Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 112
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- Capítulo 112 - De repente, Yukihara Mikoto…
22h52
Nossa vida a partir de então segue o mesmo padrão.
Repetição após repetição, divertimo-nos como crianças fazendo guerra de bolas de neve, gargalhamos com simples brincadeiras infantis e com as competições mais idiotas que conseguimos inventar.
Ainda me fascina ver estas duas garotas de natureza tão fria caindo em risos com coisas tão simples que viemos fazendo por tantas iterações.
Era algo que pensei que elas enjoariam facilmente, mas a repetitividade de nossas brincadeiras não surtiu nenhum efeito negativo. Acredito que isto se dê porque as atividades em si não são o que sustentam a nossa diversão, mas sim as nossas ligações que vibram por meio delas.
Às vezes tento entender o porquê de eu ter me atraído tanto por personalidades tóxicas como as delas, em todo caso, só me resta aceitar o meu próprio masoquismo. Apesar deste comportamento rude, sinto-me com o peito preenchido por seus sentimentos. Mesmo mostrando o meu lado mais podre em meio a todas estas repetições, vejo que esta minha natureza suja ainda pode ser amada.
Nesta gelada noite, entro com pressa na sala do conselho estudantil, a qual acabou se tornando o nosso quarto, com o intuito de correr para baixo das cobertas e me esquentar.
Gostaria de dizer que me deparo com uma cena inusitada. Bem, seria inusitada para o meu antigo eu, porém isto já está bem recorrente.
Como de costume as duas já estão deitadas e, por conseguinte, as cobertas já estão aquecidas. Entretanto, não obstante, as duas já estão aproveitando a companhia uma da outra antes da minha chegada.
Ambas afastam seus lábios e então se voltam para mim.
— Está atrasado, Mistkerl — fala Ailiss encarando-me como um predador.
— Por que será? Talvez por que as duas tenham deixado toda a louça do dia para que eu lave? Queriam ficar com a cozinha suja até a próxima repetição começar? — falo com um sorriso amigável.
— Não interessa, devia ter terminado mais rápido.
Vejo que apesar de tudo, na última instância ainda sou o escravo dessas duas. Não deixa de ser uma brincadeira agradável, no fim não tenho nenhuma reclamação. Ao me submeter a elas, eu assinei meu contrato de escravidão eterna de livre espontânea vontade.
— Pois é, acho que superestimei a tua competência para cuidar de simples tarefas domésticas — ri com deboche — Como tu estavas demorando demais, então nós decidimos nos apressar. Não ficaste chateado conosco, não é? — Mikoto fita-me com um olhar sedutor.
Cruzo os braços, fecho os olhos e respondo.
— Não, já estou bem acostumado com este tipo de desdém. Mas confesso que gostaria de ser recompensado de alguma forma.
— Então chega de enrolar e venha logo — ordena Ailiss ainda de mau humor.
Aproximo-me do nosso amontoado de cobertores e sacos de dormir. Utilizamos esta bagunça como cama, todavia parece mais um ninho do que qualquer coisa.
— De praxe, hoje é um dos dias que terá uma nevasca, por isso precisamos nos aquecer muito bem — Mikoto sorri e dá espaço para eu me deitar no meio delas.
— Devo concordar com você, caso contrário podemos adoecer — respondo pensativo.
— Ora, ora. Não eras tu que argumentavas que o reiniciar das iterações inibe esse tipo de problema? Por que esta súbita mudança de opinião? — ri.
— É… eu disse isso, de certa forma eu estava correto. Mas sinceramente isso não vem mais ao caso.
Deito-me entre elas, e em seguida ambas viram-se de lado e se apoiam sobre meu tórax.
— Ficar assim é confortável, não precisamos pensar em justificativas — comenta Ailiss enquanto acomoda a cabeça.
Em poucas palavras ela disse o óbvio. Estamos bem, não me refiro apenas a estar aquecido, mas a este mundo como um todo. E isto é o que importa.
Então qual o sentido de pensar a respeito do mundo externo? Temos tudo o que precisamos dentro desta realidade, temos uns aos outros.
— Sim, muitas vezes tendemos a nos prender apenas ao racional. No entanto, no homem corre o sangue de Apolo e Dionísio. Não há um porquê de repreender os nossos anseios — replica Mikoto acariciando o meu rosto.
De fato, este meu desejo de ficar com elas foi trancafiado por tanto tempo… por fantasmas que me assombravam dia e noite, mas enfim deixei todos estas assombrações para trás. Abandonar e rejeitar o restante do mundo para me agarrar a elas, sem dúvidas, é e foi a minha atitude mais lúcida.
Por fim, puxamos os cobertores até a cabeça. Estando totalmente agasalhados nos entrelaçamos mais uma vez num suntuoso beijo.
A valsa de nossas línguas sempre parece seguir os mais refinados ritmos da composição de uma esplêndida sinfonia do período barroco. Em uma mistura e alternância da sensualidade e serenidade de Mikoto com a agressividade de Ailiss, as duas garotas me guiam mais uma vez por esta experiência deslumbrante.
Meu desejo ao tocá-las, sentindo suas respirações, seus cheiros e o gosto de suas línguas sobre a minha, aumenta a cada pulso do meu coração. A emoção de felicidade é tanta que eu chego a pensar que posso morrer em paz neste mundo de imortalidade.
Deslizo minhas mãos pela formosura de suas proporções, até escoar seus longos cabelos entre os meus dedos. Em contrapartida, elas agarram-se em meus ombros e se puxam contra meu corpo para intensificar mais o nosso contato.
Banhado de tanto afeto, as nossas infinitas memórias reverberam em minha mente.
Desde a nossa primeira interação, com aquela frieza e indiferença até as trágicas repetições nas quais presenciei a morte de cada uma das duas. Todas as nossas ações por esses intermináveis mundos, tudo precisou acontecer para que eu as tenha neste precioso instante.
Portanto, caso em meu leito de morte, um terceiro demônio faça-me a proposta de reviver todos os momentos da minha vida eternamente, eu constataria que na verdade se trata de um anjo.
Uma chama que incendeia meu corpo por dentro cresce um pouco mais, e segue queimando tudo o que há de angustiante em minha alma. Quando nós três entramos em sintonia, sinto que tudo pode sumir. A única coisa que me importa é estar com elas, com apenas elas.
Elas cessam o nosso longo beijo e então Mikoto pergunta em ironia.
— O que aconteceu, Johann? Tu pareces estar mais sentimental do que o de costume.
— Não é nada. Só estava pensando, no quão feliz eu sou por estar com vocês.
— Hmpf. Lá vem ele com esse papo meloso — comenta Ailiss com desdém.
— Ora, tu não achas engraçado ver alguém que sempre pareceu estar morto dizendo coisas fofas assim? — replica Mikoto em risadas — É um contraste tão grande que torna tudo tão cômico.
— De certa forma, você tem razão — concorda e ri de volta.
Olha quem está falando… as duas garotas mais sérias que já vi, agora caem em risadas recorrentes.
Bem, já sobre mim, não posso dizer muita coisa, pois até então não havia me encontrado com pessoas como elas. Com que pudesse me abrir, entender como me sinto e compreender o lado podre e asqueroso do meu âmago.
Sempre tive dificuldade de expressar meus sentimentos em palavras, porém isto não se faz mais necessário quando se passa uma eternidade juntos. As palavras perdem a importância quando as nossas presenças transmitem por si só como nos sentimos.
— E então, tu te recuperaste do teu momento de drama? Já estás aquecido? — Mikoto desliza a mão sobre mim.
— Em qual sentido? — pergunto com sarcasmo.
— Para fazer este tipo de piada, aparentemente ele está sim — conclui Ailiss.
— Neste caso, chega de conversa e me ajuda a despir este folgado — Mikoto olha para Ailiss e fala enquanto desabotoa minha camisa.
…
As duas aproximam seus rostos do meu e beijam minhas bochechas. Em seguida se deitam sobre mim, uma com a cabeça encostada em cada ombro.
— Acho que vou sentir um pouco de falta do Johann que ficava todo envergonhado. Era bastante engraçado de ver as tuas reações — caçoa.
— Eu não posso dizer o mesmo sobre vocês terem mudado, ainda continuam me maltratando sistematicamente.
— Tem certeza? Acho que faz bastante tempo que não leva um soco. Não quer sentir um pouco dessa nostalgia? — comenta Ailiss.
— Não, obrigado.
Escutamos a nevasca ficar mais forte e então elas se encolhem mais ainda sobre mim. E com nossos corpos colados e aquecendo um ao outro caímos no sono.
Penso que somos um motor perpétuo. A cada milênio que passamos juntos, apenas queremos que este sonho dure mais. O nosso desejo de escapar foi completamente substituído pelo um anseio pela eternidade.
Neste idealismo, seguiremos assim infinitamente. Abraçados de modo tão forte que soa até como se tivéssemos cristalizados no tempo. Um cristal formado por três almas que se amam tão intensamente que nem mesmo o tempo é capaz de degradá-lo.
03h33
Milhões, bilhões, trilhões… números que mal conseguimos nomear de repetições se passaram. Nossa tranquila e amorosa vida ainda parece fluir normalmente, no entanto, um mau presságio me toma o peito.
Após mais uma das nossas noites de amor, acordo-me de madrugada com uma preocupação que nem ao menos sei dizer de onde vem.
Obviamente é irracional, entretanto é algo que não posso deixar de lado. Todos que poderiam fazer algum mal a nós já se foram, então o que há para temer?
O medo está intimamente associado ao inesperado, contudo a nossa situação está a mais normalizada possível nesta utopia de repetições. Apesar dos pesares, este provavelmente deve ser o lugar mais seguro do mundo, um lugar onde não podemos ser mortos ou feridos por ninguém.
Mesmo assim… é como se eu pudesse pressentir uma trinca se formando em nossas almas cristalizadas. Mas o que poderia ser uma ameaça? A princípio, a maior ameaça seria de teor psicológico, a insanidade. Já fui uma vítima de cair na mais completa loucura, entretanto isto já faz muito tempo e o nosso atual estado de espírito superou qualquer limitação humana neste sentido.
Então o que seria? O tempo propriamente dito? Foi possível o tempo degradar as nossas almas? Bem, nós passamos muito mais tempo presos aqui dentro do que a própria existência estimada do universo físico, o que comparado ao tempo de vida humano é praticamente infinito, um número imensurável de repetições. Mesmo depois de tanto tempo, nada aconteceu…
Mas ainda assim… seria possível que o decaimento finalmente tenha chegado para nós? Por sermos jogadores, o decaimento de nossas almas devido à exposição à magia negra deveria ser regenerado a cada iteração, como sempre foi. Fomos os únicos a não sermos afetados justamente por sermos necessários para manter esta realidade funcionando, ao contrário de nossos colegas que eram elementos contingentes.
Mas e se esta própria realidade estiver entrando em colapso após tantas iterações? Se ela teve um começo, é sensato pensar que deva ter um fim.
Isto não seria o mesmo que dizer que a Morte possui uma expectativa de vida limitada? A conjuração realizada por Mikoto pode estar prestes a se desfazer? Tentar argumentar racionalmente contra isso já não faz muito sentido, a nossa percepção da realidade sempre foi distorcida. E não será agora a última vez que serei surpreendido por uma mecânica sobrenatural desconhecida.
Mas ao que parece, nem mesmo o sobrenatural pode escapar das garras do tempo, nem mesmo quando este tempo é produto do próprio. Em outras palavras, o tempo está acima de qualquer paradoxo, ele não respeita nem mesmo o seu criador, degradando e varrendo tudo ao nada.
Neste caso, o que acontecerá conosco quando este limite for finalmente atingido? O jogo se encerrará e estaremos livres ou acabaremos mortos em uma última iteração?
Sendo sincero, a Morte já não é mais um castigo, pois tive a chance de viver um período de felicidade imenso. Tive a oportunidade de compartilhar todo este tempo ao lado delas. Portanto, se eu simplesmente sumir, não tenho nada do que reclamar.
Sento-me, olho para as duas ao mesmo tempo em que passo a mão em seus longos cabelos.
São tantas perguntas que nem sei por onde começar a responder. Não sei o que é este pressentimento terrível, mas juro que irei protegê-las a qualquer custo. Nós passamos uma eternidade juntos e não será agora que cederemos a uma ameaça.
Posso não ter nada de especial, porém não há nada que não possa enfrentar enquanto eu estiver com vocês duas ao meu lado.
04h44
Mikoto acorda-se com tosse e consequentemente Ailiss e eu também despertamos para ver do que se trata. Levanto-me para ligar a luz enquanto Ailiss a segura para apoiá-la.
— Mikoto, você está bem? O que está acontecendo? — Ela pergunta.
— Sim, acho que apenas me afoguei. Vós não precisais preocupar-vos com isto — coloca a mão sobre sua boca e volta a tossir.
Não nos preocupar? Isto definitivamente não é normal, e para quem já estava acostumado com a eterna normalidade, uma incongruência na rotina torna-se nítida. Nunca algo assim havia ocorrido.
É um pouco difícil para eu admitir, mas estou desconfiado de Mikoto.
— Quer que eu busque um copo de água? — pergunto.
Ela balança sua cabeça em negação.
Ailiss e eu nos entreolhamos com preocupação. Mas não há nada de errado com ela. Talvez seja apenas paranoia da minha cabeça. Tosse é algo comum em humanos, e mesmo presos aqui não deixamos nossos corpos físicos para trás.
Este engano dura pouco tempo… logo em seguida Mikoto afasta a sua mão da boca. Quando a olho novamente, percebo uma grande rachadura no cristal que construímos. Uma trinca que cresce progressivamente, danificando toda a estrutura cristalina que nos protegia.
Depois de muito tempo, vejo-nos desprotegidos, mais uma vez pairando sobre a incerteza. A incerteza, esta que rege o dia a dia de todos os seres humanos, mas que havia cessado a sua vigilância sobre nós.
A cor vermelha na palma das suas mãos parece ter por um instante sugado todas as cores do mundo. Assim como antes de tê-las conhecido, tudo se torna cinza. E o tempo que fluía indefinidamente começa a ficar mais lento e mais lento. A cada movimento feito pelos ponteiros do relógio o som ressoa mais alto dentro da minha cabeça, até que se tornam estáticos, dando sequência a um absoluto silêncio.
Agora vejo que aquele terrível presságio se tornou real. Mikoto acaba de apresentar um dos sintomas do decaimento que nossos colegas tiveram uma eternidade atrás.