Crônicas dos Caídos - Capítulo 7
Atordoado, Eduardo se levantou, sentindo um gosto de terra em sua boca. Ele a cuspiu, com repugnância, e olhou para si mesmo. Suas roupas estavam molhadas e sujas de lama. Sentiu-se confuso, até perceber que um pequeno rio passava por seus pés, onde um grande charco de lama havia se formado. Olhou ao seu redor, querendo saber que lugar era aquele. Estava cercado por árvores altas, com troncos grossos e retos. Vários galhos finos se ramificavam no alto delas. Ele se perguntou sobre onde poderia estar, até perceber que era inútil. Afinal, aquele não era o seu mundo.
Um vento soprou, fazendo as árvores se remexerem, e seus ossos tremerem. Ele sentiu um cheiro podre permeando o ar, o que levou seus olhos a procurarem aquilo que o exalava. Com pavor, percebeu os vários cadáveres espalhados pelo raso riacho que molhava seus pés. Havia pelo menos uma dezena deles, apodrecidos e cobertos de lama. Alguns estavam tão desfigurados que nem pareciam humanos. Usavam roupas que lembravam soldados de algum filme sobre a idade média que assistira antes. Armas estavam espalhadas por todos os lados também.
Seu estomago se remexeu, e ele se afastou, saindo do lamaçal. Sentiu um gosto amargo subindo por sua garganta até a sua boca, e depois o jorrou para fora. Passou algum tempo com a cabeça abaixada, respirando pesadamente. Então gradualmente acalmou sua respiração, cuspiu o gosto amargo de sua boca, levantou a cabeça e limpou seus lábios com as costas da mão.
Ele olhou para os lados, vendo apenas árvores. Uma confusão lhe veio a cabeça. Gritou, chamando por alguém. Eles devem estar por aqui também, pensou, mas fosse Caio, Theo, ou Júlia, não via ninguém. Ele estava sozinho. Sozinho em um lamaçal, cercado de cadáveres, dentro de uma floresta estranha, ouvindo o som longínquo de animais, e sem nada para se proteger. Apenas a arma que trouxera, ou ele pensara até perceber que não havia nada em mãos. Poderia tê-la derrubado na lama? Não, o rio não era de forma nenhuma fundo, ele a teria visto.
Tentou se lembrar o que acontecera. Havia entrado no portal a segurando, mas algo aconteceu, e quando despertou, não a vira mais. Ela de alguma forma desapareceu entre o portal, e o que quer que fosse aquele lugar, deduziu.
Em algum momento, Eduardo desistiu de pensar sobre isso, e passou a refletir sobre sua situação. Ele morrera, e fora enviado a outro mundo. Se contasse a sua mãe, ela o mandaria parar de brincar, e lhe daria outro sermão sobre voltar a igreja. Seu pai perguntaria, se por acaso, ele havia bebido. Inconscientemente, acabou sorrindo ao pensar isso, sorriso esse que morreu ao se perguntar se os veria novamente.
Cansado de pensar, ele soltou um longo e profundo suspirou.
Aquele era para ser um dia especial. Iria vencer o interclasse, sentia isso. E então, sairia com Júlia para comemorar. Talvez apresentasse as amigas dela a Theo e Caio. Um riso autodepreciativo lhe veio, quando percebeu o quão irônico isso era. No final eles acabaram “saindo juntos” de qualquer forma, mas não do jeito que esperava.
Ele escutou o canto de pássaros acima. Eles saltavam entre os galhos como se estivessem em uma enorme ciranda. Então ouviu outro som, bem abaixo de si. Um som de algo arfando, e se mexendo no chão lamacento, onde deveriam estar apenas os cadáveres em decomposição. Foi então que viu. Um deles se ergueu.
Eduardo pulou para trás batendo levemente as costas no tronco de uma árvore.
O corpo ficou em pé e grunhiu.
— Que merda é essa na minha boca? — falou.
Ele reconheceu a voz.
— Caio? — perguntou, ofegante.
— Eduardo, é tu que tá aí? Não consigo ver? — Ele limpou os olhos, que estavam sujos de lama — Parece até que eu dormi num chiqueiro. Você sabe o que rolou? Ei, que cara é essa?
— Eu… eu só acordei aqui também — Ele suspirou aliviado.
— Cara, parece que eu fui arrastado na lama, onde estamos? — Ele tentou limpar o ombro sujo de lama com a mão, também suja de lama.
— E eu que sei? — Eduardo gesticulou com os ombros — Aquele deus nos disse que iriamos parar em algum lugar de outro mundo. Não pensei que seria logo no meio do nada. Ainda mais, em um lugar cheio de cadáveres.
Caio virou sua cabeça ao ouvir a palavra.
— Cadáveres? — Fez uma expressão confusa.
— Sim — Eduardo apontou para o chão.
— Puta merda — Ele gritou ao percebê-los.
— Quando te vi se mexendo, achei que fosse um deles — brincou Eduardo.
—Ei, não brinca com isso — Caio começou a fazer o sinal da cruz com a mão.
— Sim, preciso de perguntar uma coisa…
Eduardo parou de falar, percebendo que havia mais alguém ali, caminhando a alguma distancia deles.
— Que ótimo, mais uma vez acordo sem saber onde estou, e dessa vez, todo sujo — reclamou Theo, falando alto o suficiente, para que pudessem escutar de onde estavam.
— É bem como você disse Edu, achei que fosse um dos cadáveres se levantando — falou Caio.
— Sim — Eduardo riu.
Theo tentou se limpar, sem muito sucesso, até percebê-los o observando.
— Poderiam ter me avisado que estavam assistindo — murmurou, enquanto se aproximava.
— Queríamos ter certeza de que era você. Todo sujo de lama assim, nem sua mãe te reconheceria — disse Eduardo.
— Sim, surtada como ela é, ia acabar te esfregando com bombril — Caio falava entre risos.
— Ah, calem a boca — resmungou Theo — não é como se estivessem melhores do que eu.
Eles continuaram a rir, e brincar entre si por um tempo, até finalmente falarem sério sobre sua situação.
— Onde acha que estamos? — Eduardo perguntou.
Theo examinou os corpos, sua face estava esverdeada.
— Em algum lugar entre a queda do império romano, e o saque de Constantinopla — Theo disse, apontando para os cadáveres — parecem guerreiros medievais dos jogos que eu zerei.
— Achei a mesma coisa — concordou.
— Isso quer dizer que estamos na idade média? Pensei que fosse outro mundo — Caio questionou, com uma sobrancelha levantada.
— Não quis dizer que estamos na idade média, mas que estamos em um lugar que se parece com ela — Theo continuava com sua cara pensativa, que usava quando precisava resolver um quebra cabeça de algum jogo.
— Se estamos em outro mundo, então talvez não devamos chamar de idade média — declarou Caio.
— E que diferença faz o nome da época em que estamos? — Theo disse em um tom desdenhoso.
Ele falava assim quando achava que uma pergunta era idiota.
— Acho que não é hora para isso, galera — Eduardo pôs os dedos nas têmporas.
Eles conversaram entre si tentando pôr as coisas em perspectiva. Pouco depois, avistaram mais três pessoas, sujas de lama da cabeça aos pés, vagando entre as árvores. Eduardo as chamou.
— Ufa, que bom que encontramos vocês, meninos — disse uma das amigas de Júlia, que tinha tranças no cabelo.
— Entramos no mesmo portal, claro que acabaríamos no mesmo lugar — observou Theo, com sua habitual delicadeza.
A garota lhe deu uma cara azeda em resposta.
— Não era certeza — ela retrucou — algo podia acontecer, não sabemos todos os detalhes.
— Não aconteceu, e é isso que importa — concluiu ele.
A garota bufou, franziu as sobrancelhas, e cruzou os braços, o encarando com uma raiva visível em seu rosto. Enquanto Eduardo assistia a cena, sentiu um puxão em seu braço.
— Onde estamos? — Ela perguntou. Seus olhos pareciam com os de um filhote de gato indefeso.
— Eu não sei — Eduardo lhe respondeu, sua mente de repente ficou mais calma.
— É, nenhum de nós sabe — disse Caio, suspirando.
— O que são todos esses corpos? — A outra amiga de Júlia perguntou, assustada.
— Também não faço ideia. Já estavam aqui quando cheguei — Eduardo suspirou, cansado daquela conversa.
— Na verdade, ele pensou que eu fosse um deles — disse Caio.
— Você fede a um — Theo comentou.
Como sempre, os dois começaram a trocar insultos, ignorando o lugar e a situação.
— Ei, não é hora para isso — reclamou Eduardo —, tem uma coisa que preciso perguntar a todos.
Os dois pararam e focaram sua atenção nele. As garotas também estavam o escutando.
— Vocês trouxeram algo? — perguntou — Quando acordei, não estava com nada.
Como se acertados por um raio, eles se remexeram e tatearam o corpo, antes de começar a olhar para os lados, como se procurassem por algo.
— Não vejo minha arma — disse Caio.
— O meu cajado também sumiu — declarou Theo.
Os outros também alegaram o mesmo.
— Qual é a merda de sentido de nos dar algo que não vamos levar? — reclamou Caio — aquele lustre desgraçado.
— O que ele havia dito mesmo? — matutou Eduardo — ele nos daria presentes e conselhos.
— Dádivas, bençãos e conselhos. Bom, até agora ele não deu conselho nenhum — respondeu Theo.
— E daí o que ele disse — Caio bufou — estamos no meio de um monte de árvores.
— O nome é floresta, querido — declarou a amiga morena de Júlia. Seu nome era Letícia, pelo que Eduardo se lembrava.
— Eu sei como se chama, mas o que fazemos agora? — Ele cruzou os braços.
— Abraçamos uma árvore? — Theo deu de ombros.
Eduardo respirou fundo.
— Galera, eu sei que tá tudo confuso, com… o que aconteceu, mas agora precisamos esfriar a cabeça.
— Acho melhor sairmos daqui — disse Júlia, olhando para os corpos espalhados pelo chão.
— Mas pra onde? — questionou Caio.
Eduardo olhou para os lados. Tudo o que via eram árvores com troncos cheios de musgo, com o céu azul aparecendo acima, por entre as folhas. Ele então olhou para baixo, onde o pequeno riacho passava.
— Vamos seguir esse riacho — disse — talvez encontremos algo ou alguém.
— Ou talvez um riacho maior — Theo falou.
— Tomara, quero me banhar? — Leticia soltou um suspiro, jogando um pouco de lama, que estava presa em sua roupa, no chão.
— Esperem — alardeou Caio —, acho melhor levarmos isso — mostrou uma espada que achara no leito do leito do riacho, próxima aos corpos —, para o caso de encontrarmos alguém
— Não acha que é perigoso? — Júlia perguntou.
— Perigoso seria não termos nada para nos defender.
Ele a balançou, e depois a pôs em uma bainha que também encontrara na lama.
— Sabe ao menos usar isso aí menino? — disse Leticia, cruzando os braços com uma sobrancelha levantada.
Aquela posição fazia Eduardo lembrar-se de sua mãe.
— Podemos aprender depois — se interpôs, ele pegou uma lança perto de si e se virou —, agora é melhor andarmos.
Assentindo, todos começaram a andar, até que Júlia, que estava ao seu lado, virou-se para trás. Eduardo virou na mesma direção, onde Carmen jazia agachada.
— Carmen, tem algo errado? — Ela perguntou.
— Ah, não, só estou um pouco enjoada por causa desses corpos — Ela se levantou e caminhou até onde eles estavam.
— É, eu também, vamos sair logo daqui — disse Eduardo, começando a andar.
Eles seguiram o curso da água, pelo que pareceu ser algumas horas, e a fome, e o cansaço lhes incomodar. Caio encontrou frutas entre as moitas, se oferecendo, a contragosto de Eduardo para prová-las, antes que os outros comecem. Possuíam uma consistência parecida com a de uma uva, o gosto, porém, não era tão agradável. As garotas resistiram no início, mas logo foram vencidas pela fome que todos sentiam. Por sorte, eles haviam encontrado uma boa quantidade, no entanto, como não podiam carregar muitas, comeram todas as que encontraram
Theo e Caio diziam constantemente que deveriam caçar algum animal. Leticia debochava de ambos, insinuando que nenhum deles saberia, se quer, como fazê-lo.
Não que houvessem tido muitas oportunidades. Eles avistaram poucos animais enquanto andavam, a maior parte sendo pequenos, como coelhos e esquilos. Um coelho em especial chamou a atenção de todos. Era do tamanho de cachorro médio, e possuía um chifre pontudo em sua cabeça, como o chifre de um unicórnio. As garotas se assustaram, ao menos Julia, pelo que Eduardo pode perceber com elas segurando em seu braço. O animal os encarou por poucos segundos e depois desapareceu entre as árvores.
Só perceberam o passar das horas, quando viram o sol se pôr, e o dia dar lugar a fria noite. Eduardo tentou fazer uma fogueira antes de escurecer completamente, mas seu esforço fora inútil. Théo cruzou os braços, fez uma careta e olhou fixamente para a madeira por um certo tempo, até que Leticia lhe fez uma chacota.
— Querido, acha que vai fazer fazer aparecer fogo do nada só olhando para isso aí? — zombou ela.
Após desistirem do fogo, eles se sentaram em uma roda aquecendo uns aos outros para se protegerem do vento frio da noite. Eduardo lembrava de ter visto isso em um documentário animal. Júlia se aninhou em seu ombro, ele passou o braço ao redor dela, sentindo seu corpo tremendo. Poderia ter sido um bom momento, se não fosse por Caio, que também se mantinha colado ao seu ombro oposto. Além disso, tinham de suportar a fome, se alimentando de algumas frutas que Eduardo, Theo, e Caio, haviam trazido em seus bolsos, enquanto escutavam os estranhos sons da floresta ao seu redor. Eduardo podia jurar ter visto o brilho de olhos os observando através da escuridão, como em um dos desenhos que ele assistira quando pequeno.
A manhã veio, lenta e preguiçosamente. Eduardo passara metade da noite acordado, na melhor das hipóteses. Os outros não pareciam melhores, mas só tinham uma coisa a fazer.
Eles continuaram seu caminho, até chegarem a um ponto cheio de rochas, onde o pequeno riacho se encontrava com um rio maior, como Theo havia dito. Era um lugar Júlia sugeriu um descanso, e não houve discordância. As garotas se afastaram para lavarem seus corpos nas margens. Theo, Caio e Eduardo fizeram o mesmo, retirando as camisas e as lavando no rio, as pondo para secar em seguida em uma das rochas. Caio, então, começou a balançar a espada que pegara dos cadáveres de um lado para o outro.
Ele estava fazendo errado.
Estranhamente, mesmo sem nunca ter segurado uma em sua vida, Eduardo podia claramente perceber isso. Ele olhou para Theo que estava de olhos fechados, sentado com as pernas cruzadas, como se estivesse meditando.
— Que negócio é esse que você tá fazendo? — perguntou.
— Estou tentando me concentrar — Theo respondeu, ainda de olhos fechados.
— Em que?
Ele deu de ombros, balançando a cabeça.
— Não tenho certeza, apenas sinto algo diferente em meu corpo, como se tivesse entrada na puberdade pela segunda vez.
— Isso quer dizer que finalmente vai nascer algum pelo aí? — disse Eduardo, acariciando o próprio queixo.
Theo abriu os olhos.
— Não é nesse sentido que estou falando. E mais como…hum… bem, não sei explicar — Ele os fechou de novo.
Eduardo se sentou ao seu lado, com a lança encostada no ombro. Em pé, ela chegava até a altura de sua cabeça, então era preciso ter cuidado ao movê-la perto de outra pessoa, ou assim ele pensava. Estranhamente, Eduardo não sentiu dificuldade em manuseá-la, ou se movimentar segurando-a. Não se preocupava em acertar alguém acidentalmente, na verdade tal pensamento lhe era ridículo. O cabo parecia se encaixar perfeitamente em suas mãos, e o peso não lhe era desconfortável, quase como se já estivesse acostumado.
Ele olhou para o céu acima.
— O que vai rolar agora? — perguntou olhando para cima.
— Agora, o que? — Theo continuava com os olhos fechados.
— Aqui, agora, nesse mundo. O que vamos fazer aqui?
— E eu sei lá — ele deu de ombros.
— Isso é tão ridículo, por que teve de acontecer? — Eduardo pôs as mãos no rosto.
— Cara, calma, não vai ajudar nada entrar em pânico, ou pensar coisas desnecessárias — Theo pôs uma mão em seu ombro.
— Eu sei, mas o que vamos fazer agora? — Eduardo suspirou.
— Tem pessoas aqui — Theo afirmou —, isso sabemos pelos corpos de ontem. Se seguirmos o rio, talvez achemos uma cidade, ou fazenda. Quando chegarmos lá, decidimos o que fazer depois.
— Você acredita mesmo nisso? — Eduardo o encarou.
— É isso ou continuar comendo essas frutinhas — Theo mostrou uma das frutas que haviam pegado no dia anterior, e a comeu.
Eduardo sorriu.
— Sim, tem uma coisa que eu queria te perguntar. Por que você pegou uma lança? — Theo saiu de sua suposta pose de yoga.
— Como assim?
— Sabe, Caio pegou uma espada, e eu — Ele se levantou enquanto falava —, se fosse escolher, também pegaria uma, mas você foi direto em uma lança. Por quê?
Eduardo refletiu a respeito. A princípio ele não havia pensado muito. Apenas a pegou pois achou que seria mais útil do que uma espada, mas por que chegara a essa conclusão?
— Estou sem armadura, ou algo que proteja meu corpo, então um combate a curta distância com espada me deixaria em desvantagem. A lança é maior, então posso manter o inimigo afastado enquanto ataco — Ele concluiu, embora caso errasse a estocada, ficaria vulnerável a um contra-ataque.
Deveria ter pegado um escudo também, mas não havia visto nenhum por perto, e a lança já era suficientemente pesada para segurá-la com uma mão.
— E você, por que não pegou nada? — questionou.
Theo deu de ombros.
— Prefiro não carregar muito peso enquanto ando, e também, não acho que preciso — sorriu.
Antes que Eduardo pudesse entender, eles ouviram gritos vindos da direção em que as garotas estavam.