Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 111
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- Capítulo 111 - Finalmente, ele, ela e ela encontram suas respostas.
06h14
Passadas algumas iterações após aquela estranha confissão, já me vejo livre. Livre de tudo aquilo que me acorrentava. O cinza do meu passado parece ter finalmente desaparecido, os fantasmas que me assolavam se desmaterializaram sem deixar um rastro sequer.
Ter “sobrevivido” a tudo o que passamos nos tornou fortes a ponto de conseguir conviver com esta maldição e por fim, transformá-la numa bênção.
Claramente era algo impossível de eu conseguir por conta própria. Quando as repetições me jogaram em solidão, tudo o que eu consegui desenvolver foi minha própria insanidade. Nada disto seria possível sem tê-las juntamente a mim.
Sento-me sobre a nossa cama improvisada, fito para os lados e observo as duas garotas dotadas de extrema beleza que dormem tranquilamente. Mikoto a minha esquerda e Ailiss a minha direita.
Vendo-as desta forma, dão-me a errônea impressão de que são anjos frágeis. Na verdade, é justamente o contrário, são fortes guerreiras que me protegeram nos momentos mais conturbados, mas acho que pelo menos enquanto dormem posso considerar que nossos papéis se invertem um pouco.
Acaricio as suas cabeças enquanto fito os seus rostos na penumbra da noite. É como se eu estivesse vislumbrando as mais belas pinturas produzidas pelo divino, sinto que poderia continuar a fitá-las desta forma por toda a eternidade.
Novamente deito-me olhando para o teto ao mesmo tempo em que reflito sobre nosso futuro aqui dentro ou num possível futuro no mundo externo. O que… o que faremos a partir de agora?
11h22
Como uma recompensa por ter sobrevivido toda esta queda no abismo, posso enfim descansar minha alma.
Bem, não posso falar o mesmo do meu corpo físico.
— Levante agora, não tenho o dia todo. Eu sei que você está acordado — diz Ailiss enquanto pisa no meu rosto.
“Não tenho o dia todo?” Em qualquer outra ocasião esta frase poderia fazer algum sentido, mas para a gente, o tempo já não é mais uma variável significativa. O único instante onde o tempo tem algum valor é na hora do mundo resetar dando a início a nova iteração, as quais também já perderam o sentido em ser enumeradas após uma quantidade tão absurda.
Deixando esta discussão técnica de lado, a verdade é que eu somente queria dormir um pouco mais… o meu padrão de dormir cedo e acordar cedo foi completamente arruinado, e por isso estou acordando tarde todo dia. O fim da minha rotina é só mais uma evidência de que o tempo se tornou irrelevante nesta realidade.
A solene garota que pisa em meu rosto prossegue com a explicação.
— A Mikoto está quase terminando o almoço e você não ajudou nada nas últimas vezes — continua forçando a sola de seu pé contra a minha face e aumentando a intensidade gradativamente.
Depois de mais algumas tentativas ela para e então puxa as cortinas da sala para iluminar o ambiente.
Boa tentativa, porém já desenvolvi resistência à luminosidade. Estava com bastante dificuldade para dormir, mas agora me orgulho de conseguir dormir como uma pedra a qualquer horário do dia, possivelmente pela exaustão que estas duas vêm me fazendo passar diariamente.
Vendo que ainda não obteve resultado em me despertar, abaixa-se e sussurra no meu ouvido.
— Você virou um subordinado bem desobediente, não é mesmo? É sério que terei de fazer aquilo de novo? Você não se cansa disso?
Sim, já deveria ter percebido antes.
Ailiss aproxima gentilmente seus lábios dos meus, e num tom provocativo começa a me beijar de modo suave.
Meu corpo reage com estranheza.
Esta não é a Ailiss.
O que você está fazendo? Não é pra ser assim! Cadê a violência?!
Sei bem o que você pretende com isso tudo, mas não posso ficar de braços cruzados. Isso não pode ficar desta forma!
Então tento com os braços puxá-la para um beijo mais intenso, porém ela resiste e continua tocando-me superficialmente com o intuito de aflorar ainda mais o meu instinto.
Junto todas as minhas forças e consigo pegá-la desprevenida girando nossos corpos.
Ironicamente foi a partir dela que aprendi essas técnicas de reação. Desta forma fico por cima e assim posso intensificar mais o nosso toque.
Porém, imediatamente, a garota que é muito mais forte do que eu, gira mais uma vez para cima, afinal ela é a minha mentora neste aspecto. Mas vendo que teve seu objetivo concretizado, isto é, me acordar, finalmente entrega o beijo voraz pelo qual eu tanto aclamava.
— Ora, ora. Estava estranhando a demora… Vejo que vós estais a diverti-vos. Mas que tal continuarem isso após o almoço? — escutamos a voz de Mikoto e nos afastamos.
É… fomos pegos em um mau momento.
Vejo Mikoto nos ironizando enquanto sorri. Em seguida, Ailiss e eu nos entreolhamos.
Você está pensando em…?
Vendo que Mikoto está relativamente próxima, ela a puxa pelo braço na nossa direção antes mesmo de eu terminar de raciocinar.
— Espera, Ailiss, a comida está no fog- — Ela a cala com um intenso beijo.
Pelo visto, ela teve a mesma ideia do que eu. Conhecendo bem a Mikoto, sei que seus impulsos para estas coisas são ainda maiores do que os nossos.
Assim como o previsto, em uma fração de segundos, Mikoto já desiste de qualquer protesto e se deixa levar pelo ritmo.
14h18
— Eu estava fazendo de tudo para me segurar ao ver-vos… sabia que iria terminar assim — Mikoto encara a comida queimada enquanto massageia as têmporas — Francamente… vós não tendes a menor noção de responsabilidade? — leva a palma da mão até a testa em decepção.
De praxe, Ailiss desvia o olhar e finge que não tem nada a ver com a discussão, de modo que a bronca dada pela Mikoto recai apenas para mim. Todavia, não há o porquê de eu me sentir culpado, eu fui o único que não tomou nem uma iniciativa.
— Seja mais honesta. Depois de alguns minutos eu avisei para pararmos, você quis ir além e alegou que daria tempo — respondo.
Confesso que indiretamente provoquei tudo isso ao resistir a me levantar, mas é verdade que também tentei evitar este caos na cozinha.
— Eu não estava pensando racionalmente naquele estado. Tu que começaste isto, portanto julgo que tu és o culpado.
Que critério mais sensato é este, porém teimosa do jeito que é, duvido que aceite qualquer crítica por mais ponderada que seja.
— Nós também podemos alegar estar sob esse mesmo efeito. É um argumento que vale para os dois lados.
— Agora ainda estás tentando te eximir da responsabilidade? Apenas por esta má atitude terás como punição limpar tudo isso, que tal? — aponta para a panela com comida queimada.
Olho ao redor e vejo que Ailiss já deixou a cozinha, como sempre todo o trabalho cai sobre as minhas costas.
15h49
Caminho pelo pátio da escola, a quietude que antes me parecia perturbadora e assombrosa, agora só me causa tranquilidade.
Observo ao redor as árvores que já perderam todas as suas folhas e o chão inteiramente coberto por uma espessa camada de neve. É como se fosse uma pequena floresta na temporada de inverno.
Estas árvores sem folhas, à primeira vista parecem ter perdido tudo. No entanto, justamente por terem as deixado para trás que agora podem diminuir o seu gasto de energia e se manter aquecidas.
— Ora, ora. O que estás a fazer aqui fora? Hoje é o dia mais frio da repetição. Se tu ficares andando desagasalhado de modo imprudente, certamente adoecerá — fala Mikoto.
Viro-me e vejo as duas garotas caminhando em minha direção.
— Ele é idiota, já se esqueceu disso? — comenta Ailiss.
Ignoro o comentário dela e respondo a pergunta anterior.
— Logo a realidade irá reiniciar, então não irá mudar muito o fato de eu adoecer. Ademais, estou apenas dando uma volta e observando esta eterna paisagem enquanto penso um pouco.
— Realmente, tu tens razão neste ponto. Mas ainda continua bastante frio para estares aqui, ao menos para estares aqui sozinho.
Sinto algo quente entrelaçando entre os meus dedos e logo percebo suas doces mãos. Viro o meu rosto para ambos os lados e vejo as minhas duas princesas com serenos sorrisos, os quais não posso deixar de retribuir.
Seguro suas mãos firmemente e volto a andar acompanhado delas.
Acho que caminhar de mãos dadas com uma garota nesta escola era algo inimaginável para mim antes deste bizarro evento se iniciar, quem diria duas. Sem falar no quão espetaculares ambas são.
Seguimos o passeio em silêncio, certamente num momento assim, nem uma palavra a mais é necessária para expor como nos sentimos em relação um ao outro. Somente de caminharmos juntos, já nos entendemos plenamente.
Mesmo estando aqui há praticamente uma eternidade, havia ângulos desta paisagem que nunca havia dado muita atenção e que próximos ao entardecer criam uma mistura de cores majestosa. Porém, acredito que boa parte destes aspectos não poderia ser notada em situações normais, coisas simples assim ganham um valor imensurável somente quando são realizadas juntamente aos seus queridos.
Está bastante frio aqui, mas apenas de estar acompanhado por elas qualquer desconforto vai embora. Fito seus rostos que observam os arredores e não posso deixar de me apaixonar ainda mais a cada instante.
Certamente de todos os contrastes de luzes e cores que vi hoje à tarde, os seus rostos são os mais valiosos.
Tudo isso me leva a um paradoxo. Por um lado quero ver qual seriam as suas reações com outras paisagens, e por outro quero eternizar este momento ao lado delas.
…
Depois de contornar todo o pátio da escola com nossas pegadas, ainda de mãos dadas, sentamo-nos em um dos bancos com nossos corpos colados uns aos outros para nos manter aquecidos mesmo na presença de uma fria brisa de inverno.
Acho que uma cena assim ao entardecer dá um bom estereótipo de romance. Não deixa de ser algo bastante irônico esta cena sendo inserida numa realidade como a que estamos, onde a personificação da morte está apenas alguns metros de distância.
— Se algum dia conseguirmos sair daqui, o que vós pretendeis fazer? — pergunta Mikoto.
Acho que esta questão já foi enterrada há muitos anos na minha mente. É algo tão distante que não consigo mais me lembrar.
— Como irei largar minha carreira de assassina e também não tenho nem um plano em específico para o futuro, acho que o que me sobrará será segui-los para onde forem — responde Ailiss.
— As minhas relações com o templo da minha família era algo que já pretendia cortar previamente. Eu já tinha toda uma carreira acadêmica e profissional entediante planejada, contudo a situação mudou drasticamente estando convosco — suspira — Agora, confesso que eu não teria a menor ideia de que rumo seguir.
Então as duas olham para mim esperando por uma resposta.
Bem, se eu fosse mais ou menos idealizar como seriam as coisas… acho que seria algo da seguinte forma.
— Mikoto, você se importaria em sair do país? — pergunto.
— Não, só precisaria aprontar meus documentos. Por quê? Pretenderias voltar para a Alemanha e irias querer que eu fosse junto contigo?
— Mais ou menos isso. Estava pensando em nos mudarmos para um país pequeno como Liechtenstein.
— Liechtenstein? Por que especificamente para aquele país? — pergunta Ailiss.
— Não precisa ser necessariamente para lá, a verdade é que eu acabei me acostumando a uma vida tranquila como a que estamos levando — observo o silencioso ambiente branco à nossa volta — Por isso pretendia morar em um local seguro e com uma pequena população.
— Concordo com tua escolha. Imagino que tuas habilidades de interação social estariam terríveis como nunca após todo este isolamento, por isso é natural selecionar um ambiente com poucas pessoas — diz Mikoto em deboche.
De fato, depois de tanto tempo só convivendo com as duas, a minha intolerância a multidões estaria forte como nunca.
— Mas para nos mudarmos para a Europa, acho que antes de tudo seria interessante que vocês duas se casassem.
— Ora, ora. Está propondo que apenas Ailiss e eu nos casemos? Tu abrirás mão disso e ficarás de fora da relação? — pergunta de modo sarcástico — Ou isto é uma forma de se livrar de nós duas? Sabes que não há como tu escapares, pois ficaremos na tua cola para sempre — fala no meu ouvido e ri.
— A ideia é você ganhar cidadania europeia e com isso facilitar a sua estadia lá. Tanto o Estado japonês quanto o alemão só levam em conta a monogamia, por isso só dois de nós podem se casar, mas na prática, nós três estaríamos casados.
— Por mim, tudo bem. O importante é nós três estarmos juntos, é isto que conta — responde Ailiss enquanto assente com a cabeça.
E pensar que uma garota tão rude como a Ailiss diria uma coisa fofa dessas. O passar de uma eternidade causou uma grande mudança nela.
— Também não vejo problemas nisso, era mais ou menos a justificativa que eu havia presumido para a tua fala — Mikoto comenta e ri.
Acredito que uma vida lá fora com essas duas, apesar de eu provavelmente ser bastante explorado por elas, seria bem satisfatória.
Há tantas coisas que poderíamos fazer juntos… todavia isto é somente uma fantasia.
Ficamos em silêncio nos aquecendo um pouco mais no banco, e então com o escurecer do céu, solto o seguinte comentário.
— Mas e se por acaso isto nunca acabar? — pauso e vendo que elas continuam em silêncio, completo — Conseguiremos continuar vivendo desta forma para sempre?
— E por que não? — Ailiss replica — Honestamente, já não ligo mais para a minha carreira de assassina ou vingança, então não tenho nenhuma restrição quanto a ficar por aqui.
— Achei que ficariam enjoadas desta realidade. Foi isso que aconteceu com todos os outros. Imagino que uma hora ou outra este tipo de pensamento possa nos contaminar. Do que eu pude perceber os observando, constatei que o tempo sempre acaba nos corrompendo.
— Francamente, Johann. O que te levas a levantar esse tipo de questionamento depois de tantas repetições? Responda-me algo, dado tudo pelo que passamos, tu achas que ficarás enjoado de nós? — indaga Mikoto.
— Claro que não, meu amor, se é que pode ser chamado de amor, por vocês duas é infinito. Mas…
Ela me interrompe e continua.
— Então nossa situação é a mesma. Eu até entendo o teu raciocínio, normalmente por mais apaixonado que seja um casal, depois de algumas décadas eles enjoar-se-iam um do outro e desta vida — nega com a cabeça — Mas nosso caso é totalmente diferente, pois nós tivemos nossas almas literalmente fundidas nesta infinidade de repetições — explana enquanto escora a cabeça no meu ombro.
— Não sou boa em me expressar desse modo, mas eu concordo plenamente com ela — diz Ailiss e faz o mesmo.
Compreendo. Então vocês realmente se sentem da mesma forma… É verdade, vocês estão certas, seja aqui dentro ou lá fora, esta não é uma questão relevante.
— Neste caso, acho que então podemos esquecer o mundo externo e viver aqui para sempre — aperto suas mãos — O que acham? É uma boa ideia?
— Certamente, tu já deverias ter percebido isso antes. Ailiss e eu podemos humilhá-lo diariamente à tarde em qualquer competição que tu escolhas, e à noite transamos — replica Mikoto em deboche e risos — Teria alguma objeção a isso?
— Não poderia pensar em nada melhor. É uma combinação perfeita — Ailiss fita Mikoto e também ri.
Elas têm razão. O que temos aqui é similar a uma utopia realizada e por isso devo deixar esses pensamentos ruins de lado.
Nada poderia pagar a sensação de compartilhar momentos tranquilos como este enquanto as vejo sorrir genuinamente.