, se vós mesmos não acreditam. Apenas digo-vos o que é, e nada mais.
O homem ficou em silêncio por um momento, e depois voltou a falar:
— Então o que quer de nós?
— Desejo a vós que viajem até o mundo em que origino, e reúnam as chaves de minha libertação.
— E como exatamente vamos fazer isso?
— Eu os enviarei, os guiarei, e concederei bençãos e dons meus, para que vós possais suportar as lidas.
— Lidas? — Carmen sussurrou — o que é isso?
— Quer dizer “dificuldades” — Júlia respondeu.
— Tá, mas, se você pode enviar a gente para o seu mundo, você também não poderia ir para lá? Ou escolher pessoas desse mesmo mundo para que façam isso? — Outra pessoa perguntou.
— Há… empecilhos. Por conta deles recorri a vós.
O silêncio pairou por um tempo no ambiente. Todos pareciam tentar assimilar o que estava acontecendo. De repente, Júlia percebeu que já não se importava mais com o fato de estar morta, mas não sabia o por quê.
— Tá certo, você quer voltar ao seu mundo, mas o que nós ganhamos com isso? — Um garoto com os lados da cabeça raspados falou.
— É, por que iriamos lá?
— Isso.
O deus então respondeu:
— Se me ajudares, e me for permitido regressar ao meu mundo, e recuperar meu poder. Então lhes demonstrarei minha gratidão, e concederei o desejo que os impediu de adentrar os campos eternos.
— Quer dizer…
Júlia não podia ver, mas imaginou um sorriso no rosto daquela figura azul quando disse:
— Permitirei a vós, retornar ao vosso mundo.
As palavras a alcançaram, balançando-a como o vento de pouco tempo atrás. Poderia ser verdade? Era pitoresco demais para ser. Se eles estavam realmente mortos, então não deveriam estar no céu ou no inferno? Não, pensou, não iria para o inferno. Sim, afinal ela não tinha feito nada de errado para isso. Nada que se lembrasse pelo menos.
A voz continuou:
— Vós sois almas que ainda não aceitaram a morte, e assim como eu, guardam as lembranças de sonhos, e desejos não realizados, amargando o triste fim que lhes sobreveio. Desejam retornar ao seu mundo para realizar vossos desejos. Uma outra chance. Posso dá-la a vós, se assim desejarem.
O salão ficou em silêncio. Todos pareciam confusos. Júlia podia ouvir alguns sussurros incertos.
— E se não quisermos? — Alguém na frente da multidão perguntou.
Quando Júlia olhou em sua direção, logo reconheceu o uniforme que usava, e o óculos em seu rosto. Era Eric.
— Então retornarão ao rio Estige, para flutuar pela eternidade — respondeu o deus. — Até que as águas dos mortos esvaziem os desejos de vossos corações, e apaguem sua vontade de viver — Fez uma pausa. — Atender ao meu pedido, ou desvanecer no vazio, a escolha é vossa.
Murmúrios eram ouvidos de todas as direções. Os rostos de todos estavam apreensivos. Júlia sentia seu estomago se revirar. Ela olhou para Eduardo, que estava com uma estranha expressão no rosto. Quis puxar seu braço e lhe perguntar o que ele estava pensando, mas teve sua atenção roubada antes.
— Então eu aceito — Uma voz se sobressaiu em meio a todas as outras. — Leve-me a esse mundo de onde você diz ser, em troca, me devolva ao meu.
Era Eric novamente.
— Assim será feito — A julgar pelo tom de sua voz, o deus pareceu se agradar.
Ao lado de Eric, outra pessoa também deu um paço a frente.
— Eu também aceito — declarou.
Os olhos de Júlia se arregalaram quando o reconheceu.
— Jonas?
Mas o que mais a chocou foi o que veio a seguir.
— Eu também — Eduardo bradou. Seu rosto, antes confuso, agora transparecia uma determinação ferrenha.
— Sim.
— Eu aceito.
— E… eu vou.
Como uma onda, muitos outros ergueram as suas mãos, e gritaram em concordância.
O deus pareceu estar contente.
— Que assim seja — disse. — Aqueles que de fato aceitarem meu pedido, se dirijam em direção as estátuas do templo. Lá encontrarão dádivas que os protegerão na jornada que irão iniciar. Mas deverão levar apenas uma. Escolham com sabedoria.
Obedecendo ao comando, os que levantaram a mão seguiram, cada um, até o lugar ordenado. Uma boa parte das pessoas ficou para trás, porém, muitos mais foram os que aceitaram a proposta do deus. Eles se aproximaram das estátuas. Júlia perdeu, tanto Eric e Jonas, quanto os seus professores de vista, enquanto as pessoas se moviam até a parede repleta de estátuas.
— Vamos — falou Eduardo, pondo uma mão em seu ombro.
— Vo… você tem certeza?
— Não, mas se o que ele disse é verdade, então será o fim. E eu não quero desistir da minha vida — ele tinha um olhar sério em seu rosto.
Júlia sentiu como se algo a acertasse bem no meio do rosto. Era por isso que tinham entrado no rio, percebeu. Porque ainda tinha algo que queria fazer. Apenas não lembrava o que era. Ela estava prestes a segui-lo, quando olhou para o lado.
Leticia mantinha um olhar transtornado em sua face. E Carmen secava suas lagrimas, enquanto mais surgiam.
— Lê, Carmen, vocês vêm? — perguntou, tocando no ombro de Leticia, que olhou para ela.
— Se formos, o que vai acontecer? — questionou-lhe a garota.
— Eu não sei, mas se não formos, nossas vidas acabarão, e eu… eu não… — Ela se engasgou.
— Júlia, vamos — Eduardo a chamou novamente.
— Vêm Lê, preciso de você — voltou a falar, engolindo o choro.
Embora ainda parecesse relutante, Leticia balançou a cabeça, em concordância, e pegou sua mão.
Júlia, então, se dirigiu para Carmen.
— E você Carmen, vêm também?
— Eu… eu vou. Só… só não quero ficar sozinha — disse ela, seus olhos já estavam vermelhos de tanto chorar.
As três seguiam atrás de Eduardo, que andava alguns passos à frente.
Eram grandes, do tamanho de um poste de luz. Eram incrivelmente detalhadas, sendo diferentes umas das outras. Algumas eram cavaleiros em posições amedrontadoras, com armas apontadas para a frente. Havia também outros ajoelhados em posições respeitosas. Viu homens velhos carregando livros e bastões, e belas mulheres segurando instrumentos, retratadas em poses charmosa. Havia degraus com baús abaixo delas. Muito mais do que se podia contar. Alguns estavam abertos, e havia pessoas segurando armas em suas mãos próximas a eles.
— Essas devem ser as dádivas — Eduardo comentou — Devemos pegar um.
Júlia respirou fundo, olhando para os inúmeros baús a sua frente. Possuíam tamanhos e formas diferentes. Alguns eram pequenos como uma vasilha de cozinha, outros eram tão grandes quanto uma cômoda.
— Qual delas nós pegamos?
A maioria dos que haviam seguido até as estátuas pareciam tão indecisos quanto ela. Eduardo as encarava, sem dizer nenhuma palavra, até se mover em direção a uma, que segurava um objeto estranho a Júlia. Parecia um bastão, mas tinha uma bola coberta de espinhos na ponta. Pela postura e aparência do homem retratado, parecia ser uma arma. Ele abriu um grande baú de madeira abaixo dela, e retirou algo, semelhante a um grande machado de dentro.
— Como você escolheu? — Carmen perguntou quando Eduardo retornou.
Ele deu de ombros, como quem não sabia.
— Não sei dizer, apenas me pareceu o mais certo.
— Não é pesado? — Júlia quis saber.
Aparentava ser. Era maior que Eduardo, e deveria ser difícil de segurar. No entanto, ele não parecia ter nenhuma dificuldade em fazê-lo. Ele o levantou com uma mão antes de responder.
— Não, é bem leve.
Seu formato era estranho. Possuía uma ponta de metal acima da lâmina, que era razoavelmente pequena para o resto da arma.
— Temos que escolher também — lembrou-lhe Leticia, dando um passo à frente.
Ela caminhou de forma monótona até um dos baús, e o abriu. Era menor, e mais refinado, do que o que Eduardo escolhera. Assim como o que havia dentro dele.
— Aquilo é uma arma? — Carmen perguntou, confusa.
— Não, não parece — Eduardo observou.
— Porque não é — Júlia disse, tentando entender ao certo o que era.
Leticia voltou com a sua dádiva, um par de brincos. Pareciam ser feitos de cristal, tais como uns que a mãe de Júlia tinha, só que mais reluzentes. Possuíam o formato de gatos. Um era branco, como um floco de neve, o outro, negro como carvão.
— Não é o que eu esperava — Leticia deixou escapar um suspiro.
— Até que são bonitos — elogiou Júlia tentando consolá-la.
— Achei que fosse ser uma arma, como a dele.
— Não se preocupe com isso, até que ficam bem em você — disse Eduardo.
Leticia o agradeceu, decidindo pôr os brincos.
Júlia sentiu uma secura na garganta ao ouvir o comentário, mas a ignorou. Ela então, olhou para ao seu redor. Mais e mais pessoas se aproximavam das estátuas.
— Melhor irmos logo — falou para Carmen —, ou vamos ficar sem nada.
— Que? Ah, sim, sim.
Elas subiram os degraus. Havia seis ao todo, que se estendiam de um lado ao outro da parede. Eram de tamanho considerável, chegando na metade da altura de seus joelhos, o que tornava a tarefa de subi-los, cansativa. Percebeu que Carmen não estava mais perto dela, mas não pensou em procurá-la. Precisava escolher logo a sua dádiva.
Sem saber o porquê, ela olhava para onde Leticia e Eduardo deveriam estar, enquanto vagava pelos baús, subindo e descendo os degraus. Era um esforço inútil. Não conseguia ver com a quantidade de pessoas andando ao seu redor.
Seu nervosismo aumentava, a medida em que via outras pessoas escolhendo seus baús. O que aconteceria se todos fossem abertos e ela ficasse sem? Isso não parava de preocupar sua cabeça. Precisava pegar algum logo. Mesmo pensando assim, ela apenas olhava para eles, sem ter a menor ideia de qual escolher. Eduardo havia aberto um grande e robusto. Leticia escolhera um pequeno e frágil. Por algum motivo, nenhum dos dois tipos a atraía.
O que Eduardo havia dito mesmo? Pensou. O que parecia ser o mais certo para ele, mas qual era o mais certo para ela.
Caminhou até se encontrar abaixo de uma estátua com uma aparência estranha. Era uma mulher, bonita, reconheceu. Podia perceber isso pelos refinados detalhes de seu rosto, muito bem talhado na pedra em que fora esculpida. Mas era um tanto diferente das outras.
A maioria das estátuas seguravam algo em suas mãos. Sejam armas como espadas e machados, ou objetos como bastões e caixas. Algumas carregavam instrumentos e livros. Mas essa não levava nada. Suas mãos estavam fechadas sobre o peito. Sua cabeça estava baixa. E seus olhos pareciam fechados. Se Júlia encontrasse com alguém nessa posição, concluiria que tal pessoa estava rezando.
Ela olhou para os baús abaixo da estátua, até notar um em particular. Parecia uma caixa de música, mas era do tamanho de uma de sapatos, ou talvez um pouco maior. Era feita de madeira lisa, pintada de branco, com finos detalhes dourados. Com cuidado ela se agachou e a abriu. Um mecanismo pareceu acionar, ou foi isso que pensou quando o ouviu ranger ao levantar a tampa. Ao ver o que havia dentro, ela franziu as sobrancelhas.