Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 72
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- Capítulo 72 - Interlúdio
19h47
A garota de longos cabelos louros caminha sorrateiramente pelos escuros corredores do bloco principal. Como a maioria do corpo discente instalou-se nos primeiros andares do edifício com o intuito de facilitar a própria fuga em um possível ataque, o andar do conselho estudantil ficou praticamente desabitado.
Enquanto isso, a presidente reside em sua sala com um olhar perdido para a quieta noite que sonda o ambiente escolar.
— Terminei a ronda pelo bloco e nem sinal dele. Provavelmente tomou algum outro bloco como esconderijo — diz Ailiss entrando na sala do conselho.
— Entendo. Então podes descansar por hora. Passei ordens para que alguns membros mantenham a vigilância pelas entradas do bloco durante a madrugada — vira-se para ela e responde.
— Não pretende reconsiderar a minha ideia de atacá-lo durante a noite? Acredito que eu tenha mais experiência que ele em ambientes de pouca visibilidade e tenho as minhas suspeitas de onde pode estar escondido.
— É uma abordagem válida, mas… — pensativa, pausa a fala — Ainda temos o problema da tal premonição que ele alega ter, se isto for real, e tudo indica que seja, ele já deve estar preparado para qualquer ataque surpresa que tentemos — suspira — Francamente, enfrentar um inimigo que conhece todos os seus passos futuros não é uma tarefa fácil. Se tudo ele sabe de antemão, não consigo conceber a existência de uma solução válida.
— Da mesma forma ocorreria num ataque amanhã. Não temos outra escolha a não ser abatê-lo, esteja ele preparado ou não. E quanto antes fizermos isto, melhor — cruza os braços.
— Concordo contigo, todavia ainda precisamos encontrar alguém que se responsabilize por isso. No final, mesmo que o capturemos com vida, alguém precisará sujar as mãos de sangue. E até selecionarmos um candidato para este serviço, vamos pensar numa forma de contornar as habilidades dele ou no mínimo amenizá-las de algum jeito — descansa o rosto numa das mãos.
— Pois bem, faremos do seu modo. Mas se formos prorrogar o ataque, eu tenho uma condição: treinamento — senta-se numa cadeira e coloca a sua arma sobre a mesa.
— Discorras melhor sobre, por favor. Pretendes elaborar alguma investida ensaiada com os outros membros do conselho estudantil? O Johann não estará ciente disso via clarividência?
— Quem sabe eu possa treiná-los de alguma forma, em especial quem for de fato abatê-lo, mas me referia mais especificamente a você. Conhece alguma arte de autodefesa?
— Cheguei a estudar karatê durante o ensino fundamental, meu desempenho segundo os professores era razoavelmente bom. No entanto, após ingressar no ensino médio, candidatei-me à presidência do conselho estudantil e então não tive mais tempo para praticar. Portanto, não colocaria fé em minhas habilidades, as quais certamente estão enferrujadas.
— Amanhã de manhã pretendia ensiná-la o básico de luta, bem como artilharia. Porém, assim fica mais fácil, só preciso afiar novamente a sua lâmina. Acho que seria perigoso você não ter nenhuma ferramenta para se proteger quando eu não estiver próxima.
— Ora, quem poderia imaginar que logo tu, estarias preocupada com minha segurança. Estou bastante surpresa, o que aconteceu contigo? — fala debochada.
— E não deveria estar preocupada? Somos aliadas, não? — replica inexpressiva.
— Tu tens razão — sorri —Darei o melhor de mim para não te decepcionar durante o treino — Mikoto prende seu olhar para a arma que Ailiss soltou sobre a mesa e seu sorriso se esvai.
Ailiss rapidamente percebe a distração de sua companheira e toca no assunto.
— Acho que você nunca conseguirá perdoar-me por isto, eu entendo. Não é algo que simplesmente pudéssemos esquecer.
Mikoto volta-se para ela, permanece alguns segundos em silêncio e então responde.
— Não, isso já é passado. Acredito que esta questão esteja bem resolvida entre nós. Da mesma forma que tu conheceste o meu lado da história pela nossa conversa de ontem à noite, eu pude compreender o teu. Ao passar por tudo que tu viveste, se eu estivesse na tua pele e experimentasse o assassinato do meu pai da forma que descreveste, eu sinto que provavelmente teria tomado decisões similares. E se tu tivesses no meu lugar, creio que também entenderias o meu lado.
— Sim, penso da mesma forma. Porém, não me refiro ao entendimento, isto de fato está bem esclarecido, e sim a como você se sente. Não penso que apenas esconder o nosso conflito como algo passado, como viemos fazendo desde ontem, seja o ideal. É uma mancha que não pode ser apagada e enterrada abaixo de palavras bonitas.
— Novamente tenho que admitir, tu estás certa, não é algo que conseguirei esquecer-me de uma hora para outra — suspira — Feridas não somem simplesmente por compreender o que está por trás delas, mas perduram-se como cicatrizes. Se quisermos ser amigas realmente, precisamos lidar com este ponto soturno em nossa trajetória. No entanto, não vejo o porquê de não conseguirmos lidar com isso.
— Eu nunca fiz algo do tipo antes, então não sei como expressar-me adequadamente. Mas queria pedi-la que me perdoasse pelas minhas ações — desvia o olhar.
Mikoto arregala os olhos e a responde num tom sereno.
— De fato são palavras que não esperava vindas de ti. Contudo, acho injusto que veja a situação unilateralmente desta forma, não é como se eu fosse uma completa inocente no final das contas. Acho que eu devo mais desculpas do que eu posso contar, e a ti também pelas palavras ofensivas que proferi há dois dias. Sinto muito.
— Tratando-se de ofensas, com toda certeza estamos no mesmo barco. Desculpe-me também pelo que falei. Deveria ter percebido antes quem era o meu real inimigo.
— Nós duas deixamos isso passar, ainda não consigo compreender bem o modo que fui sugestionada. O que exatamente fez eu acreditar em Johann? Mesmo durante a nossa briga, ainda sentia uma predisposição em acreditar nas palavras dele. É um sentimento tão estranho.
— Sentia que o conhecia, né? Tive a mesma impressão. Acho que isto pode ser colocado na conta das habilidades que ele diz possuir. Ou talvez seja a verdadeira habilidade dele.
— Depois de tantas mentiras, não há porque tomarmos o discurso dele de hoje como verdade. Dependendo da veracidade das suas afirmações, é possível que haja uma maneira de burlar a “clarividência” que ele diz ter. Todavia, mesmo assumindo que tenhamos sido manipuladas por tal habilidade, depois de entrar em contato com ele algo ficou muito claro para mim: o quanto eu via-me sozinha.
— Sobre isso, acho que tínhamos mais um ponto em comum. Talvez parte de nós quisesse acreditar nele.
— Ainda assim, não parece que esta estranha sensação se restringe a ele. Após o meu rancor por ti se dissipar, comecei a ver-te de uma outra forma, uma amiga de longa data talvez?
— Com Johann eu tive a sensação de que poderíamos ter nos conhecido na Alemanha, mas com você não sei como descrever. É a primeira vez que venho ao Japão, logo não poderíamos ter nos encontrado previamente. Restando somente este estranho déjà vu.
— Realmente…
A conversa das duas sucede-se por um breve silêncio, no qual ambas com o olhar perdido dispersam-se em seus próprios pensamentos. Muitas preocupações não deixam de martelar as suas mentes.
Mikoto é a primeira a dar-se conta de si e decide retomar a conversa com Ailiss numa tentativa de tranquilizá-la um pouco, e claramente a si mesma também.
— Ei, Ailiss. Mudando um pouco de assunto, percebi que tu não comeste nada desde o almoço, e sobraram alguns onigiris. Queres comer alguns?
Ailiss consente com a cabeça e então Mikoto pega dois obentos do balcão.
— Enquanto tu comes, irei esquentar um pouco de chá como acompanhamento — levanta-se, caminha até uma prateleira e pega o bule e duas xícaras — A propósito, pretendes dormir por aqui nesta noite?
— Por mim tanto faz. Posso dormir aqui ou numa outra sala qualquer do bloco e se achar melhor, eu também consigo passar a madrugada de guarda. Sendo sincera, até prefiro ficar alerta para evitar um ataque surpresa dele — responde enquanto come.
— Já não te disse? Tu és a nossa melhor arma contra Johann, deves estar bem descansada para nosso confronto amanhã — replica ao mesmo tempo em que serve as duas xícaras de chá — E como nesta noite fará muito frio, eu pensei que seria melhor que dormisses por aqui. Podemos até dividir um cobertor para nos aquecer — fala em risadas.
— Não está muito caridosa com alguém que tentou te matar? — pega a xícara, bebe um gole do chá e após uma pausa completa — Aliás, por que me parou naquela hora? Eu morrendo ou não, você teria vencido o jogo e estaria livre.
— Logicamente porque passei a me importar com a tua vida. Agora entendo melhor o que te levaste a escolher este rumo, e não consigo não me identificar contigo — sorri e segura a mão esquerda de Ailiss — Pela primeira vez na vida, consigo encarar alguém como uma potencial amiga capaz de entender como eu me sinto e não apenas observar o que tento transparecer. E de qualquer forma, tu também hesitaste quando fui ameaçada, ou seja, posso rebater o teu questionamento usando da mesma pergunta.
— Admito… você conseguiu me deixar sem respostas — abaixa o seu olhar — Posso dizer que também passei a simpatizar com você. Se você não vê problemas em me desculpar e deixar nossas desavenças de lado… acredito que de fato possamos nos tornar amigas. Mas é algo complicado para mim também, pois nunca tive uma antes.
— Entendo. Mas isto está longe de ser um problema, pois como o nosso caso é semelhante, acredito que possamos aprender o que é uma amizade em conjunto — sorri — teremos bastante tempo para isso depois de derrotar o Johann.
— Não é uma má ideia — retribui o sorriso.
Após terminarem de comer e beber o chá, ambas ajeitam-se para dormir. Ailiss e Mikoto deitam-se no chão da sala do conselho sobre um saco de dormir maior e revestem-se com um cobertor de lã.
— Vejo que você está sempre bem equipada, de onde tirou este saco de dormir? — comenta Ailiss.
— Certa vez precisei ficar até tarde trabalhando no conselho, então sempre guardo isto como precaução para noites muito frias. Meus colegas sempre falavam que eu sou viciada em trabalho, no entanto, esta era a única distração que eu tinha.
— Nossos ofícios e supostas ambições cumprem bem o papel de ocupar a nossa mente. Ocupá-la para não pensarmos a respeito do sentido das próprias. Acredito que é assim que eu lidava com minha vingança.
A temperatura do ambiente cai ainda mais e o tempo fica mais severo. E em meio ao bater da janela ocasionado pelo vento da nevasca, as duas prosseguem conversando antes de dormir.
— E pensar que tudo começou aqui neste mesmo piso. Se pudéssemos voltar atrás, eu jamais teria conjurado este jogo e não teríamos sido enganadas por ele — comenta Mikoto.
— De fato, seria muito mais fácil descartá-lo sem estarmos sujeitas às regras do jogo. Mas você estava apenas tentando sobreviver ao meu ataque. Eu como uma assassina profissional deveria ter percebido antes que a minha chegada estava sendo antecipada por ele.
— Tu também não terias como saber, a princípio uma técnica de clarividência como a que ele alega ter deveria ser impossível. Por outro lado, devido a esta desgraça que aconteceu, pude conhecer-te — vira-se de lado e se agarra no braço esquerdo de Ailiss com uma de suas mãos e acaricia o rosto dela com a outra.
— O que está tentando fazer, Mikoto? Seduzir-me? — ri — Suponho que amizades não tratem disso.
— Também suponho que não. Mas fiques tranquila quanto a isso, realmente planeja usar a sedução como arma, no entanto não é o caso agora. Acreditava que seria uma ferramenta eficiente contra ele, todavia não acredito que seja eficaz contra ti de qualquer forma — a solta e volta a fitar o teto.
— E por que você acha isso? Concordo que a primeira vista ele parecia ser um típico candidato a lacaio e que o teria em suas mãos. Mas o que te leva a crer que eu estaria imune à sua persuasão?
— Não sei dizer ao certo. É uma arma que deve ser usada com cautela, justamente por possuir dois gumes. Sinto que se tentasse utilizá-la contra ti, provavelmente seria eu quem acabaria me apaixonando no final das contas. Quem sabe eu tenha alguma variação da síndrome de Estocolmo para me encantar pela pessoa que tentou me matar. Ademais, só deixei-me levar pela curiosidade, desculpe-me perturbá-la com meus experimentos — replica com um sorriso maroto.
— Então está ciente disso? Se quiser prosseguir não tenho nenhuma objeção. Pois, assim como você, não acredito que consiga obter algum resultado.
— Ora, ora, isto tem um tom de desafio? — senta-se de lado e a encara por cima.
— Entenda como preferir.
Mikoto vira-se, em seguida apoia-se com os braços no chão e fica com o rosto levemente sobre o de Ailiss. Os fios escuros de seu cabelo caem até o rosto da outra onde se misturam suavemente com a sua cor dourada.
Então ela abaixa-se fazendo com que o azul e o vermelho de suas íris revelem suas próprias emoções. E como um canto de uma sereia, seus respectivos olhares de caráter hipnótico as fazem sofrer de seu próprio veneno.
O que aconteceria se uma lança imparável entrasse em colisão com um escudo imutável? O mesmo paradoxo a princípio se aplica às duas garotas de charme sobrenatural.
Aos poucos Mikoto desce, a ponto de uma sentir a respiração da outra. E por fim, banhadas em anseios e desejos, ela sela o contato através dos lábios.
Com toda a sua habilidade sedutora, ela beija vagorosamente Ailiss. As duas fecham os olhos para aproveitar ao máximo o momento. Com a respiração e os batimentos cardíacos sincronizados, conseguem transmitir plenamente como se sentem.
Arrependimento.
Afeto.
Admiração.
Orgulhosas como são, emoções que dificilmente conseguiriam colocar em palavras foram expressas por meio deste vínculo. Duas auras cobertas de tanta grandiosidade, que até então pareciam entrar em colapso caso se encontrassem, agora dançam em harmonia numa ligação de gelo e fogo.
Acima de tudo, uma constante sensação de que este ato sempre fez parte de suas vidas manifesta-se em segundo plano, dando-lhes a impressão de que já fazem do mesmo há uma eternidade.
Lentamente Mikoto cessa o beijo e se afasta de Ailiss. No entanto, a segunda não permite que isto se encerre tão rapidamente e levanta-se juntamente a ela.
Ailiss contorna Mikoto com seus braços, e sentadas uma de frente a outras se beijam mais e mais intensamente. O espírito selvagem dela não permitiria que a valsa de suas línguas se encerrasse tão bruscamente.
As duas apesar de dotadas de tanta beleza e força, apenas num momento como este, diante de alguém numa posição semelhante, podem deixar transparecer a sua carência afetiva.
A camada de rocha estóica que reveste seus corações pode finalmente dar espaço para o calor externo fluir dentro de si. Elas não estão mais a sós e agora sabem disso. Há alguém para trilhar o caminho da vida neste vasto mundo ao seu lado, alguém que compreende completamente suas dores e auto exigências.
Ailiss e Mikoto não estão mais sozinhas, pois após este selo uma tem a outra como fonte de apoio e esperança.
Mikoto aproveita para acariciar o rosto de Ailiss, enquanto é apertada em seus braços constantemente.
Simbolizando esta estável união, as longuíssimas mechas das duas entrelaçam-se pelo caminho demarcado pela sensual silhueta e de seus corpos até o chão.
Após alguns minutos, finalmente ambas permitem se afastar e recobrar o ar de uma experiência tão intensa.
Com a respiração pesada, persistem entreolhando-se sem desviar as suas pupilas por um mísero segundo. Mesmo após o beijo cessar, o tom hipnótico prevalece de modo que ambas continuam com a mente perdida uma na outra.
Após alguns segundos, quando a frenesia deixa de ferver em seus sangues, a consciência delas gradativamente retorna. Até que Mikoto decide quebrar o silêncio constrangedor.
— Sabes de uma coisa, Ailiss? Eu retiro tudo o que eu disse sobre amizade. Não há nem uma condição de nos tornarmos amigas, jamais conseguiria encarar-te desta maneira. Dói-me admitir, mas ao que tudo indica, eu perdi miseravelmente a nossa pequena aposta — diz Mikoto deitando-se de lado.
— Então saiba que você não perdeu sozinha — deita-se virada para ela.
— Sendo assim, partindo de outro ponto de vista, nós duas também vencemos, não? — ri — E agora que não podemos mais ser amigas, o que faremos? Responsabilizar-se-á por ter feito eu me apaixonar por ti? — pergunta sorrindo de modo debochado.
— Você realmente é uma presidente metida que fala além da conta. Então, cale a boca — Ailiss ainda deitada a puxa novamente pela gola da camisa.