Crônicas dos Caídos - Capítulo 5
Um boneco?
Confusa, ela retirou sua “dádiva”, tentando entender exatamente o que era. Parecia um pequeno boneco de cera, como os santos que existiam na casa de seus avos. Era uma estátua branca de mulher coberta dos pés à cabeça por um véu, estendendo uma das mãos com a palma virada para baixo. Ela deixou a estátua no chão e tentou abrir outros baús, porém nenhum se abria.
— Deverão levar apenas uma — A voz do deus sem nome ressoou em sua cabeça.
Ela suspirou, pegou novamente a estátua em suas mãos e caminhou novamente na direção em que havia deixado Leticia e Eduardo. Quando se aproximou, viu um grupo com dúzias de estudantes. E no meio deles, havia dois adultos. Júlia os reconheceu assim que os vira. Eram seus professores, os mesmos dois que havia visto antes. Ronaldo, seu professor de educação física, e Mauro, seu professor de matemática.
— Professor Ronaldo, professor Mauro — Chamou.
— Júlia, é bom ver que está bem, estávamos lhe esperando — disse o professor Ronaldo.
— Não acho que possamos definir isso tudo como “bem” — respondeu o professor Mauro.
Assim como todos, eles também carregavam um objeto. O professor Ronaldo carregava uma espada presa a sua cintura. Já Mauro segurava um livro com uma grossa capa marrom.
— Por que os senhores estão aqui?
O professor Ronaldo levantou uma sobrancelha e cruzou os braços.
— Estamos cuidando dos nossos alunos, é claro.
— Reunimos quem encontramos — O professor Mauro falou — Vimos a Carmen e o Edu aqui e decidimos esperar por você, e a Leticia, que haviam saído.
— Obrigada.
Eles sorriram em resposta, e voltaram a conversar entre si. Júlia cumprimentou aqueles que reconheceu. Pensou que poderia encontrar Jonas em meio a eles, mas não o viu. Quando viu Eduardo e as garotas, correu até eles.
— E aí, o que conseguiu? — Eduardo perguntou.
— Nada demais — Ela mostrou a estatueta — Seus brincos não me parecem tão ruins agora, hein Carmen.
— É, eu acho que não. Isso parece um dos action figures do meu primo.
Júlia olhou para Carmen, que segurava uma estranha faca em suas mãos.
— Então, isso foi o que você ganhou?
— É, o baú era tão bonito, achei que seria uma joia ou algo assim. Não uma faca.
— Na verdade, isso aí é uma adaga — disse alguém atrás dela, fazendo-a pular com o susto.
— Ah, droga menino — gritou.
— Foi mal — Ítalo se desculpou.
— Ítalo, é você? — perguntou Leticia.
— Hum? Sim, por que a surpresa? — Ele respondeu com um sorriso idiota.
— Não é surpresa, mas é que é bom te ver… não espera, se você está aqui, significa que você está… Quero dizer, afinal nós estamos.
— Sim, acho que sim — Ele coçou a cabeça cabisbaixo — desculpem. Eu, devia ter feito algo. Devia… — começou a chorar.
— Que é isso garoto, não precisa se desculpar — disse Leticia — não foi sua culpa… nós… — Ela se engasgou e rompeu em lagrimas. O que levou Júlia a abraçá-la novamente.
Eduardo pôs uma mão em suas costas. Carmen se manteve afastada, mas Júlia pode ouvir seus soluços.
— Atenção todos — Gritou o professor Ronaldo —, vamos continuar procurando por outros estudantes. Fiquem juntos, e nos sigam. Garotos, atenção a frente e atrás. Garotas, não se separem do grupo.
Eles começaram a andar, paralelos aos degraus, percorrendo a parede repleta de estátuas.
Caminhando a sua frente Júlia viu um grupo de garotos. Um deles usava o uniforme do time de sua sala. Pensou que talvez pudesse ser Jonas, mas ao observar melhor viu que se tratava de Murilo, que estava junto dos seus amigos, o grupo do fundo da sala. Eles pareciam estarem brincando uns com os outros, e até rindo. O que lhe pareceu um absurdo.
Seus professores caminhavam a frente do grupo acolhendo os estudantes que encontravam. Eduardo havia encontrado dois amigos seus. Júlia se lembrava de tê-los visto no time do terceiro ano. Um deles, Theo, havia sido o goleiro do time. Caio, o outro, fora aquele que fizera o gol na cobrança de falta que Eduardo batera. Eles o acompanhavam, conversando sobre as dádivas que pegaram. Um deles carregava um cajado com um cristal no apoio, o outro, uma besta.
Leticia andava ao seu lado, arrastando os pés. Ítalo estava logo atrás. Carmen estava afastada deles, em total silêncio. Júlia não parava de pensar para que aqueles objetos serviriam. As armas poderiam ser úteis a eles, mas lhe pareciam estranhas. Para que precisariam de machados e espadas quando se possuía armas de fogo? A não ser que não precisassem se preocupar com elas.
Eles caminharam até chegarem a um dos cantos da sala, parando em frente à estátua de um velho com capa segurando um cajado. O grupo de Júlia se manteve sempre próximo aos dois professores que guiavam a todos.
— Acho que já está bom — disse o professor Mauro ao professor Ronaldo —, afinal não encontramos mais ninguém.
— Sim, você deve ter razão. Mas o que faremos agora?
O professor Mauro deu de ombros.
— Vamos ter que esperar a boa vontade daquele bicho.
Ronaldo estalou a língua.
— Não confio naquilo.
— Nem eu, mas não podemos fazer nada.
Júlia olhou para a direção dos que haviam ficado para trás, mas não viu ninguém. Confusa, continuou checando seus arredores até se focar em algo que gelou o seu estomago. Viu uma figura encapuzada os observando acima dos degraus. Não podia ver seu rosto, mas sábia quem era. Tanto ele quanto o outro que estava ao seu lado.
Eles também estavam ali.
— Júlia, você tá bem? — Eduardo pergunto, a trazendo de volta a si.
Antes que ela pudesse responder, a sala escureceu diante. Ainda podia ver a figura do deus estranho e a todos, mas tudo em volta deles havia sumido, como se flutuassem na mais profunda escuridão.
— Está feito — a voz falou novamente. — Vós atenderdes à minha súplica e aceitaram meus presentes. Assim firmaram para comigo um pacto perante os céus e as eras. Enviá-los-ei ao mundo em que dantes estive, onde encontrarão terrores que nunca dantes pensastes, e desejos dos quais nunca sonhastes. Falarão suas línguas e lutarão suas guerras. Eu lhes protegerei por meio de minhas dádivas, e lhes mostrarei o caminho que devem trilhar. Venceis tanto as labutas quanto as tentações e tereis vossa recompensa.
O deus ergueu seus braços e círculos apareceram em volta de todos. Mais do que Júlia conseguia contar. Tinham o formato de espirais do tamanho de um portão de garagem.
— Essas sãos as passagens para o mundo de Eyás — declarou —, portais que conectam dois lugares no cosmos, e que transportá-los-ão entre os mundos. Cada uma pode transportar até seis enviados para o mesmo destino. Entreis nelas, e cumprais o que fora prometido.
— Que? Vamos ter de nos separar? — O professor Mauro exclamou transtornado.
— Será necessário para que a missão, a qual os tenho confiado, seja concluída.
— O que fazemos professor? — Um aluno perguntou.
Uns olhavam para os portais, outros para o deus, outros para si mesmos. Todos tinham o mesmo olhar apreensivo em seus rostos.
Júlia não estava diferente. Eduardo novamente apertava sua mão. Mas agora ela não se importava com a dor. Tudo o que importava eram o pensamento do que havia por trás daqueles círculos.
— Por que precisamos nos separar? Um grupo maior não seria melhor? — Uma garota com o cabelo pintado perguntou.
— As chaves de minha prisão estão espalhadas pelos cantos mais longínquos do mundo. Assim como os inimigos que as guardam.
— Inimigos? — Eduardo repetiu em voz baixa.
— Que tipo de chaves?
— Falar-lhe-eis quando estiverdes lá. Por agora necessito que ao chegarem em Eyás, vós se fortaleçam para quando a hora certa chegar.
Todos se entreolharam. Pareciam estar esperando pelo primeiro que tivesse coragem. Alguns adultos que estavam junto deles, a quem Júlia nunca havia visto antes, se adiantaram, entrando nos portais. Os estudantes, no entanto, permaneceram parados, como as estátuas de antes.
— Deveis entrar logo — disse o deus — pois não poderei mantê-los abertos por muito mais tempo.
— Atenção todos — disse o professor de educação física —, eu vou entrar, aqueles que estiverem com medo, entrem na mesma passagem que eu.
Ele seguiu até o portal mais próximo, parando em frente a ele. Olhou para trás, como se para checar como os alunos estavam, e entrou, desaparecendo na luz branca, para o espanto de todos.
— Ele vai voltar? — Leticia perguntou.
— Eu acho que não — Ítalo respondeu.
— Uma vez que entrardes em Eyás, não poderão sair até que sua missão seja concluída.
Murmúrios tomaram conta do lugar, enquanto os ânimos de todos pareciam aumentar. Júlia se sentia prestes a entrar em pânico, quando reparou em uma garota se aproximando do portal em que o professor havia entrado.
— O que vai fazer? — Perguntou alguém da multidão.
— Vou entrar — respondeu ela. Seus ombros subiam e desciam, Júlia observou.
— Que? Você tá maluca, não tem medo? — A mesma pessoa de antes gritou
— Claro, mas acho que é melhor estar perto de alguém de confiança, como o professor — Ela passou pelo portal e desapareceu.
Todos ficaram em silêncio até que outro garoto correu para o mesmo portal.
— Vamos ter que entrar em algum mesmo, é melhor que seja esse — Um colega de classe falou.
Pelo menos meia dúzia a mais disparou para o portal. No entanto, pouco depois, o mesmo sumiu.
— O que aconteceu?
— Seis devem ter passado pelo portal e ele fechou — Ítalo lhe respondeu.
— Seguinte gente — O professor Mauro gritou — separem-se em grupos de pelo menos três pessoas, e passem pelos portais. Garantam de entrarem em um que não foi escolhido antes para que ninguém fique para trás, entendido?
Os alunos chamados se aproximaram dele e esperaram na frente de um dos portais. O restante dos estudantes se entreolhou. A esse ponto, só restavam eles. Os outros adultos que estavam ali já haviam entrado nos portais.
A confusão parecia aumentar enquanto as pessoas se lançavam aos portais.
— Temos que entrar em um logo — disse Theo.
— Então precisámos de seis pessoas né? — disse Carmen — Somos eu, você, a Letícia, o seu namorado, e… os dois amigos dele. Fazemos seis.
— Fechou então — Eduardo falou.
Theo e Caio assentiram.
Júlia olhou para eles. Lembrava de tê-los visto no jogo de futsal, e embora não os conhece-se, Eduardo parecia se dar bem com ambos. Pareciam confiáveis a seus olhos. Mesmo assim, algo parecia errado.
— Acho que esquecemos alguém — Letícia comentou.
— Quem? — perguntou Carmen.
— É, posso fazer parte do grupo de vocês?
Ítalo apareceu de repente, não, na verdade ele tinha estado ali o tempo todo.
— Vai dar não oh cara — disse Theo.
— Ítalo, é que, já temos seis pessoas, foi mal — explicou Júlia.
— Ah, certo, beleza. Vou procurar outro grupo então.
— Boa sorte — disse Letícia.
— Valeu — Ele se afastou, desaparecendo no movimento da multidão.
Por algum motivo, Júlia sentiu um aperto no peito.
— Será que ele vai ficar bem?
— Ele é homem — disse Theo —, vai se virar.
Ela suspirou, não satisfeita com a resposta.
— Bem, então vamos — Eduardo declarou.
— Em qual entramos? — disse Carmen.
— Qualquer um está bom — falou Theo — Não é como se soubéssemos qual deles vai nos levar a Disney ou não.
— Eu sei.
Eduardo parou em frente a um.
— Eu prestei atenção, ninguém entrou nesse.
Ele olhou nos olhos de Júlia, acenou com a cabeça, e desapareceu. Theo entrou atrás dele.
— É, agora não tem mais volta — disse Caio, antes de fazer o mesmo.
Leticia segurou as mãos das duas e andou, puxando-as, as encorajando a entrar.
Júlia apertava a estátua em sua outra mão, rezando para que algum outro Deus a escutasse enquanto seguia em frente.