Crônicas dos Caídos - Capítulo 8
Júlia espremeu a camisa encharcada, que lavara no rio. Somente com água não ficaria limpa de novo, mas pelo menos poderia retirar a maior parte da lama. Elas encontraram um lugar na margem repleto de pedras, grandes o suficiente para se esconderem no caso de alguém aparecer. Não que ela achasse que isso aconteceria. Apenas não gostava da sensação de estar apenas um sutiã ao ar livre, sem nada para lhe cobrir. O frio já era incomodo o bastante, o risco de ser vista já era demais.
— Você acha que está tudo bem fazermos isso assim? — disse Carmen, que se sentara ao seu lado — e se os garotos nos espiarem?
Ela não tirara sua roupa, se limitando a limpar o sua cabeça, braços e pernas.
— Eles não vão fazer isso — respondeu Júlia —, nos prometeram.
A garota olhava para todas as direções, como se a qualquer momento, alguém pudesse surgir de dentro das árvores com uma máquina fotográfica, e espiá-las.
— Sei, como se pudéssemos acreditar neles. E você — apontou com o dedo — tem muita coragem de ficar exposta assim — gritou para Leticia, que se banhava no rio usando apenas suas roupas íntimas.
— Não é diferente de ir à praia de bikini — ouviram-na gritar de volta, voltando para margem — E depois, se tentarem qualquer coisa eu os arrebento — disse flexionando um braço enquanto saia da água.
Ela tinha músculos desenvolvidos, típicos de alguém que praticava artes marciais desde os sete anos. Júlia tinha medo de quebrar uma costela quando recebia seus abraços.
— Você dá confiança demais a eles — Carmen a olhou com franzindo as sobrancelhas.
— Ah garota, não importa como pense, depois de tudo vamos ter de confiar neles — Ela apanhou suas roupas, que estavam secando ao sol.
— Eles são confiáveis Carmen — afirmou Júlia —, eu acho — Continuou esfregando.
— Queria saber o que houve com os outros — murmurou Letícia, enquanto vestia sua calça.
Tanto Júlia quanto Carmen abaixaram as cabeças cabisbaixas.
Ela pensava em seus colegas de sala e professores, imaginando onde eles estariam naquele momento. Passou a mão nos cabelos, vendo o quão desarrumados estavam.
Os dele também devem estar, pensou.
— Talvez eles tenham sido mandados para algum canto perto daqui — Carmen falou com um sorriso.
— Talvez — disse Leticia, não parecendo muito convencida.
Júlia também não se animara muito com tal ideia, como se sua mente se recusasse a acreditar nela. Focou em terminar de espremer a camisa em suas mãos. Como não tinham outras mudas de roupas, ela precisaria usá-la novamente, assim que a lavasse, e a esperasse secar. Então viu a marca da gráfica de sua mãe gravada na camisa.
Não são apenas aqueles que vieram que provavelmente não veremos mais, refletiu.
Limpou uma lágrima no canto de seus olhos antes que as outras percebessem, e então olhou na direção de Leticia, que fechava o zíper de sua calça, percebendo algo estranho em seu corpo.
— Lê, o que é isso em suas costas? — perguntou curiosa.
— Hum? Isso o quê? — A garota se virou confusa.
— Aqui — Ela se aproximou e tocou com o dedo.
— Do que você tá falando garota? — Leticia fez uma careta.
— Como assim do que eu tô falando? Isso nas suas costas — Julia alisou para sentir a pele de Leticia.
Se fosse falsa, teria saído com a água do rio, pensou.
— Ah, para de tocar aí, faz cócegas — Leticia protestou.
— Cadê, deixa eu ver — disse Carmen, se aproximando.
Ela olhou para o ombro direito de Leticia, e depois soltou um guincho fino.
— Uma tatuagem? — falou surpresa.
— Não acredito que você teve coragem de fazer isso — disse Júlia, com tom de reprovação.
— Quando foi que você fez? — Carmen parecia animada.
— Que? Como assim? Eu não fiz tatuagem nenhuma — Leticia virava-se de um lado para o outro, tentando ver a tatuagem.
— Então o que é isso nas suas costas? — indagou Júlia, tocando novamente a sua pele.
— Eu sei lá, não consigo ver, caralho — Berrou Letícia.
— Mas é uma tatuagem, e bem-feita, ali… às… — Carmen parou de falar, olhando com uma cara de espanto para o lado.
— O que foi? — Júlia perguntou, assustada por sua reação.
Ela virou na mesma direção, e percebeu o que sua amiga vira. A princípio pensou que fosse um dos garotos as espreitando, mas quando vira a criatura a sua frente, desejou que fosse isso.
— O que é aquilo? — Leticia perguntou ao percebê-lo.
— Não sei, mas não me parece um bicho — Júlia disse, tentando entender o que era aquilo,
Não era um animal, disso tinha certeza. Ela estava em pé sobre duas pernas, como um homem, porém sua face não parecia humana. Era pequena, da altura de uma criança, e tinha uma pele esverdeada. Segurava um pedaço de madeira em uma das mãos, que parecia ser uma arma rudimentar, e não usava nada que o cobrisse. Quando olhou para baixo, Júlia percebeu que era um macho.
A criatura permaneceu parada a uma distância considerável delas, sem fazer qualquer movimento. Se não fosse pelo movimento de sua barriga, enchendo e secando, seria fácil de confundi-la com uma estátua. Mas, a forma como as encarava fixamente deixava Júlia desconfortável. Ela cobriu o seu corpo com a camisa, e ficou em pé. Como se respondesse ao seu movimento, a criatura berrou com uma voz terrivelmente alta. Pouco depois, mais, semelhantes a ela, surgiram por entre as árvores. Eram ao menos dez, mas Júlia notou que mais deles escondidos nas árvores. Berravam, uns para com os outros, com vozes horríveis, enquanto se aproximavam com passos desajeitados. Leticia e Carmen se levantaram, se aproximando de Júlia.
Ela pensou em correr, mas eles já haviam as cercado de ambos os lados. Cada um segurava uma espécie de bastão, fino nas mãos, mas que engrossava gradualmente até chegar na ponta.
As três se aninharam, ficando de costas para o rio, com as criaturas em volta. Poderiam entrar nele e fugir nadando até onde os meninos estavam, mas apenas Leticia sabia nadar. A correnteza a paralisava, lembrando-a daquele grande rio que vira antes de tudo acontecer.
Por um momento, se deixou entrar em pânico, mas foi trazida de volta a sí por Leticia, que gritou seu nome. Júlia olhou para ela, o olhar apreensivo em seu rosto a deixou ainda mais apavorada.
— O que fazemos agora? — perguntou.
— Temos que chamar os meninos — disse Leticia — Gritem, tão alto quanto puderem. Entendeu Carmen?
Carmen, que estava encolhida atrás delas, mexeu a cabeça assentindo.
Elas gritaram, tão alto quanto suas gargantas permitiam, esperando que os garotos pudessem ouvir. Pelo menos Julia esperava que Eduardo ouvisse. As criaturas pareceram entender também, ou fora isso que Júlia pensou quando elas avançaram, erguendo os porretes em suas mãos finas e ossudas. Leticia se pôs na frente, defendendo o golpe de um deles com os braços, gemendo de dor ao recebê-lo. O porrete se quebrou, para a surpresa da criatura que a acertara. Leticia a chutou, fazendo-a cair para trás. Ela então se virou para encarar a próxima que a atacara.
Júlia tentou fugir, mas antes que percebesse, ela estava separada das outras duas, e cercada pelas criaturas. Se viu olhando para Carmen, que se agachara de um golpe de porrete, que havia sido mirado em sua cabeça, e depois saltou para o lado, escapando de outra criatura que tentara agarrá-la. Júlia não sabia que ela possuía tamanha agilidade, mas teve pouco tempo para admirar sua amiga, pois outras três criaturas estavam ao seu redor, se aproximando lentamente, enquanto mostravam seus dentes pontudos e amarelados.
Um deles avançou rapidamente, e a atacou com o porrete. Ela não conseguiu reagir a tempo, como Carmen e Leticia, e acabou sendo acertada na perna esquerda, caindo de joelhos, enquanto gemia de dor. Sentiu outra pancada em seu ombro, que a fez cair com o rosto no chão. Sentiu mãos pegajosas agarrando seus braços e corpo. Lutou para se soltar, mas aquelas bestas puxavam seu cabelo, ao ponto de quase arrancá-lo. Ela não conseguia ver o que estava acontecendo. Sentiu que estava sendo arrastada. Ouviu gritos de Leticia e Carmen misturados as vozes esganiçadas das criaturas. Se debateu, tentando fugir, até um deles jogar um pó em seu rosto, e ela sentir o mundo se distorcer enquanto sua visão começava a sumir.