Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 77
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- Capítulo 77 - O passado de ninguém.
Ainda não parou de chover, o tempo está assim por alguns dias. As gotas de água colidem com o vidro causando um barulho relaxante, mas ao mesmo tempo, ver as gotas escorrendo me passa uma estranha impressão de melancolia.
Por que será?
Paro diante da janela e olho para fora com despretensão.
Se eu quero que o tempo abra? Para ser sincero, eu não me importo muito. Não é como se as coisas fossem ser diferentes, estaria eu aqui da mesma forma.
Nos dias ensolarados de verão e durante a neve do inverno, as demais crianças do bairro e da escola costumam correr pela cidade e brincar no parque. Porém, em dias chuvosos como este, provavelmente alguns deles experimentam um pouco da minha rotina. Realmente é uma rotina monótona, contudo, acredito que o tédio me faz uma boa companhia.
Eu simplesmente olho para fora e imagino uma tranquila chuva como esta me impedindo de sair. Não há nada que me priva de experimentar a liberdade, a verdade é que não tenho a menor vontade de me desprender deste tédio.
Desde que me conheço por gente este desinteresse continua impregnado em mim. Nada possui cor. Olho ao redor e só consigo ver pessoas e cenários acinzentados.
A misantropia é um conceito que explana bem a minha relação com o mundo, de fato tenho total aversão à natureza humana, entretanto tenho uma aversão ainda maior por mim mesmo.
Volto meu olhar para a janela e observo as gotas d’água escorrendo pelo vidro. Dentre elas, há uma que parou de escoar, está estática. Estacionada no mesmíssimo lugar, recusando-se seguir o ciclo d’água. Estaria ela também desmotivada?
Em seguida mais duas gotas estacionam-se próximas a ela, e devido a esta proximidade as três gotas se fundem, agora com maior massa a nova gota vence a tensão superficial e volta a escorrer.
É difícil pôr em palavras, mas sinto como se estivesse faltando parte de mim.
Um propósito? Sim, talvez seja um propósito.
Por que exatamente eu vivo?
Vivo? Eu ao menos posso considerar que eu esteja vivo? Não sei ao certo. Acredito que eu já tenha morrido por dentro, ou quiçá nascido morto.
A mim creio que apenas me resta aguardar como um mero espectador alheio a este mundo. Assim como as folhas de outono, só posso sentar e esperar pelo meu premeditado fim.
Todavia, apesar de todo este tédio, há raros pensamentos que me prendem a atenção.
Eu perguntei aos meus pais o porquê deles estarem tão empenhados em tentar me fazer feliz. Então escutei a resposta mais banal: porque eles me amam.
Amor? Esta palavra me incomoda tanto…
Dizem que o amor é o sentimento mais forte, o sentimento mais belo, puro e nobre. Esta é uma contradição em si.
Ora, eles devem se lembrar das histórias onde um nobre e virtuoso cavaleiro mata o dragão, o símbolo de maior maldade, para salvar a vida de sua princesa. O amor do cavaleiro é tão forte que lhe deu coragem para enfrentar a mais perigosa criatura por sua amada. Assim, fecha-se a sua história com a icônica frase “e foram felizes para sempre”, tal como a completude de seu amor puro e belo.
Contudo… e se o cavaleiro precisasse sacrificar a vida de um inocente e ofertar o seu sangue aos deuses para salvar a sua amada de uma terrível doença? O que o nobre cavaleiro faria?
Caso se negue e opte por seguir a sua moral e ética, logo o amor não era tão forte assim, pois ele está limitado pela bondade, pela boa causa. Por outro lado, se decidir avançar em nome do amor, significa que os seus sentimentos pela princesa são na verdade algo muito mais sinistro.
Pequenos demônios sussurram em meus ouvidos.
“Que tipo de amor é o seu?”