Deckard - Histórias de outro mundo - Capítulo 04
Enquanto Carl subia pelo túnel, Deckard decidiu ver o altar mais de perto.
Conforme se aproximou das colunas que mostravam o caminho até o altar, percebeu que elas tinham gravuras feitas em alto relevo. Muitas estavam bem desgastadas, mas ainda era possível ver as cenas que elas exibiam; de guerras, armas e cenas que pareciam remeter à eventos de algum tipo de civilização passada.
Depois de olhar para elas por alguns momentos, pôde reconhecer algumas que se assemelhavam à gravuras romanas, gravuras gregas e também alguns desenhos que lembravam vikings. Todas as figuras eram relacionadas à guerras de alguma forma.
Enquanto se aproximava do altar, pôde notar que o último degrau também era entalhado.
Conforme alcançou o último andar, pôde ver que o altar em si era escavado; para que ficasse em um nível abaixo da altura dos andares, como uma espécie de piscina rasa e vazia.
Deckard entrou no desnível e iluminou em volta.
Nas bordas do desnível, haviam símbolos esculpidos. Ao olhar bem em volta, percebeu que o desnível dava a ideia de que a pessoa no altar estava dentro de uma arena circular, um coliseu, e também pôde notar alguns relevos que se assemelhavam à textos escritos em línguas que não reconheceu em um primeiro momento.
— Ainda bem que nunca perdi o costume de carregar meu sketchbook — relembrou em voz alta, para ninguém em específico.
Pegou seu pequeno caderno e uma caneta no bolso do seu casaco e foi copiando os relevos do altar conforme ia se aproximando.
Não foi uma tarefa fácil, pois só estava contando com a ajuda de duas pequenas lanternas, uma presa no capacete e o outra que estava presa embaixo de seu braço.
Após copiá-los, se sentou sobre o altar, para decifrar o que poderia ser aquilo.
Com alguma dificuldade, conseguiu reconhecer dois tipos de linguagem, o que lhe custou bons vinte minutos.
Conforme conseguia separar as duas línguas, pôde reconhecer uma como uma forma arcaica de latim. Nesse momento, agradeceu mentalmente ao seu professor da faculdade, que o puniu com aulas de latim durante dois semestres inteiros.
— Ah, se o Carl já estivesse aqui com as luzes, minha vida seria tão mais fácil — Deckard voltou a resmungar sozinho.
Como se ouvisse seu pedido, Carl apareceu no túnel com uma lanterna em uma das mãos e o chamou de longe.
— Doutor, trouxe uma lanterna maior para o senhor, imaginei que iria facilitar o trabalho — Carl avisou, ao chegar ao fim do túnel.
— Ah Carl, estava pensando sobre isso agora mesmo — Deckard respondeu, aliviado.
— Bem, aqui está — Carl seguiu em sua direção, para lhe entregar e já voltou em direção ao túnel. — Agora, vou subir para buscar os materiais para mapearmos isso aqui. O Sr. César ficou de trazer eles até a entrada do túnel.
— Certo, vou voltar ao trabalho.
Assim que pegou a lanterna, colocou ela no chão, voltada para o altar. O que lhe permitiu perceber mais uma gravura na parte de trás do mesmo. Como já estava decifrando os outros relevos, decidiu terminá-los antes de lidar com esses novos.
Depois de algum tempo, pôde enfim perceber que se tratavam apenas de passagens relacionadas aos deuses da guerra de diferentes culturas. Nada muito gratificante, depois de todo o trabalho que teve.
— Vamos ver o que esse altar ainda tem reservado — Deckard se virou para as últimas gravuras que encontrou e começou a examiná-las atentamente. Depois de algum tempo, percebeu que se tratavam de uma espécie de poema em latim.
— Vamos ver o que temos aqui.
“O vos qui mundi dominari quaeritis
Qui scis quod telum tuum est scientia
Veni ad me ad imperium ut omne quod tuum est tolle caelum
Vince omnia potes
Sub benedictione Martis”
Enquanto lia mentalmente e anotava as linhas do texto, percebeu que a gravura tinha um detalhe que o deixou um tanto surpreso. O poema estava escrito em alto relevo no meio de uma gravura que lhe trouxe um certo ar de familiaridade.
Ele começou a reparar nos detalhes e buscar na memória o motivo dessa sensação. Foi quando veio à sua mente uma lembrança, de uma noite sem aula na faculdade.
Na noite em questão, eles estavam sem energia em toda a faculdade. Assim, todos aproveitaram o tempo livre para conversar entre si e para se divertirem. Alguns amigos de Deckard o chamaram para jogar algo que eles jogam em seus notebooks. Deckard se contentou em apenas vê-los jogarem entre si, enquanto revisava a matéria que estavam vendo em aula, antes da queda de energia.
Aquela gravura se assemelhava muito à uma daquelas telas de informação do jogo de computador, que seus antigos amigos jogavam.
— Como era mesmo o nome? — Deckard forçou a memória, tentando lembrar — MN…
— AH, MMORPG — ele anunciou em voz alta depois de se lembrar, só para estranhar tudo ainda mais.
— Mas, como isso pode estar aqui? — ele estava realmente perdido, sem entender. — Isso parece ter sido feito à tanto tempo e parece tanto com algo tão atual.
Aquilo realmente lha deixou surpreso e confuso. Esse lugar parecia ter caído em desuso há séculos. Apesar da surpresa, ele resolveu dar atenção ao que poderia resolver, como a tradução das escrituras em latim.
Graças ao bom Deus, seu latim não estava enferrujado.
“ Ó tu que buscas dominar o mundo
Tu que sabes que o conhecimento é a tua arma
Venha a mim
Venha ao poder
Tome tudo que és teu
Tome os céus
Conquiste tudo o que puderes
Sob a benção de Marte ”
Assim que ele terminou de ler em voz alta, sentiu como se uma descarga elétrica passasse pelo seu corpo. Uma sensação estranhamente familiar. Que o levou a pensar no pesadelo que teve tantas noites seguidas.
E quando a sensação aumentou, ele começou a olhar em volta, procurando o que poderia ser a causa dessa sensação. Entretanto, tudo que viu foi o altar se iluminando, com uma coloração azulada, enquanto faíscas começavam a sair das gravuras.
Por um momento, Deckard ficou paralisado, assustado com isso. Ele já havia passado por inúmeras situações em escavações no passado, mas nada havia sido tão estranho e surreal quanto aquela experiência.
De repente, como se tivesse despertado algum instinto primitivo adormecido, sentiu a necessidade de sair dali e correr para o túnel. Algo estava muito errado, como se ele tivesse despertado algo que não deveria ser tocado.
Colocou o caderninho dentro da blusa e começou a correr, mas parecia que corria em câmera lenta, como se o mundo tivesse parado. Quando foi pisar fora do altar, Deckard se chocou com uma barreira invisível, que o lançou ao chão, abismado. A última visão que teve foi de Carl tentando correr para lhe ajudar, enquanto gritava por ele.
— Doutor! — a voz de Carl foi se tornando abafada, conforme o som de eletricidade corrente aumentava e Deckard sentia uma letargia tomando conta de seu corpo e o lançando em direção à inconsciência — Dou…D-Dout…..
Cabrum…
Foi quando um raio estourou dentro da câmara e tudo começou a desmoronar. Enquanto isso, Deckard sentia o frio abraço da morte vindo ao seu encontro.
“…Me pego pensando sobre tudo novamente.
Sobre tudo que deu errado, sobre todas as coisas que poderiam ter sido diferentes, sobre como eu queria que fossem. Enquanto isso, encaro a paisagem,
Ela nunca me decepciona. Nunca deixo de me encantar com a beleza que cerca todas as nossas misérias.
O céu resplandece em um azul tão claro, ainda tenho a impressão de que, caso me esforce, vou ver a redoma de vidro que cobre o mundo e seus mistérios. Mas, eu sei que é apenas mais um dos meus delírios infantis…”
Outra vez, estava sendo confrontado pelo mesmo sonho, pelos mesmos pensamentos.
Estava sendo lançado novamente de encontro àquela paisagem ao longe; aquela mesma vila, aquelas mesmas montanhas.
Mas não parecia certo, alguma coisa estava diferente.
Esse brilho azulado, que lhe tirava da sonolência, não fazia parte do sonho.
Isso fazia parte da sua lembrança, do momento em que ele ainda devia estar vivo.
— AHHHHHH — Deckard gritou, enquanto tentava se levantar espantado, em meio a tropeços. — E-Eu…
— Eu devia estar morto! — ele começou a apalpar seu corpo, para ter certeza que não faltava nada. Mas, a sensação lhe parecia tão errada; não era assim que ele se lembrava de seu corpo. — O que aconteceu lá? O que aconteceu comigo?
De repente, ele sentiu novamente a inconsciência, a sensação de vertigem tomando conta de si; mas Deckard se recusou a se entregar ao desmaio, com medo de não acordar mais. Ele fez muita força para se manter acordado e, quando virou para o lado, tudo que pôde fazer foi vomitar e se sentir mal.
— Onde eu estou? O que aconteceu? — as dúvidas começaram a invadir sua mente aos montes.
Depois que parou de vomitar, começou a olhar em volta, tentando se encontrar. De alguma forma inexplicável, ele não estava mais na caverna.
Ele não deveria, mas reconheceu aquela paisagem e se recordou do sonho que atormentava suas noites há algum tempo.
Tudo estava muito confuso. Ele estava desnorteado, enquanto suas lembranças e sonhos se misturavam. Nada fazia sentido.
— Quero sair daqui, isso não é real. — ele se recusou a aceitar, se levantou cambaleante e correu sem rumo, aos tropeços, mata adentro.
Deckard sentia os galhos o arranhando, a ardência das feridas, o cansaço, o medo e a incerteza; mas se recusava a parar. Ele queria fugir desse lugar, dessas lembranças, desse medo. Correu até cair novamente, sem forças pra se levantar. E se viu obrigado a aceitar essa estranha realidade, contra sua vontade.
Só agora, havia percebido uma mensagem piscando em uma tela na sua mente, como se tivesse estado ali a vida toda.
— Seja bem vindo jogador —
Que a benção de Marte o acompanhe e o guie ao topo do mundo.
– VOCÊ TEM PONTOS DE ATRIBUTOS NÃO DISTRIBUÍDOS (5) –