Crônicas dos Caídos - Capítulo 6
Seu corpo ainda doía. Não era dor física, ele sabia, mas apenas uma sensação causada pela memória de dezenas de pés o esmagando contra chão, tirando seu ar, e amassando seus ossos. Fora empurrado, se lembrava, e caiu dos degraus da arquibancada, para ser usado como tapete por todos os que correram, desesperados, por cima dele.
Suas mãos tremiam enquanto segurava a pedra do tamanho de uma laranja, que retirara do grande baú a qual havia escolhido. Seus lábios se dobraram ao se lembrar do momento em que o abrira. Era do tamanho da cômoda em seu quarto, feito, aparentemente, de ferro, com o símbolo de uma bigorna na fechadura. Ítalo ficara curioso com o que tinha dentro, mas a resposta o desapontou. Tinha somente uma escura, e pesada, pedra, parecida com carvão, mas possuía manchas azuis e vermelhas. Ele tentou devolvê-la e abrir outro, mas escutou uma voz em sua mente, dizendo, “Deverão levar apenas um”.
Mesmo a estátua que Julia ganhara parecia ser melhor do que aquilo. De que uma pedra lhe seria útil?
— Vamos, formem grupos e entrem nos portais de uma vez — ouviu o professor Mauro gritar novamente em frente ao portão que havia escolhido. Sua voz estava quase rouca.
Os estudantes restantes, tentavam, desesperadamente, se unir aos grupos que ainda não havia não atravessaram nenhum portal. Alguns já tinham se juntado a um, mas foram deixados para trás, ao escolherem um portal que já fora usado. E ele se fechar, antes dos seis atravessarem. E agora, estavam desnorteados, atrás de outro grupo para se unir. Ítalo compreendia isso, entrar em um dos portais sozinho, sem saber o que lhe esperava do outro lado, era assustador. Infelizmente, ele também fora deixado para trás.
Vira muitos de seus colegas de sala, passando por ele, e desaparecendo nos portais. Uns após os outros. Os membros do time, a turma do fundo da sala, as meninas da frente, que só falavam de músicas e series asiáticas. Os garotos que falavam de filmes e animes, e até os que se sentavam ao seu lado, e falavam com ele todos os dias. Todos haviam sumido, e o deixado.
Poderia tentar se unir a um dos grupos restantes, mas não conhecia ninguém, e fora rejeitado pelo que tentara entrar. Mas tudo bem, estava acostumado com isso. Ele sempre era o que sobrava quando os times eram escolhidos para a aula de educação física, além de sempre ser deixado de lado, quando seus colegas combinavam de sair.
Ser deixado para trás era apenas o natural.
Ele saiu de seus pensamentos ao ver outro portal se fechar na sua frente, e alguém entrar em pânico por não o ter atravessado. Era um garoto, usando casaco, e óculos vermelhos, e um piercing na orelha. Ele correu em direção ao portal mais próximo, empurrando quem estava no caminho. Ítalo não o conhecia, mas lembrava de vê-lo todos os dias na fila da merenda, conversando com os amigos. Era algo que tinha se habituado. Mas agora ele havia sumido.
Foi então que percebeu. Provavelmente, nunca mais veria seus pais de novo, e estranhamente, isso não lhe doeu tanto assim. Talvez eles fossem mais felizes dessa forma, pensou, não teriam que arcar mais com minhas despesas e Cleber teria o quarto só para ele.
Secou um cisco em seu rosto, e olhou para cima, na direção em que aquele deus se encontrava. Era uma silhueta de aparência humana sem rosto, semelhante aos manequins que ficavam expostas em lojas de roupas, pairando em meio a escuridão como um espectro. Ele os havia levado até ali, e, estranhamente, eles haviam aceitado sua explicação, e sua oferta absurda. Mesmo Ítalo não sabia ao certo o porquê de ter concordado, mas não havia nada que pudesse ser feito naquele momento. Havia aceitado o estranho presente que fora lhe dado, e agora, ele precisava entrar em um portal.
Mas qual? Havia muitos.
Enquanto pensava, ele sentiu um leve tremor no chão.
— Rápido — ouvira a vós bradar novamente —, entreis tão logo quanto puderem.
Era o deus, mas havia algo errado, tinha algo diferente em sua voz. Não estava mais calma como antes. Tinha um sentimento estranho.
— Vão, depressa — Era um sentimento de urgência, percebeu.
Ítalo sentiu algo estranho. Era como se um arrepio percorresse todo o seu corpo, desde os pés até a ponta dos cabelos, passando por cada vértebra de sua espinha. Seus dedos tremiam, e estava difícil até de respirar. Olhou para a escuridão que os cercava, para perceber que havia algo diferente. Uma fina linha branca surgia, se ramificando, como se uma teia estivesse sendo tecida diante de seus olhos. Ele a observou até perceber que não se tratava de uma linha, e sim uma rachadura, crescendo, e se espalhando por todos os lados.
Um alvoroço tomou conta dos que ainda estavam naquele lugar, mas não pelas rachaduras que apareceram no véu negro que os cercava. Fora por outro motivo. Um bem mais perceptível. Os portais estavam diminuindo, e desaparecendo, sem que nenhuma pessoa passasse por eles.
Ele ouviu batidas, semelhantes a marteladas, que faziam tudo ao seu redor estremecer. As rachaduras aumentavam à medida que o som se intensificava. Era como se alguém estivesse tentando derrubar uma parede a marretadas.
— Rápido, entrem em um portal logo — gritou o professor antes de ele mesmo desaparecer, e o portal, junto com ele.
Por todos os lados, tudo o que se podia ver e escutar, eram os gritos desesperado de pessoas em pânico, se empurrando e trombando, tentando chegar ao portal mais próximo, antes que ele se fechasse. Ao redor deles, as rachaduras se espalhavam, com o som das marteladas, fazendo Ítalo se sentir dentro de um ovo prestes a eclodir.
O barulho mudou. Não eram mais marteladas. Agora, parecia com o raspar de metal em metal, como se uma chapa de aço estivesse se rasgando. Sentiu uma tontura, o mundo pareceu girar ao seu redor. E então ele ouviu outro som. Um, alto o bastante, para fazê-lo se ajoelhar, enquanto seus ouvidos tremiam. Era como o canto metálico de um instrumento de sopro. Não, um não, pareciam ser dezenas, tocando uma longa e aguda nota. As rachaduras já haviam se espalhado em todas as direções. Ítalo Olhou para cima, onde o deus deveria estar, mas ele já havia sumido.
Algo ruim iria acontecer, disso tinha certeza. Uma coisa pior do que tudo o que vira.
Desesperado, Ítalo procurou por algum portal que ainda estivesse aberto. Mas, sempre que se aproximava de um, era empurrado, e jogando para o lado por outra pessoa, que o atravessava, e o portal se fechava no mesmo instante. Ele se levantava, de novo, e de novo, sentindo seu corpo tremer à medida que o som se tornava mais intenso. Isso se repetiu até que houvesse apenas mais um portal aberto ao longe.
Tentou correr até ele, mas alguém o puxou pela camisa, rasgando sua roupa e o derrubando novamente no chão. As pessoas começaram a brigar e se empurrar, disputando quem entraria no portal.
Ele ficou de joelhos, sozinho, observando impotente enquanto os outros atravessavam, ou tentavam, o último portal restante. Seus olhos percorreram as rachaduras ao seu redor. Já haviam se fragmentado por todos os lados, e o que fosse acontecer, começaria logo. Foi então que o avistou. Um portal, pequeno demais para se atravessar em pé, a pelo menos uma dezena de metros de onde ele estava. Diminuía lentamente, como se estivesse prestes a sumir.
Ele se aproximou, se perguntando o porquê de ninguém ter entrado nele ainda. Talvez apenas pensassem que fosse sumir antes que o atravessassem, ou simplesmente não o notaram pelo pânico. Não teve tempo de meditar sobre isso. O som ficara mais alto, assim como os gritos dos que ficaram para trás. Tentando não prestar atenção neles, Ítalo engatinhou até ser envolvido pelo pequeno círculo branco, e não ser capaz de escutar mais nada.