Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 118
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- Capítulo 118 - E o fim é o começo. (2/2)
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Este lugar…?
No instante que eu cruzo o portão da escola para acolher Mikoto e Ailiss que estavam caídas, sou mais uma vez transportado para este local.
Não há dúvidas, estou no mesmo lugar que vi em meus sonhos. E logo à minha frente estão as duas entidades causadoras deste inferno pelo qual atravessei. Não achei que teria a oportunidade de encará-los mais uma vez.
Provavelmente em qualquer outra situação eu tentaria descarregar a minha raiva por meio de força bruta. Da última vez que os encontrei isso se provou ineficaz, e de qualquer forma agora sei da verdade. A verdade ao seu entorno que sempre esteve ofuscada por esta realidade sobrenatural.
Estar ciente disto apaga qualquer chama de raiva que poderia incendiar o meu interior.
A silhueta das duas crianças se aproxima gradualmente de mim, e então o nevoeiro que os escondia revela suas reais aparências. Elas não são nenhuma entidade abstrata, não são demônios como se auto-intitulavam, mas somente crianças humanas que perderam suas almas da forma mais injusta.
A menina denota-se por um rosto angelical, fortes olhos azuis puxados e cabelos louros escuros da mesma cor dos meus. Já o menino, apresenta cabelos louros claros e olhos de caçador com a rara coloração vermelha.
— Parabéns por ter vencido o jogo que propomos! Como é o único jogador ainda presente, a brincadeira se encerra por aqui. Você demorou bastante para perceber, mas sabíamos que conseguiria vencê-la. Era apenas uma questão de tempo — diz a menina sorrindo.
Por que esta mesma empolgação quando anunciaram o jogo pelos alto-falantes? Não há sentido em forçar este falso sorriso. Não precisamos de mais nenhum teatro, eu já sei quem vocês dois são e vocês estão cientes disso.
— Eu já havia perdido totalmente minhas esperanças, pensei que nós três acabaríamos agonizando em tortura eterna. Mas aparentemente a minha descoberta era um fator determinístico. Não teria como ser diferente, não é?
— O tempo é mais uma dimensão como qualquer outra, passado, presente e futuro coexistem. Você está constantemente viajando ao futuro até um ponto pré-estabelecido, assim tudo iria convergir para este cenário — completa o menino.
— Não sei até que ponto a nossa ausência de livre arbítrio nos inocenta ou culpa de algo. Mesmo assim, de qualquer perspectiva que eu olhe, penso no quão horrível eu sou. Mas apenas gostaria de confirmar uma coisa: vocês nos odeiam, não é? — abaixo a cabeça e indago.
— Acredito que o ódio é algo recíproco entre nós.
Não posso dizer que este tipo de resposta não me atinge, mesmo não tendo muita afeição por suas personalidades, mesmo por não termos tido qualquer oportunidade para criar uma proximidade, é impossível eximir-me de uma culpa imensurável que cai sobre minhas costas. Uma culpa maior do que qualquer outra, os inúmeros assassinatos que precisei cometer são totalmente ofuscados perante o maior de todos os meus crimes: um pecado impossível de ser apagado.
— Sempre quis saber o motivo, qual era a razão de Ailiss, Mikoto e eu precisarmos sofrer tanto assim. Não acho que eu tenha sido um exemplo de caráter, mas nada que fiz em vida justificaria tanto castigo sendo direcionado sobre mim e as minhas duas amadas. Não podia compreender o que levou a vocês, supostos demônios de Laplace, fazerem isto tudo conosco — pauso e os encaro — Mas agora já consigo entender plenamente o seu lado. Vejo que a Ailiss não era a única atrás de vingança.
— Exatamente — consentem com a cabeça — O nosso maior desejo era retribuir o sofrimento eterno que nos foi imputado por seus caprichos egocêntricos. Mas e você? Não teve um impulso de vingança contra nós ao concluir seu plano? Não foi este sentimento que serviu de estopim para motivá-lo a seguir em frente? Talvez um ódio tenha catalisado o outro e vice-versa.
De fato, há certa estranheza quando se analisa desta forma. Nossas ações catalisaram umas às outras, mas não colocaria necessariamente a palavra vingança ou ódio pela minha parte.
— Se eu disser que não sinto raiva do que vocês nos fizeram passar, meramente por descobrir as suas identidades, estaria mentindo. Mas a vocês naquele estado? Nem um pouco. Não os encaro com a mesma personalidade, pois sequer possuíam consciência… ainda os via como meros inocentes.
— Que curioso você dizer algo assim depois de justamente ter feito o contrário. Onde espera chegar dizendo algo assim? Acha que receberá algum perdão? Discursos idealizados não apagarão o que você fez, sabe muito bem disso.
— Estou ciente, certamente não apagarão, mas o que estou dizendo é a verdade. Em qualquer outra circunstância faria de tudo para salvá-los, o que incluiria desfazer-se da minha própria vida. No entanto, o que estava em jogo era algo mais precioso do que qualquer outra coisa, mais importante do que a minha vida, do que o universo como um todo e até do que vocês. Nada me importa mais do que as vidas daquelas duas, este é um fato do qual jamais poderei fugir. Infelizmente para salvá-las precisei derramar sangue de inocentes, vocês não foram os primeiros e, se necessário for, não serão os últimos.
— Mesmo não nos odiando, você foi capaz disso? — riem — Isso só nos deixa ainda mais curiosos do quão longe você poderia ir em nome do amor. Será que não percebeu o estado em que sua mente se encontra?
Sim. A nossa ligação não é normal, e não penso nisto num tom de superioridade, mas de uma vontade obsessiva, o amor mais doentio que já existiu. Um sentimento que só pode ter sido gerado em um mundo de repetições, em uma eternidade.
— Vocês colaboraram muito para eu apelar para este desfecho. Deixaram uma dica implícita no anúncio realizado pelo alto-falante e nos pressionaram com estas repetições infernais até eu me ver forçado a tomar tal escolha.
— Repetições infernais? Bem, era exatamente isso, este ambiente é o seu purgatório por assim dizer. Queríamos que vocês três sofressem na pele o que é viver em um inferno, tal como vivemos no estômago da Morte. Queríamos que aprendessem o que é sofrer até suas mentes e corpos se degenerarem ao seu estado mais básico.
Exatamente como eu deduzi. No fim das contas, tudo não passava de uma punição pelo que no futuro iríamos fazer. Neste momento, não consigo deixar de me lamentar.
Mesmo que não existisse alternativa, ainda não deixo de ser um terrível pai. Nem sempre para um problema existe solução, pois problemas e soluções são abstrações humanas, e este é um caso explícito disso.
— E vocês conseguiram… aqueles três cenários cíclicos continuavam a me ferir indefinidamente, a minha insanidade se acumulou tanto que quando me vi já estava matando meus amigos como se não fossem nada. E ao manterem minhas memórias a tortura se intensificou ainda mais, caí em loucura por mais de um milênio. Tudo isso no decorrer de tantas iterações fortaleceu a minha insensibilidade para conseguir tomar esta tenebrosa e horripilante decisão de sacrificá-los.
— Ficamos felizes em ouvir isso… isso significa que o nosso julgamento não foi em vão. Toda esta trilha de sangue que vocês três vivenciaram era necessária para que este momento se concretizasse. Para que tivessem a coragem e audácia necessária.
— E o tempo limite seria o momento em que eu deveria fechar o ciclo da causalidade, correto?
— Exato. Vocês estarem presos nestas repetições foi produto da nossa vingança por terem nos entregue à Morte para saírem das repetições. Se ficassem presos indefinidamente no looping, este ponto jamais seria alcançado, então este ciclo obrigatoriamente precisava ser quebrado uma hora ou outra.
— Algo ainda não está claro para mim. Como ocorreu da primeira vez? Vocês precisaram ter sido sacrificados uma primeira vez para realizarem sua primeira vingança. Então o que nos motivou a sacrificá-los? Há quanto tempo este ciclo externo vem se repetindo?
— Não houve a primeira vez. Esta causalidade não está sujeita a lógica da qual você está acostumado.
— Não houve? Posso afirmar então que não houve um responsável por começar tudo isto?
— Pode-se exemplificar através do paradoxo de Bootstrap. Se você voltar no tempo e entregar a Pachelbel a sua famosa composição Canon, então, após alguns séculos, ela novamente chegará a você que irá voltar no tempo e entregá-la novamente ao suposto autor. E isto se sucederia ciclicamente — comutam a fala —Então vem a pergunta, quem a teria criado? Nem ele por ter somente as recebido e muito menos você que apenas a mandou para o passado. Não há um real autor, a composição simplesmente existe neste período de tempo. O mesmo se aplica a nossa existência, no fim nós sempre existimos devido ao nosso desejo de vingança e ao seu escape do looping temporal.
Conceitualmente agora consegui compreender, mas isto não deixa de ser injusto. Na prática, eu saí de um looping temporal para entrar em outro ainda maior.
Em última análise não há nenhum livre arbítrio neste mundo enquanto estivermos condicionados pelos nossos desejos. Da mesma forma que eu não escolhi sacrificá-los, eles também não escolheram se vingarem de nós, estávamos todos destinados a isso, estávamos destinados a desejar e ansiar por isso.
Assim, este ciclo de causalidade infinito se sucederá por um eterno retorno.
— E o que acontecerá com vocês a partir de agora?
— A Morte nos cedeu consciência meramente no período em que o jogo estava ativo, bem como o controle temporal aqui dentro. Assim que a conjuração se encerrar voltaremos para dentro de seu estômago, carregando conosco todas as nossas emoções de vingança saciadas.
— Bem, apesar de todo o atrito que tivemos até aqui, foi bom tê-los conhecido e ter tido esta conversa. Acredito que eu precisava destes esclarecimentos.
— Johann, neste mundo de repetições você demonstrou que a sua causa não é a causa do divino, da humanidade, do humanitarismo, da justiça, da igualdade, da liberdade, do bem comum e tão pouco a causa da bondade. A sua causa então seria a causa do amor?
Esboço um leve sorriso e então respondo.
— O meu amor por elas, sem sombra de dúvidas, é o meu bem mais precioso. Mas o sujeito precede o verbo. Para que eu possa amá-las incondicionalmente, antes eu eu preciso existir. Portanto, no fim das contas esta não deixa de ser a causa de mim mesmo.
Eles retribuem um sorriso com minha explicação e então seus corpos começam a ficar translúcidos.
Provavelmente o nosso tempo aqui está acabando.
— Poderia ao menos nos conceder um último desejo? Queremos que peça algo a elas.
— E o que seria?
— Nomes. Sempre quisemos ter algum.
Assinto com a cabeça, e então enquanto eles desaparecem, soltam suas últimas palavras.
— E a propósito, o que você acha que o nobre cavaleiro deveria fazer?