Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 101
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- Capítulo 101 - Enfim, Yoshida Miyu e Matsumoto Manabu estão livres. (2/2)
1º Dia
10h27
…
As repetições já se perdem na casa das centenas.
Confesso que está sendo uma experiência muito menos torturante comparada com a primeira vez. Justamente porque não estive sozinho até este momento.
Por mais controversa possa ser a minha afirmação, os mesmos amigos que matei incansavelmente e sem a menor piedade, serviram como apoio moral para mim e também uns aos outros. Estes apoios notoriamente não duraram para sempre, alguns se quebraram e se perverteram durante este caminho.
No entanto, eu sou o último que pode reclamar a respeito de qualquer ação que eles tomaram, nada que fizessem chegaria próximo das atrocidades que cometi e que ainda estaria disposto a cometer. Continuo podre, imundo pelo pecado, restando-me apenas ocultar este lodo para o próprio bem deles.
Após a morte de Keiko, os outros quatro não demoraram muito para partir, a degeneração logo chegou aos seus órgãos vitais. Assim sobrando apenas Manabu, Miyu, Mikoto, Ailiss e eu.
Com o número de sobreviventes tão reduzido, o conselho estudantil já não tem mais papel algum a cumprir, e assim nossa única responsabilidade é prezar pela própria sobrevivência.
Em outras palavras, a nossa rotina tornou-se basicamente preparar o almoço e aguardar tediosamente pelo reinício desta realidade. Esta é a prisão na qual estamos sujeitos, uma pena perpétua.
Esperar e esperar, vez após vez.
…
Caminho pelo pátio da escola, mas não avisto ninguém aos meu arredores. Uma forte nevasca invade o colégio, prejudicando muito a minha visibilidade.
Mesmo em meio ao vento cortante que atravessa o meu blazer e dissipa o meu calor corporal, continuo a minha busca.
— Mikoto?! Ailiss?! Onde vocês estão?!
Estou sozinho?
Não consigo encontrá-las, nem mesmo Manabu e Miyu estão por aqui. O que está acontecendo?
Não! Não pode ser! Não me deixem sozinho!
Uma angústia desesperadora bate em meu peito, e então começo a correr esforçando-me para não me desequilibrar devido a esta forte brisa e a espessa camada de neve onde meus pés afundam.
Ofegante, vasculho a escola de ponta a ponta na busca das duas, mas não vejo ninguém.
Enfim, paro de correr e abaixo o meu rosto em meio a uma pausa para respirar. Em seguida, ao levantar novamente o meu olhar, vejo a silhueta de alguém camuflada pela nevasca em frente ao bloco principal.
Não se trata de Ailiss ou Mikoto, pois não aparenta ter cabelos longos como os delas. Então, só pode ser a Miyu ou o Manabu.
— Ei, onde vocês estavam?! — aproximo-me e constato pela sua estatura que não se trata de nem um deles.
O rapaz vira lentamente a sua cabeça e então revela a sua identidade.
— Shou?! Você está vivo?!
Ele termina de se virar e se apresenta com um grande ferimento em seu tórax.
— Johann, por que você me matou?
Bem, eu não queria matá-lo. Mas aquilo se fez necessário.
— Johann — escuto um chamado atrás de mim.
Viro-me repentinamente e constato quatro pessoas ensanguentadas paradas sob a nevasca.
Haruki, Keiko, Natsuki e… Takashi?!
— Vocês também sobreviveram?! — arregalo os meus olhos.
— Johann.
— Johann.
— Johann.
Escuto o meu nome ressoando de variadas direções.
Enquanto observo os meus arredores, todos os meus colegas, todos aqueles que assassinei a sangue frio nas minhas intermináveis tentativas caminham lentamente em minha direção.
— Por que você nos matou? Por que você nos matou? Por que você nos matou? — suas vozes se sobrepõem à medida que me acercam.
E-Eu não queria.
Um passo de cada vez, eles caminham até mim.
— Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê? — as vozes deles ressoam em minha mente.
Levo as mãos até a minha cabeça, enquanto me contraio em desespero.
— Desculpem-me! Desculpem-me! Desculpem-me!
E em um choque, desperto levantando-me com a respiração ofegante.
Olho para o teto, fito o ambiente à minha volta e então esfrego os meus olhos.
Entendo.
Era somente mais um desses sonhos. Eles estão ficando cada vez mais frequentes.
…
— Passou a noite em claro de novo, Jocchi? — pergunta Manabu bocejando.
— Sim. Estava com dificuldades para dormir, então resolvi ficar de vigia — respondo.
Devido a esses estranhos sonhos, está cada vez mais difícil para que eu consiga ter uma boa noite de descanso.
— Por que você ainda insiste em fazer isso? Só sobrou a gente. Não há mais necessidade, ninguém irá nos atacar durante a noite.
— Eu sei, é só a força do hábito, não há como evitar. Mesmo assim, não havia mais nada para fazer.
Além do mais, não sei por quanto tempo aqueles demônios pretendem nos deixar nesta monotonia, não me surpreenderia se um desastre natural atingisse a escola a qualquer momento.
— Como assim nada? Francamente, Jocchi… quanto potencial jogado fora. De todos os estudantes que estavam presos aqui conosco, você é o que está disparado na melhor situação — aproxima-se de mim e cochicha no meu ouvido — Por acaso nunca pensou que poderia fazer “você sabe o quê”?
Não é possível que ele esteja insinuando algo assim logo pela manhã, achei que já estaria tão abatido quanto eu depois de tanto confinamento.
Suspiro e o encaro.
— Acho que você bateu a cabeça e acabou tomando o lugar do Shou para articular esses comentários inoportunos — respondo.
Acabo por impulso citando este tabu. Logo o humor de Manabu retoma a sua verdadeira forma, transparecendo no olhar o seu real cansaço.
Ao que tudo indica eu errei no meu julgamento, ele de fato está abatido, ainda mais por lembrar-se da forma que os nossos vínculos com Shou foram rompidos. No fim, acredito que ele só estava tentando me animar com uma piada. Infelizmente, perceber este tipo de coisa nunca foi o meu forte.
— Desculpe-me, falei aquilo sem pensar — completo.
— Não há porque se desculpar, é a verdade… não podemos apagar o fato de que aquilo aconteceu. Shoucchi fez o que fez, e o passado não pode ser alterado. Ainda me pergunto se haveria outra forma… se poderíamos ainda estar com ele.
Faço esta mesma pergunta para mim diversas vezes. Havia algo que eu poderia ter mudado? Ou este presente sempre foi uma fatalidade?
— Acredito que você e a Miyu só conseguiriam adiar o problema. Em algum momento ele exigiria que suas demandas fossem atendidas, e então? Trairiam a si mesmos para atender este mero capricho? Trairiam o que sentem um pelo outro?
Manabu sem respostas apenas mantém-se em silêncio, aproxima-se da janela e então compartilhamos da mesma vista.
O mesmo céu, as mesmas nuvens, o mesmo amanhecer. Este mesmo ambiente permanece estático no tempo.
O clima taciturno é quebrado pela chegada de Miyu.
— Ah, aí vocês estão garotos. Estava os procurando por todo lugar, a Kaichou e eu iremos fazer um café da manhã! Então, vocês tem algum pedido em específico? — pergunta Miyu sorridente.
— Lámen — responde Manabu.
— Eh?! No café da manhã?! Claro que não!
— Se não posso escolher, Miyucchi, então por que perguntou?!
— Por que pensei que você iria escolher algo mais balanceado! Temos que comer mais frutas e verduras para cuidar da nossa saúde!
— Eh?! Do que adianta ficar se preocupando com isso, se daqui três dias tudo vai recomeçar e iremos voltar para o nosso corpo físico do começo da semana?
Miyu puxa a sua orelha.
— Pelo menos isso servirá como um aprendizado de bons hábitos alimentares. Você também precisa fazer algum exercício físico — resmunga.
Tão esforçada… você realmente é bastante esforçada para não demonstrar suas emoções, Miyu.
Eu sei que você estava aí escutando a nossa conversa. Mesmo assim, preferiu fingir que não ouviu e então esboçou um falso sorriso. Você faz tudo o que está ao seu alcance pelo bem estar dos outros, não é? Infelizmente esse seu tipo de egoísmo não é um dos melhores, é um caminho bastante doloroso. É algo que de certa forma temos em comum.
— Ei, Johann-kun. O que está esperando, vamos. Senão a Yukihara-senpai ficará incomodada com a demora, e se o café da manhã atrasar a Ailiss-san ficará mais zangada ainda.
— É… isto é bem preocupante — os sigo até o refeitório.
…
A tarde deste mesmo dia, Manabu vem falar comigo.
— Com licença, estou interrompendo algo? — abre a porta do conselho estudantil e espia cuidadosamente a sala.
Realmente ele mudou muito a sua percepção sobre relacionamentos entre garotos e garotas na vida real depois de ter ficado preso neste mundo. Achava mesmo que estaríamos fazendo algo indevido aqui?
— Claro que não, pode entrar — respondo enquanto pressiono um cronômetro em cada mão.
— O que exatamente as duas estão fazendo? — pergunta ao apontar para Ailiss e Mikoto.
As duas estão com quatro jogos de tabuleiro sobre a mesa da presidência: xadrez, damas, shogi e go.
— É assim que nós costumamos passar o tempo nestas últimas iterações que decorreram. Com o fim das responsabilidades do conselho estudantil, esta foi a melhor forma que encontramos para ocupar a mente — comenta Mikoto enquanto realiza uma jogada.
— Achei que você não gostasse de jogos, Jocchi — fala Manabu.
— E eu não gosto. Por isso só fico cronometrando a partida delas — respondo.
Agora, parando para pensar melhor, é uma ocupação um tanto “miserável” que venho desempenhando neste meio tempo.
— A propósito precisa de algo? — completo.
Elas prosseguem intercalando uma jogada para cada tabuleiro enquanto eu pressiono os cronômetros.
— Na verdade eu queria falar com você em particular, mas vejo que está um pouco ocupado as ajudando.
Falar comigo? Será que tem algo haver com o fato de eu ter comentado sobre Shou hoje cedo?
— Pode ir, Mistkerl — diz Ailiss soltando a peça.
— Já estávamos planejando fazer uma pausa mesmo para esfriar a cabeça — Mikoto se espreguiça.
Então me viro para Manabu e ele continua.
— Vamos até o terraço do bloco, há algo importante que eu quero dizê-lo.
O que poderia ser? Tão repentino…
O sigo até lá e ao abrir a porta vejo Miyu nos esperando na alvorada.
— Johann-kun, que bom que veio — comenta Miyu ao nos ver.
Miyu também está aqui? Este ambiente não está me passando uma boa impressão.
— E então? O que aconteceu?
— Precisamos conversar… Manabu e eu tomamos uma decisão e achamos importante falar com você antes de qualquer coisa.
— Sou todo a ouvidos — respondo.
— A verdade, Jocchi, é que há algumas iterações eu comecei a tossir sangue assim como aconteceu com Keiko e com os nossos colegas. Os sintomas do decaimento lentamente estão surgindo no meu organismo.
Entendo. Então o tempo de Manabu está no fim… acho que ele já resistiu bastante no fim das contas. Não sei bem o porquê dele e da Miyu possuírem mais resistência do que a maioria, quem sabe por estarem por muito tempo expostos a minha pessoa, sendo eu um jogador.
Ou talvez por possuírem uma força de vontade maior do que qualquer outro aqui dentro… gente com um parafuso a menos pode demonstrar-se incrivelmente resiliente.
— Sinto muito por você. Ajudarei no que for preciso na sua assistência médica.
— Não precisa se preocupar com isso. Nós, por termos tratado diretamente os enfermos, sabemos o quão doloroso este processo pode ser. Então achamos apropriado antecipar o nosso desaparecimento, numa forma de eutanásia — explana Miyu.
Estranhamente sempre pensei que Miyu seria a primeira a se opor a esta solução. Talvez estando nesta situação ela tenha mudado de ideia. Todavia, da maneira que ela expôs, dá-me a entender que pretende cometer este ato juntamente ao Manabu. Não conseguirá lidar com a sua partida?
— Você também? Está apresentando os sintomas do decaimento?
— Felizmente, não. Mas você sabe que é apenas uma questão de tempo para chegar até mim, né? Logo decidi partir junto com o Manabu-kun. Seria difícil para eu superar a morte dele de qualquer forma.
— Compreendo os seus sentimentos. Acho que eu faria o mesmo no seu lugar, Miyu. Como vocês puderam perceber, não obtivemos nenhum avanço significativo em todo este tempo… talvez esta seja a atitude mais sensata a se tomar.
— Nunca pensei que diria isto, Jocchi, mas sinto-me triste por você não ter a opção de simplesmente morrer assim como nós. Nesta ocasião, Miyucchi e eu fomos abençoados por não termos sido escolhidos como jogadores — comenta Manabu.
Ser um “imortal” sempre foi uma maldição, percebi isso logo ao descobrir quem eram as minhas duas adversárias. O destino gosta de ser irônico e nos colocar diante das piores decisões possíveis. Porém, chamar a sua situação de benção? Se realmente fossem abençoados não estariam presos aqui para o começo de conversa.
— Enquanto eu estiver com aquelas duas, acho que posso aguentar um pouco mais. Ficar cronometrando as partidas delas não é tão tedioso como aparenta. Além do mais, se o número de repetições for o mesmo da vez que passei só, então estamos apenas no começo deste inferno. Ademais, depois de alguns séculos acredito que acabaremos nos acostumando e nem mais veremos o tempo passar.
— Em relação a isso, deixo um conselho: Tente não deixá-las abusar tanto de você. Se imponha um pouco — comenta Miyu enquanto para na beirada do terraço.
— Acho que isso é impossível. Mas me surpreende vê-la conspirando contra a sua ídolo.
Manabu vai até o lado dela e então olham para mim pela última vez.
— Realmente sentimos muito, mas os sintomas que se apresentaram serviram apenas de desculpa. Já queríamos há bastante tempo partir. Simplesmente não aguento mais ficar neste mundo de repetições. Em um mundo sem futuro não nos sentimos vivos, mas sim presos — fala Manabu.
Isto sempre esteve escrito nas suas expressões. Eu sei como se sentiam, infelizmente não havia nada o que eu poderia ter feito para ajudá-los.
— É bom ouvir de vocês como realmente se sentem.
— Acho que nos despedimos por aqui, Jocchi.
— Obrigada por nos ouvir, vamos indo — conclui Miyu.
No fim, eu nunca tive a honestidade de contá-los os horrores que fiz nas minhas tentativas de proteger Ailiss e Mikoto. De fato, sou um péssimo amigo e por isso carregarei tal fardo para sempre em meus ombros.
Mas o que há de mais podre nisto, é esta avassaladora apatia. Depois de tudo, o vazio de minha alma parece ter somente aumentado. Não conseguir me sentir frustrado, triste ou magoado, não conseguir sentir nada perante a despedida de meus amigos mais próximos. A perda da minha sensibilidade humana, talvez esta seja uma das minhas penas por todo aquele derramamento de sangue.
No fim, para o mais frio dos monstros, somente a sombra dos seus pecados irá acompanhar seus passos até o abismo.
Os dois finalmente deixam os traços de frustração tomarem conta das suas faces, em seguida seguram a mão um do outro e então se voltam para o horizonte.
Preparam-se para um pequeno impulso, e em um pulo meus dois amigos saltam da angústia em rumo à liberdade.
A liberdade da não existência.