Destino da Quimera - Capítulo 10
— Por que logo ela vai quem vai fazer o juramento? Isso nem mesmo faz sentido! — gritou um garoto, no meio de uma multidão de outros garotos e garotas.
— Hey você ao menos sabe o que deve ser dito? Me diz que não espera só precisar balançar a espada de lá pra cá na frente de todo mundo! — dessa vez garota se exaltou, também no meio da turba.
— Recrutas se acalmem um pouco… — um soldado falou, frente a multidão dos novos recrutas, mas não conseguia ouvir nem a própria voz.
— Nós treinamos até mesmo cada ladrilho que precisamos pisar durante um ano inteiro enquanto você vadiava por aí com aqueles dois, sabe o que é isso?
— Não adianta ignorar todo mundo como se estivesse olhando pra uma porta!
Um dos recrutas saiu de entre a multidão e passou pelo único soldado que tentava conter os ânimos de todos, com velocidade e passos firmes e barulhentos se aproximou de uma bancada, onde duas pessoas estavam ao lado oposto escrevendo em pergaminhos.
Igual a muitos estava vestindo uma armadura metálica de forma errônea, era possível ver as placas metálicas movendo-se mais de cinco centímetros toda vez que movia uma parte do corpo. Sem falar a falta do capacete e manoplas, parecia ter vestido apenas as botas grandes e torso para fazer cena.
— Escuta aqui, garota. Todos aqui estão insatisfeitos com isso e pela sua cara você também está, então serei direto… — estava sendo totalmente ignorado com a pessoa que dirigia a voz, então bateu firmemente a mão despida sobre a madeira da bancada.
O som da batida pareceu sincronizar perfeitamente com o de uma garrafa quebrando ao atingir sua cabeça sem proteção. Caiu no chão com a visão turva, ainda acordado, sem conseguir voltar a razão pelos segundos seguintes antes de apagar de vez, tornando o ambiente de volta a um silêncio momentâneo.
— Vistam corretamente suas armaduras enquanto há tempo e parem de perturbar quem organiza suas informações, qualquer erro numa única ficha pode causar uma dor de cabeça absurda para vocês depois, pois se alguém me cobrar sobre o erro quem pagará serão vocês — falou o soldado que ainda mostrava uma expressão de calma e sequer elevou muito a voz para dizer aquilo, todos resolveram prestar atenção nele no momento que acertou a cabeça de um recruta com uma garrafa.
— Aliás, quem mandou vocês usarem armaduras fora do padrão imperial? Darei mais dez minutos para ajeitarem esse erro antes que encaminhados diretamente pra prisão por insubordinação. — após isso ele conseguiu manter uma conversa mais calma com os recrutas, agora ex-alunos de Ludos, uma vez que quase metade precisou correr para encontrar armaduras que lhes coubessem e/ou completasse o conjunto.
A discussão estava acerca das duas garotas frente a todos, na bancada antes atingida pela mão do estudante. Ambas foram convocadas para a Academia de Oficiais Imperiais.
Em total plenitude, a garota que tentavam intimidar continuou escrevendo.
Diferente dos demais recrutas, as duas possuem o cargo de Taifeiro, algo que na hierarquia militar de Éter representa uma piada aos recrutas da academia imperial, uma forma de avaliar as atitudes de um recruta colocando-o em um cargo alto o suficiente para não obedecer sargentos, mas baixo o suficiente para apenas comandar as funções de um alojamento e seus gastos.
Pela história de Éter, um cargo que surgiu durante a conquista sobre o Reino de Ferro, onde os esquadrões de espiões sequestraram as esposas dos líderes da casa Lunaria e Solaria, pois pela cultura do Reino de Ferro as mulheres não lutariam em guerra, sendo deixadas no máximo para trabalharem na taifa. Através do engano sobre o que a esposa de um líder de ambas as famílias representavam e pela má índole dos soldados, um dos principais eixos da guerra girou com um ataque de dentro para fora dos acampamentos do Reino de Ferro.
Após esse caso, as mulheres das duas casas fundadoras do império, atribuíram o apelido de taifeiros as cônjuges dos oficiais de Ferro, algo que espalhou ao ponto de virar um termo generalizado no tempo de guerra para todos os empregados/civis do Reino de Ferro, tornando-se uma humilhação querer ou tentar matar um Taifeiro para os soldados de Éter.
Nas década posterior ao fim da guerra, uma nova forma de testar recrutas proeminentes foi atribuí o cargo Taifeiro.
Essa garota que tanto reclamam raramente foi vista na escola pelos demais alunos, somente aparecia para prestar alguma avaliação dos professores e nas outras desaparecia, de resto apenas conseguiam encontrá-la passeando junto a dois companheiros, que misteriosamente desapareceram nos últimos meses.
Por sua negligência, ninguém atribuiria como uma boa pessoa para o cargo, mesmo que a única coisa que soubessem sobre ela fosse sua capacidade de combate, pois em toda expedição de treinamento ou testes de combate mostrava perfeição.
Foi a única pessoa além de Monet a conseguir destruir o Golem, mas diferente do garoto usou apenas uma lança sem magia.
Poderia ser dito que ela difere em pouco de Noelle, que está ao seu lado.
Contudo caso ela — ou Noelle — não houvessem sido convocada para a vaga na academia imperial, algum aluno teria a chance, ao menos a maioria que sacrificou muito esforço e tempo considerava isso e não tentava aceitar que uma pessoa tão leviana conseguiria a vaga. E aceitam menos ainda essa informação ter sido jogada em suas faces somente a alguns horas atrás.
— Não vi nenhum dos dois durante a cerimônia de formatura, eles estão bem? — perguntou ela, com uma voz calma ignorando todo o redor.
— Como? — sem entender no primeiro momento a pergunta repentina, a reação de Noelle acabou ganhando uma leve erguida de sobrancelha da garota. — Estão bem, eu acho… Não estão em casa ainda.
— Espero que passe bem. — disse ela, num tom de certa forma decepcionado.
Noelle não tentou perguntar qualquer coisa após isso e a garota também não abriu mais a boca, deixando apenas a função de preencherem as fichas em suas mãos e permaneceram em silêncio, encarnando a turba, até o momento de serem convocadas para a passeata.
Quase meio hora após, finalmente começaram as preparações para marcharem.
— Como alferes irei carregar o estandarte, atrás de mim seguirá a banda. Os dois pelotões principais estarão destacados logo atrás dos Taifeiros e devem seguir seu ritmo, sem reclamações! — gritou Luka, o chefe da guarda de Ludos.
Portava em mãos um grande bastão com uma bandeira negra, portando o notório símbolo do império em seu centro — um cajado serpentado por uma corda e uma cabeça de serpente ao topo. A armadura simplória em seu corpo era pesada, de aço reforçado e sem qualquer cor.
— Não enrolem e formem logo as duas filas de cinco em minha frente até completarem cinquenta! — bradou com todo pulmão ao ver os recrutas, e antes seus alunos, correndo de um lado ao outro.
Estava na frente da entrada principal de Ludos, na zona interna da academia, assim que saíssem o evento iria começar oficialmente, então qualquer preparação deveria ser feita agora.
Alguns alunos ainda mostravam relutância em seguir as regras, mas não havia nada que poderiam fazer.
Haviam diversos alunos tomando posições erradas, rindo ou conversando alto, ignorando uma possível bronca de seu antigo instrutor — afinal não estariam mais sob seus cuidados depois disso. Luka poderia fazer algo, mas apenas permaneceu.
Enquanto isso os Taifeiros calmamente observavam a situação na frente dos pelotões.
— Escudos, flanco direito! Lanças, com escudos! — Falou Noelle, apesar de bom tom sequer precisou gritar para impor sua ordem, algo que repercutiu para todas fileiras em sua frente e ao mesmo tempo para a fileira que não seguiria seus comandos.
Ela estava prestes a dizer algo novamente, mas sentiu algo semelhante a um tremor em seu corpo ao ouvir a voz de sua semelhante regendo uma ordem após ela:
— Arco escudo, a frente! — gritou ela, mesmo os mais arredios a seguirem as ordens tomaram a posição que ela mandou e sequer perceberam a mudança.
E ao mesmo tempo, ambas falaram: — Batedores, com a Banda!
Luka avaliava as instruções, não haviam muitos problemas em usarem termos simples e montarem um posicionamento igualmente simplório, mas sabia que não era bem a melhor formação num campo de batalha.
“Bom, estamos em Lunaria, não na fronteira…” pensou enquanto fez sinal para a banda entre em formação.
Enquanto os pelotões principais estavam sendo organizados na frente, em conjunto com a banda, atrás deles estavam os demais recrutas, em fileiras de dezesseis, com apenas uma pessoa frente a todos.
Eles, por um acaso, apenas falavam uns com os outros enquanto aguardavam o início da marcha, pois sua formação fora pronta em menos de dois minutos apesar de serem duzentos alunos, não houve relutância em seguirem as regras do regente.
— Preparadas? — Perguntou Luka, sentia seu elmo frio sobre a cabeça careca e isso lhe causava agonia.
As garotas assentiram, enquanto o Alfere ergueu seu estandarte pesado e balançou da direita para esquerda e logo após para frente, onde girou o corpo em direção do portão iniciando sua marcha.
Luka moveu-se com passos pesados e metálicos para fora da academia, sendo o primeiro a sair com a bandeira balançando suavemente contra a fraca brisa que o atingia.
Logo após sair pelo grande portão de Ludos, recebendo continência dos guardas que formavam uma grande linha marcando seu caminho pela cidade e impedindo o avanço dos civis. E dois metros atrás, vieram ambas as garotas, cobertas por um manto negro de pele grossa e firme, escondendo o que quer que vestissem abaixo dele.
Sendo visível somente o vibrante prateado das botas em movimento e elmos firmemente preso em suas cabeças. Diferente dos recrutas, era possível ver seus rostos abaixo do elmo e acima da grossa crosta de couro entre seus pescoços.
Logo atrás de ambas vinham os pelotões, com apenas um metro de distância.
Fora os recrutas próximos ao espaço entre a banda e o outro pelotão, os demais vestiam o mesmo padrão de armadura: uma armadura negra de capacete (ou elmo fechado), dívida entre a comum e a reforçada, mas ambas cobrindo todo o corpo. Aqueles com armadura reforçada estavam localizados nas bordas do pelotão, sendo frente e o flanco onde não passa a banda.
No flanco da banda vinham diferentes soldados, batedores usando armaduras metálicas leves e cianas, apenas placas de metal em partes específicas do corpo (como antebraços, ombros, peito, etc).
E a cada três fileiras um trio da fanfarra (banda) seguia tocando tambores grandes e de som estrondoso, coordenando a marcha dos recrutas, enquanto recebem ordens diretas do Alferes.
Atrás dos guardas montando a extensa linha de segurança, os civis de aglomeram um ao lado do outro, observando e comemorando o começo da marcha, porém no mínimo sete a cada vez ansiavam pelo próximo passo.
Quando todo o primeiro contingente deixou a academia e atravessou uma distância de trezentos metros de sua posição inicial, Luka agitou novamente a bandeira. Seu estandarte foi balançado da esquerda para frente uma única vez, antes de retornar a posição de descanso, com sua bandeira contra o vento.
Atrás das duas taifeiras os pelotões se uniram mais próximos da fanfarra e o flanco direito e esquerdo do, agora, único contingente, formou uma grande barreira de pesados escudos erguidos.
E pedras voaram contra os escudos.
Freyres voaram contra os escudos.
Aos poucos o chão encheu-se de moedas brilhantes e pequenas pedras.
A tradição para a passeata dos novos recrutas em Ludos ou na Academia Imperial de Oficiais, igualmente para companhias ao fim de uma guerra.
As pedras representam escárnio aos soldados e seus superiores; uma família que envia seu único filho ao fronte de combate, aos pais que são mortes durante uma investida noturna, a pilhagem de guerra, aos campos queimados.
A moeda representa a alegria pelo fim da guerra, o desejo do sucesso da campanha ou pela estabilidade. Afinal a guerra trás miséria em todos os sentidos a uma população, principalmente quando travada por motivos fúteis, mesmo que na vitória traga grandes recompensas.
Enquanto a banda e soldados estavam protegidos dos projéteis por escudos, seus oficiais — fora o alferes — devem andar sem olharem para os lados e não podem perder a compostura, mesmo com o metal de seus elmos sendo atingidos, vez ou outra acertando a parte desprotegida do rosto.
O motivo para a falta de proteção era claro: manter-se impassível.
Sem sorrisos, sem fúria, sem gritos e sem expressar incômodo.
Uma regra de ferro que surgiu antes do império ser erguido.
Em meio aquela chuva de pedras, sempre caminhando em frente e poucas vezes mudando o foco de seus olhos, uma criança passou entre os guardas e parou na frente do caminho da misteriosa garota. Algo que em outras situações poderia ser simplório, naquela não era.
Primeiro que havia a chuva de projéteis que continuaria até que alguém notasse a criança, algo simples, porém a segunda era algo inevitável: não poderiam parar sem ordem do Alferes, mesmo com a criança no caminho, ou seriam punidos por quebrar a formação. E em terceiro, a criança sofreria uma punição imposta sobre seus pais por atrapalharem um cortejo militar, algo que não seria muito barato.
E sobre os olhos curiosos de Noelle, que quebraria a formação caso visse a necessidade de ajudar aquela criança, um ato interessante apareceu: a criança simplesmente foi “engolida” pelo grande manto da garota e mesmo seus pés deixaram de ser visíveis.
“Como ela agarrou a criança sem mexer a coluna?!” — a frase na mente dela quase ecoou como um grito em sua boca, mas permaneceu quieta apesar da dúvida, o som do metal atingindo sua cabeça era forte o suficiente para lhe retirar o desejo da fala.
Noelle buscou entre a população quem poderia ser o pai daquela criança, que mal parecia ter passado dos seus cinco anos de idade. E unicamente encontrou um sorriso familiar entre todos, qual estava visivelmente fascinada com a garota que ocupa a praça de regente do outro pelotão.
“O que está fazendo Louise…”
Segundos após a saraivada de pedras cessar, viu os pés da criança atingindo o chão ainda dentro do manto e em seguida sair correndo na direção dos guardas, enquanto ria. Os recrutas abaixavam o escudo no mesmo momento, então foram poucos aqueles que prestaram atenção naquele ato.
“Perfeitamente calculado, chega a ser bonito de se ver.”
Sob as novas ordens do Alferes, as duas regentes pausaram seus passos e viraram para o lado, frente uma a outra, enquanto os pelotões repetiram o mesmo movimento e mesmo a banda seguiu para perto do regimento principalmente.
Ao fundo uma mulher coberta por um robe negro, com uma grande estampa do império em suas costas e rosto oculto por um capuz vinha a passos calmos, diferente dos outros não marchava, mas não era possível notar se estava ou não marchando. Sob suas ordens, todo uma companhia de recrutas caminhavam com seriedade quase tomando toda a rua com sua fileiras extensas.
Quase duzentos soldados que aos poucos afinaram suas linhas atrás da mulher e formaram uma fileira no espaço entre as primeiras tropas, logo após isso a marcha prosseguiu com um trio — Noelle, a direita, a figura de robe ao centro e a segunda Taifera a esquerda. Luka prosseguiu em frente com a bandeira em mãos.
Foram apenas mais alguns metros antes de novamente pararem, quando todos recrutas já estavam fora da cidade, sendo observados pelos civis que permaneceram longe deles.
O estandarte foi cravado sob a terra e todos respiraram fundo, um minuto completo em silêncio ouvindo a tranquilidade da natureza nas planícies verdejantes.
Noelle conseguia ver a pequena mansão onde cresceu não muito distante, sobre uma colina e um sorriso quase preencheu seu rosto ao ver duas figuras próximas dali.
Bella e Monet correram para fora da cidade quando houve o primeiro intervalo e agora estavam entre um pequeno rebanho de touros… Precisamente acima de touros “doceis” a eles.
O sorriso que surgiu de repente desapareceu na mesma velocidade ao lembrar que ainda estava frente ao cortejo e pior ainda: frente a bandeira.
Ela queria ter sorte para aguentar sem rir das cenas quê aconteceriam após o início da “Saudação”.
Luka posicionou-se frente a bandeira, enquanto acenava com a cabeça para a Taifeira tomar a frente e dizer as palavras da saudação, uma vez que ela fora escolhida como porta voz.
Ninguém prestava atenção em Noelle fora a mulher de robe, que notava claramente um sorriso quase sendo formado no rosto da garota e seus olhos constantemente saindo da bandeira para o grupo de animais a distância.
Nenhuma das duas prestava real atenção no discurso da porta voz, mas isso mudou ao final do discurso ao fim do discurso quando o alto som de batidas metálicas no peitoral da companhia foi gerado e cada vez mais aumentava, chegando a causa um zunido no ouvido de todos, que foi ignorado pela euforia do momento.
No peito de Luka a placa metálica de sua armadura pesada já mostrava uma parte evidentemente amassada devido a brutalidade que bateu sua manopla, algo não muito diferente de alguns outros recrutas. Por baixo dos capacetes fechados, alguns contorciam o rosto pela dor que veio através do exagero.
— …POR ÉTER! — bradou com força nos pulmões o alferes, a taifeira, a maga, Noelle e em seguida todos os recrutas. Até mesmo a população estava gritando essas duas palavras.
No fim, Noelle conseguiu aguentar a vontade de rir quando os animais começaram a fugir pelos estrondos fortes que ocorriam ali, levando Monet e Bella consigo. Poderiam ter uma despedida melhor ou passado um maior tempo com eles, mas sentiu ter sido o melhor jeito para acabar uma parte de sua vida.
Ao menos levava em seu pescoço um último presente de Monet, enquanto descansava sua mão sobre o punho de uma boa espada, um dos últimos presentes de Bella.