Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 106
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- Capítulo 106 - Constantemente, Yukihara Mikoto está tramando algo. (1/3)
Após tanto tempo preso naquele eterno inverno, o meu corpo não está nada acostumado com calor e tanta luminosidade.
Olho para cima e vejo o sol escaldante de um dia de verão.
— Mistkerl, você ainda não pegou nenhum — diz Ailiss em desapontamento.
Estamos aproveitando nossas férias de verão, para isso tivemos uma infeliz ideia de acampar. O que se resume em mato, sujeira e mosquitos. Desta forma, descobri que ter contato com a natureza pode ser tão problemático quanto se relacionar com outros seres humanos.
— Ora, ora, desta forma apenas tu ficarás sem almoço — caçoa Mikoto.
No momento, nós três estamos sobre um rio enquanto capturamos alguns peixes para a nossa refeição. O que não seria um problema, caso tivéssemos o equipamento adequado.
— Cortem essa. Não consigo pegá-los sem uma vara de pescar.
— Qual a sua desculpa? Eu já peguei cinco peixes com essa lança improvisada — estala a língua enquanto gaba-se.
— Você é um ponto fora da curva, então não conta. Pesca primitiva não é uma competência esperada para um cidadão médio.
Claramente, não consegui pegar nenhum.
Ao menos a gelada água que escorre até o meio de minhas canelas dissipa um pouco do meu calor corporal e refresca o ambiente.
— Do que tu estás a falar, Johann? O rio é raso, calmo e a água é praticamente cristalina. E sem mencionar que eu também já capturei dois — ri baixinho — Por isso, creio que o problema aqui seja com a tua ausência de aptidão motora.
Muito engraçado.
Achei um!
Tento acertá-lo com a lança, mas ao cravá-la na água, logo noto que só acertei as pedras do fundo do riacho.
Por outro lado, percebo que as duas garotas capturam mais um peixe.
— Nada ainda? Vejo que você não leva jeito mesmo, te darei um dos meus — Ailiss comenta em tom ranzinza.
— Obrigado por sua benevolência.
— Pois bem, já está na hora de acendermos a fogueira para assá-los — diz a outra garota saindo do rio.
— Certo, deixa que eu cuido disso enquanto você os limpa — a acompanha e também deixa a água.
À medida que as sigo, uma dúvida indesejada paira em minha cabeça.
Como exatamente viemos parar aqui?
Paro pensativo enquanto vejo as duas garotas se distanciando em direção a fogueira que montamos na beirada do rio.
De repente sinto algo prendendo o meu pé às rochas do fundo.
Imediatamente, volto-me para baixo com o intuito de verificar a situação e percebo que a água que até então era cristalina torna-se opaca. Ao mesmo tempo em que um borbulho de ar se manifesta na superfície.
“Ei, me ajudem aqui! Acho que me enrosquei em alguma coisa!”
A minha voz não sai.
As duas garotas continuam se distanciando enquanto conversam descontraidamente entre si.
“Mikoto, Ailiss! Ajudem-me!”
Conforme tento me soltar, o fluxo de água gradualmente toma a cor vermelha. Em poucos segundos, já estou com a segunda perna imobilizada da mesma forma.
Continuo observando a coloração da água escurecer pouco a pouco, enquanto um sentimento de pavor aflora no meu peito.
Enfim, o que estava me segurando toma forma ao emergir da água e contornar ambas as minhas pernas. Tingidos pelo mesmo lodo de dor, sou agarrado por braços humanos.
Por toda a minha volta, os borbulhos do escarlate sobrepõem-se sobre a face do podre fluído. Lentamente, o que germinam de todas as direções são seres humanos revestidos pela mesma pigmentação dos meus pecados.
Ainda assim, posso reconhecer cada um deles, os quais prosseguem repetindo a mesma sentença.
— Morra. Morra. Morra.
A identidade de quem está me segurando também é revelada ao retirarem as suas faces do lodo.
— Por quê? Por quê, Jocchi?
— Johann-kun, por que nos matou?
Arregalo ainda mais meus olhos, mas logo contraio-me em aceitação.
Entendo, agora que Manabu e Miyu partiram, notoriamente eles também estarão aqui para me julgar. Não há como fugir do meu destino.
Os seus dedos perfuram a minha pele e em seguida puxam-me repentinamente para baixo.
Mergulho neste mar de lama carmesim, ao mesmo tempo em que todos avançam sobre mim.
Suas unhas estão pontiagudas como facas e cortam a minha carne como se fosse papel, de mesmo modo em que rasgam com facilidade os meus músculos e tecidos.
— Morra. Morra. Morra. Morra.
As vozes de Shou, Manabu, Miyu e dos meus demais colegas ecoam mesmo abaixo dessa coluna de lodo de sangue.
Do que somente parecia um riacho, afundo-me continuamente nessas podres águas enquanto tenho minhas vísceras lentamente arrancadas por suas mãos sedentas por sangue.
…
— Meu Deus!
Abruptamente toco em minha barriga e nos meu membros, assim constato que não há nenhum ferimento ou corte na minha pele.
Levanto-me e me mantenho ofegante até conseguir distinguir o real do imaginário.
Levo as mãos até o rosto e esfrego bem os olhos.
Definitivamente estes pesadelos vêm piorando a cada dia.
09h01
Depois de ficar passando mal pelo resto do dia, ainda tive problemas para dormir pela ingestão da comida de Ailiss. Teria sido muito mais simples ter morrido e despertado normal na próxima iteração.
Acordo-me um pouco melhor nesta manhã, de praxe vou até a sala do conselho para ver como as duas estão.
— Sinto muito, tu chegaste tarde demais para o café da manhã. Certo alguém devorou tudo — comenta Mikoto.
Fito Ailiss que permanece em silêncio e não aparenta se importar muito pela fala da outra.
Ainda bem que nossos recursos são infinitos e reiniciam a cada repetição, caso contrário a taxa de consumo de alimentos que ela nos proporciona seria realmente problemático.
— Não pretendia comer nada. Ainda preciso me recuperar um pouco mais. Acho que vou descansar pelo restante do dia.
— Nada disso — me encara com desaprovação — Já organizamos os nossos planos para esta manhã, e nosso cronograma de atividades necessita ser cumprido à risca.
Cronograma? Quem além dela poderia se importar com tempo e planejamento nesta situação? Ela leva a organização como um fim em si.
— E que atividades exatamente são essas?
— Ailiss e eu fizemos um levantamento das atividades de diversos clubes e com isto eu elaborei uma rotina nesta planilha para que pudéssemos realizá-las semanalmente — pega uma prancheta. — Todavia, ao concluí-la constatei que era inviável realizar todas elas, portanto cortei bastante coisa — entrega-me o papel.
Vejo as atividades do dia.
Dia destinado aos clubes de esporte?
Há bastante coisa riscada nesta planilha. Realmente ela havia colocado todos os esportes praticados na escola.
Está na hora de colocar minhas desculpas evasivas que tanto pratiquei com Manabu e os outros para escapar deste compromisso.
— Oh, quem sabe depois que eu acordar eu passe para assisti-las.
— Do que tu estás falando? Tu irás junto conosco — lança um olhar frio. — Isto não foi um convite, havíamos concordado previamente que iríamos cumprir uma lista de afazeres, tu precisas arcar com os teus compromissos. Vamos, te arrume logo.
Eu só não esperava que a sua lista seria tão grande assim. Sem falar que esportes não são o meu ponto forte, sendo sincero, sempre prefiro evitá-los.
— Para falar a verdade, ainda não estou muito legal. Eu preciso ir mesmo junto?
Ela não parece que irá ceder tão facilmente, logo preciso apelar para o segundo nível de evasão: problemas de saúde. Tal como quando dizemos estar mal do estômago para evitar comer algo estranho sem ofender ninguém.
— Sim, precisa. Vai ficar usando isso de desculpa pra fazer corpo mole até quando? — fala Ailiss e me encara.
Agora a outra decidiu se manifestar? E ainda favorável a isto?
Confesso que estas iterações estão cada vez mais inusitadas, não pensei que garotas ríspidas como elas iriam querer se entreter assim. E muito menos me obrigar a participar disto.
Nossa primeira parada é o clube de Kyudo.
— Você começa — Ailiss joga o arco para mim.
Pego-o e observo os alvos.
Acredito que tiro ao alvo não seja um problema para mim, visto que treinei com o revólver e também usei a metralhadora por um tempo tão longo que mal pode ser definido.
Ajusto o arco à minha frente, puxo a flecha, miro no centro do primeiro alvo e então solto o elástico.
Consigo acertar o disco, mas minha exatidão está longe do centro. Acredito que eu preciso considerar a gravidade e os efeitos aerodinâmicos durante a trajetória para obter um melhor resultado.
Por outro lado, Mikoto consegue acertar todos os discos no centro. Assim realizando a pontuação máxima. Vejo que esta garota mantém excelência em tudo o que faz. Ela deve ter compensado até mesmo o efeito de Coriolis para tamanha excelência.
— Como você conseguiu fazer isso? Achei que eu tinha desenvolvido uma boa mira, mas jamais acertaria todos de primeira — viro-me para ela e comento.
— Eu passei por vários clubes durante o fundamental, inclusive artilharia, então para mim isso não foi nada de mais. Precisas de uma ajudinha? — pergunta com um sorriso debochado.
Ah, é claro. Esqueci-me de que ela possui experiência nas áreas mais variadas possíveis.
Ela também não perderia esta oportunidade para tentar me irritar. Aceitar a sua proposição seria o mesmo que me deixar à mercê das suas provocações.
— Não, deixe que eu me viro. Eu já estou entendo o princípio da coisa — volto a preparar o arco.
— Aposto que vai errar de novo — comenta Ailiss com um olhar de desinteresse.
Nunca fui uma pessoa muito competitiva, porém, agora vejo que preciso reagir um pouco para não continuar sendo chacota dessas duas.
— Não sejas tão teimoso. Vou ajudar-te mesmo assim — Mikoto para atrás de mim e me contorna em seus braços.
Ei! Eu disse que consigo fazer isto sozinho. Algo que me incomoda mais do que a negação de um pedido é quando tentam forçar ajuda mesmo quando esta não foi solicitada. Reflexão individual é uma etapa importante para o aprendizado.
Ainda assim, não consigo protestar contra ela, pois definitivamente me tem em suas mãos. O modo que me conduz faz com que eu a siga mesmo contra o meu racional.
Ela continua.
— Mira um pouco acima e um pouco para o lado para compensar o vento — ajusta minhas mãos no arco.
— Assim?
— Perfeito.
Quem sabe, realmente esteja com boas intenções. Talvez ela queira me ajudar e não somente demonstrar a sua superioridade.
Todas as condições aparentam estar adequadas, todavia quando vou soltar a flecha, Mikoto lambe suavemente meu pescoço fazendo-me, por reflexo, desviar a mira.
O-O quê?! O que foi isso?!
A flecha voa para longe e não passa nem próxima dos alvos.
— Que pena, tu erraste — sussurra deboche — Acho que precisarei te dar algumas aulas de reforço.
— A culpa foi sua e deste ataque surpresa.
— Ora, ora. Não sei do que tu estás a falar.
Se fazendo de desentendida? Quanto cinismo… Logo quando eu penso que ela pode ser uma boa pessoa, a própria faz questão de demonstrar novamente a sua personalidade tóxica e manipuladora.
— Já terminaram? Quero ir logo para o Kendo — diz Ailiss levantando-se.
— Como assim? Vocês duas me obrigaram a participar disto. E agora quer ir para a próxima atividade sem nem mesmo tentar acertar o alvo? — indago.
— Eu acertaria de primeira.
— Será? Acho que você está com medo de errar.
Talvez também esteja viciada no padrão de armas de fogo. E por conta disso errará com flechas. Provavelmente cometerá o mesmo erro que eu em subestimar este esporte.
Ela pega o arco e as flechas da minha mão, e não só acerta o centro dos discos como faz com que as flechas atravessem as que Mikoto havia deixado anteriormente.
— Satisfeito? Vou aproveitar para puni-lo pelo desacato durante o Kendo.
O mundo parece conspirar para que eu acabe me ferrando…