Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 76
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- Capítulo 76 - Após o seu final ideal, só lhe resta arrependimentos. (2/2)
— Bomba?
— Sim, eu implantei uma bomba robusta na escola antes do jogo se iniciar. Tudo esteve sobre o meu controle desde o princípio.
— Não dais ouvidos a ele. Claramente está desesperado e por isso está blefando, não há uma mísera evidência disso. Não poderias inventar uma mentira mais crível do que esta? — alega Mikoto.
De fato, estou blefando sobre uma bomba. Foi apenas uma forma de desviar a atenção de vocês por alguns segundos. Mas vocês realmente esqueceram-se de cogitar algo. Por que um agente duplo não poderia possuir mais um grau de traição?
De repente Manabu agarra o capitão de Kyudo pelas costas e rapidamente o faz derrubar o revólver no chão.
— Ei, o que você está fazendo?! Não estamos do mesmo lado?! — reclama o rapaz.
No mesmo instante, Ailiss dá-se conta do que está acontecendo e parte para ajudá-lo, entretanto Shou entra na frente da sua trajetória e a atrasa.
— Saia da frente, pedaço de merda! — Ailiss o golpeia e o derruba no chão.
Mesmo com Shou bloqueando caminho, seria uma questão de segundos para ela recuperar a arma. Felizmente este curto período de tempo é mais do que o suficiente para eu agir.
Basta então que eu aponte a metralhadora para o até então atirador, e puxe o gatilho com cuidado.
Juntamente ao estrondo do disparo, o projétil cruza o saguão e certeiramente atinge o rapaz sem ferir Manabu.
Manabu então o solta, e o corpo do atirador que elas conseguiram recrutar cai ensanguentado ao chão sem nenhuma chance de recuperação.
— O erro de vocês foi não conhecer o quanto eles se importavam com a garota aqui. Não é uma mera questão de amizade, não iram querer correr o risco, por menor que seja, de eu matá-la. Não iriam correr o risco de perder a única amiga deles, mesmo que signifique na morte de outrem.
Ailiss e Mikoto ficam estáticas e apenas encaram-me com os olhos arregalados. Elas jamais imaginariam que eu poderia reverter uma situação tão desfavorável desta forma e provavelmente estão apenas sem reação.
— Agora, Ailiss, solte o Shou — aponto para Mikoto — E Manabu, traga-me o revólver.
— Tsc. Tudo bem — encara-me irritada.
Com sua parceira em mira, Ailiss não tem escolha senão soltá-lo e assim o faz.
— Muito bem, estou com as duas em mira, não pensem em se mover.
— Confesso que estou surpresa de teres jogado de maneira tão baixa — comenta Mikoto.
Se você acha isso, estou curioso para saber a sua opinião diante dos meus próximos atos.
— Estou bastante orgulhoso da atuação de vocês, mesmo sabendo de tudo até fiquei desconfiado que estivessem apoiando mesmo as duas. Agora, assim como o combinado, irei libertá-la — falo.
Os dois caminham em minha direção e ao chegar à beirada das escadarias Manabu estende o braço com o revólver. O pego e deste modo agora tenho em mãos as duas armas de Ailiss, e assim não há mais nada que possa ameaçar a minha soberania dentro do jogo. Em tese, eu venci.
— Pronto, fizemos a nossa parte, você já conseguiu o que queria. Agora a liberte — Manabu fala cabisbaixo.
— Claro.
Como o prometido, largo Miyu que cai na direção deles.
— Miyu-chan, você está machucada? Precisa de ajuda para andar? — pergunta Shou enquanto os dois a socorrem soltando as cordas de seus braços.
— Estou bem. Vamos embora daqui, por favor. Já não aguento mais este horror — responde ainda chorosa.
— Sim, você está segura agora, não precisa mais se preocupar — diz Manabu a apoiando.
Então eles a ajudam a se levantar e caminham em direção à saída do saguão.
Ailiss e Mikoto não podem se mover, pois, agora com duas armas, estou com ambas simultaneamente na minha mira, e a última coisa que querem é que eu mate a sua companheira.
Quando os três chegam próximos da saída e consequentemente das duas garotas, Shou para por um instante e com a face acanhada dirige-se à Mikoto.
— Sinto muito, Kaichou. Manabu e eu gostaríamos que isto tivesse sido diferente, mas nós não tínhamos escolha. Precisávamos garantir que a Miyu-chan ficaria em seguran- — Shou tenta explicar-se, mas é interrompido.
Um buraco repentinamente é formado em seu peito.
Ambas espantam-se com o rapaz, que acaba de ser dilacerado por um projétil logo a sua frente, ao cair ao chão.
— Shimizu-kun! — Miyu grita ao ver seu amigo ensanguentado e corre até seu corpo.
Caído, Shou emite grunhidos numa tentativa de protesto, entretanto logo perde toda a sua capacidade de movimento. Seus olhos congelam ainda abertos, indicando assim a sua abrupta partida.
— Ele foi baleado?! O que você fez?! Você prometeu que não mataria mais ninguém se o ajudássemos! — Manabu revolta-se e avança contra mim — Shou tinha razão, você é um desgraçado de merda! Devíamos ter acabado contigo assim que tivéssemos a chance!
— Eu prometi mesmo? Não me lembro disso, acho que vocês entenderam errado. Mas veja, eu cumpri a parte de libertá-la, isto não é o bastante? — aponto o revólver para Manabu e quando ele se aproxima de mim, aplico mais um disparo.
Manabu olha arregalado para o ferimento no seu tórax, volta-se para mim, tenta falar alguma coisa, contudo também despenca ao chão.
— MEU DEUS! — grita Miyu ao ver o corpo dos seus dois amigos caídos no piso do saguão.
Após certificar-se de que Shou havia morrido, ela corre até Manabu e mais uma vez tem a mesma infeliz constatação.
Shou, Manabu, vocês foram realmente úteis para eu criar este cenário. Não acho que eu deva justificativas a vocês ou a Miyu, até porque ninguém neste mundo seria capaz de me compreender. Só posso dizer que isso se fez necessário.
Matar os seus dois melhores amigos, os quais acabaram de por tudo em risco por uma suposta promessa. Isto é cruel o suficiente para vocês? Este é o ponto no qual estou disposto a chegar para prová-las do que sou capaz. Neste instante, há alguém que vocês possam odiar mais do que eu?
— Realmente, uma arma silenciosa é muito melhor. Não suporto o barulho desta metralhadora. Meu único receio ao disparar era esse barulho irritante — deixo a arma cair no chão.
Passo por Miyu que está chorosa e em prantos encarando o corpo de seus amigos tingidos pelo vermelho. O brilho alaranjado das chamas, as quais começaram a invadir o térreo, reflete-se em suas lágrimas que caem no rosto de Manabu.
— Você é um demônio! Mesmo depois de tudo o que eles fizeram, como teve coragem de matá-los?! Como pôde?! Eu te odeio! — levanta o rosto e exclama.
— Ainda não entendeu? Nosso acordo era libertar você, somente isso. Não combinamos nada a respeito do que eu faria depois.
Agora tudo depende de você Miyu, você também é uma peça importantíssima no tabuleiro. Diferente daqueles dois, não há nada planejado, mas espero que não me decepcione.
— Mistkerl, eu não consigo encontrar adjetivos para descrever ações tão repugnantes. Não posso explicar o quão grande é a minha vontade de te arrebentar — Ailiss franze as sobrancelhas e me encara de modo voraz.
Isso. Odeie-me.
— Vocês realmente se importaram com isso? Eram apenas moedas de troca que foram úteis para mim para concluir essa ação. Se importar com os outros faz com que sejam enganadas assim como eles foram. Caso alguma de vocês duas estivesse disposta a sacrificar a outra, poderiam então ter me derrotado e garantido a própria sobrevivência — respondo.
— Achas mesmo que nós desceríamos a este nível? Tu passaste a comportar-te como o ser mais desprezável que tive o desgosto de conhecer, não pensa que irás sair impune dessa — pergunta Mikoto.
Odeie-me mais.
— Diferente de vocês, não vou fazer juízos de valor, apenas digo que perderam uma oportunidade. Ademais, não penso que estejam em posição de exercer qualquer ameaça contra mim. Coloquem-se no seu devido lugar, sou eu que mando aqui, eu estou no controle.
— Aonde tu pretendes chegar com tudo isso? Qual o significado de querer matar a todos de forma tão despretensiosa?
Agora elas provavelmente me odeiam tanto a ponto da rixa inicial entre as duas ser completamente irrelevante. Ao mesmo tempo em que tamanho ódio anularia qualquer afeto advindo das realidades paralelas nas quais fomos aliados.
Basta então contar a minha última mentira.
— Vejamos… como posso resumir? Tudo isto que eu fiz não passa de um ritual. Com a morte dos dois eu atingi exatamente a quantidade correta de sangue derramado. Ainda não tive oportunidade de expor claramente os meus poderes, mas se trata de roubar pactos alheios. Eu herdei tal habilidade assim como você herdou a magia negra correspondente à invocação desta realidade.
— Roubar pactos? Este tipo de poder bizarro realmente existe? — ri em desgosto — Então tu pretendias desde o princípio tomar a habilidade de conjurar o jogo de mim?
— Sim, só necessitava concluir alguns procedimentos. A chegada de Ailiss a caçando por um lado me atrapalhou, por outro lado ajudou. Infelizmente a minha habilidade não é perfeita, há certa probabilidade de falha ao roubar um pacto. Mas felizmente, tendo os três jogadores com afinidade sobrenatural, aumentam consideravelmente as chances de sucesso — caminho em direção a elas.
Nesta altura, não há o porquê de desconfiarem desta história que inventei a elas.
Quanto mais trocamos palavras, sinto que os nossos vínculos vão se desfazendo mais e mais por parte delas. Vejo-nos cada vez mais afastados, de modo que elas não sintam o mínimo de arrependimento em relação ao final do jogo. As minhas ações foram tão marcantes que o peso do nosso relacionamento de infinitos mundos simplesmente se romperá, e assim estarão livres.
— Nem um passo a mais — Ailiss para na frente de Mikoto e se posiciona em guarda — Mikoto, fuja. Posso segurá-lo por algum tempo.
— De modo algum. Tu esqueceste tudo o que eu te falei até agora? Estamos juntas até o fim — volta para o lado dela.
— Já que prefere ser teimosa, fique atenta ao meu sinal — fecha os olhos e sorri.
— Podes ficar tranquila em relação a mim, pois o treinamento que recebi não será à toa — retribui.
Neste sorriso amargurado percebo que definitivamente eu consegui. Ambas estão cientes de que do ponto de vista delas é uma batalha perdida, porém ainda assim pretendem se manter firmes uma ao lado da outra.
Da mesma forma que o ódio a mim destruiu nossas ligações, deu-se espaço para florescimento de um novo vínculo.
Então, por favor, cuidem muito bem uma da outra.
— Muito fofo, porém não há nada que possam fazer contra mim — produzo um sorriso maléfico e aponto o revólver para as duas.
E por fim, a última peça do tabuleiro entra em ação. O jogo finalmente teve fim, alguns pontos destoaram do planejado, mas o cenário que idealizei se concretiza.
De repente, em meio a estrondos, uma chuva de projéteis cruza o meu tórax. Numa questão de segundos meus órgãos vitais ficam completamente devastados.
Olho bruscamente para trás e confirmo o rosto choroso, contudo enraivecido de Miyu.
— Você mereceu! Isto foi pelo que fez ao Manabu-kun, ao Shimizu-kun, a mim e a todos os nossos colegas! Você virou um monstro e eu precisava pará-lo imediatamente! — fala com a metralhadora em mãos.
Exato, Miyu. Você fez o que necessitava ser feito. Assim como Shou e Manabu, você certamente me odeia por tê-la usado, mas muito obrigado por isto.
Deu certo. Consegui concretizar o meu suicídio sem transparecer que se tratava de um, certamente nossos laços foram rompidos. Com isto posso finalmente descansar.
Sinto uma dor imensa em meu corpo devido a todos os projéteis que rasgaram meu tórax. Tombo ao chão, e agonizo internamente em dor.
Tudo teria sido muito mais fácil se eu simplesmente pudesse ter tirado a minha própria vida assim que recobrasse as memórias de outros mundos. Infelizmente a realidade não é tão generosa assim.
Entre meus últimos suspiros, noto que Miyu também cai tossindo sangue. O efeito em seus órgãos internos deve ter sido o mesmo que o meu. Não há como salvá-la, agora ela apenas irá sofrer da mesma penalidade e compartilhar desta imensa dor.
Mas esta dor não deve ser nada comparada às infinitas vezes que minhas amadas morreram… então não posso reclamar de nada. Apenas de saber que ambas sobreviveram e podem seguir suas vidas de forma tranquila, me sinto totalmente reconfortado.
Mesmo vislumbrando este teto em chamas, não posso deixar de sentir frio. Morrer realmente é muito doloroso. Estou me sentindo mais e mais isolado do mundo, me afastando aos poucos. Para ser sincero, estou com um pouco de medo.
Vocês duas passaram por isto, não é mesmo? Eu sinto muito.
Por mais que todo este esforço que eu fiz tenha sido para afastá-las de mim, será que um infinitésimo do amor que nutri por elas foi recíproco? Se por um instante isso tenha sido válido, já fez com que tudo tenha valido a pena.
Está cada vez mais lento, os ferimentos foram tão profundos que não tenho muito tempo, meu cérebro está gradativamente parando de funcionar…
??h??
Onde estou? O que é esta estranha sensação de vazio?
Não se trata do mesmo lugar de antes, o lugar dos meus sonhos. Este ambiente me passa um sentimento diferente, um sentimento de angústia.
Ah, é mesmo… Eu realmente morri.
Este deve ser o último instante de consciência que me resta.
Acredito que todos neste ponto devem refletir sobre o passado e chegar à aceitação, pois negar o que vivemos é irrelevante diante da morte. Porém, também não vejo sentido em aceitar tudo e tentar ver apenas o lado bom das coisas. Pois em última análise não deixa de ser uma grande mentira que nós contamos a nós mesmos em busca de conforto.
Eu não morro sem arrependimentos, provavelmente este tipo de sentimento é o que mais ocupa a minha mente. Não pelas ações em si que tomei, mas por não ter tido outra opção. Até agora não consigo aceitar o rumo que isso tudo tomou. Não deixo de amaldiçoar os céus até meu último suspiro por ter colocado nós três num impasse destes, não deixo de profanar contra os deuses por terem permitido que eu assistisse a morte delas por tantas vezes.
A minha real impotência diante do destino deixa-me submerso num desgosto terrivelmente amargo.
Eu gostaria de ter passado mais tempo com as duas, ter conversado mais com elas e ter encontrado alguma forma de nós três escaparmos vivos. Ah… como eu gostaria.
Ou ao menos estar ciente de como a vida das duas se desenrolou a partir disso, por quanto tempo elas conseguiram permanecer juntas, se tiveram uma vida feliz, se o que fiz teve algum propósito.
Quero muito saber se tudo que eu fiz não foi em vão. E não acho que isto é pedir demais.
De qualquer forma, mais nada importa. Quando minha consciência desaparecer, eu como indivíduo também irei, levantando junto comigo meus desejos e anseios. O quanto uma pessoa se arrepende ou aceita suas decisões em vida só possuem relevância enquanto a própria existir, depois só resta o vazio. Só resta desaparecer independente da sua vontade.
O que eu poderia alegar como conforto é ter tido a oportunidade de mudar o destino das duas, isto foi realmente uma benção concedida a mim. Saber que pude propiciar um destino diferente daquele que vi acontecendo infinitas vezes em minhas memórias é sem dúvidas uma dádiva. Entretanto, não há como ficar satisfeito apenas com isso. Nem de longe isto poderia me confortar, afinal sou um humano. Não vivo somente de ideais, mas também de vontades.
Ironicamente, acho que este seria meu destino caso nunca as encontrasse. De alguma forma ou outra esta seria a ferramenta que me tiraria desta prisão monocromática.
Todavia, o calor de tê-las conhecido protegeu-me do imenso frio do sopro do vazio. Não posso expressar tamanha gratidão, nosso tempo junto foi curto e ao mesmo tempo eterno, e pelo menos no final da minha vida, graças às suas presenças, pude sentir meu peito minimamente preenchido.
Ademais, resta-me apenas desejar pelo futuro delas.
Mikoto, Ailiss, sinto que as coisas tenham acabado desta forma. Se tudo ocorreu como planejei, vocês devem me odiar agora, mas mesmo assim espero que eu tenha possibilitado um futuro minimamente feliz para vocês duas.
Epílogo
…
Fim.