Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 83
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- Capítulo 83 - Lamentavelmente, Johann Geistmann desmorona sobre seus pecados. (2/2)
O horário de almoço está chegando. Terei que dar uma desculpa para aqueles três… conhecendo Miyu, ela deve ter enlouquecido com meu sumiço.
— Desculpem-me pela mordaça, mas não posso correr o risco de vocês gritarem enquanto estou fora — amarro em cada uma delas e deixo o local.
Caminho até o refeitório e de longe percebo a inquietação da plebe que perdeu sua rainha. Os rumores devem ter corrido rapidamente por toda a escola.
O sumiço de Mikoto teve um impacto maior do que eu imaginei. Se todos decidirem procurar por ela, eu estarei um tanto enrascado. Porém, tenho uma boa ideia de como desencorajá-los sem tomar nenhuma medida drástica.
Não tenho energia mental para começar nenhum massacre. Todavia, ainda resta-me uma gota de sanidade para me livrar de certo incômodo.
— Johann-kun, por onde você andou?!
Viro-me, deparo-me como Miyu e respondo em tom sereno.
— Estou numa situação delicada. Posso esclarecê-la após me servir?
Ela assente com a cabeça e então termino de pegar um prato cheíssimo.
— Eu estava preocupada! Você sumiu sem dizer nada, o Shimizu-kun e o Manabu-kun também disseram que não o viram no dormitório — fala enquanto nos afastamos da multidão.
— Eles estão com você?
— Sim, vamos almoçar juntos. Eles também estão preocupados.
— De preferência, não. Quero minimizar o número de pessoas cientes sobre este assunto.
— Do que você está falando?
— Basicamente, há fortes indícios de que o jogo tenha se iniciado para valer e por isso estou escondido. Não direi o local pela minha própria segurança.
A expressão de irritação no rosto da Miyu gradualmente converte-se em preocupação.
— Espere… você é um jogador?
— Exato. Peço-lhe que me ajude. Não tenho condições de enfrentar este jogo, por isso estou me escondendo. Eu sei, é vergonhoso… mas nunca fui um sujeito provido de coragem. Poderia então encobrir a minha covardia?
— Não há o porquê de se envergonhar. É uma reação natural. Mas tem certeza de que este é o melhor caminho? Acredito que estará mais seguro junto de nós, seus amigos.
— Estaria os colocando em risco, mantendo-os próximos a mim. Agora, se me der licença… a minha paranoia já está me matando.
Ela hesita em responder, mas acaba cedendo.
— …Tudo bem.
…
No fim, elas se recusaram a comer e não disseram mais nenhuma palavra. Já se passou bastante tempo desde que as aprisionei.
Verifico que não há ninguém procurando por Mikoto neste antigo bloco e então volto até elas.
— Está na hora da pausa para ir ao banheiro.
Deixá-las em condições com um mínimo de dignidade é um dever da minha parte.
Ajudo-as a se levantar por estarem amarradas, especialmente Ailiss com quem usei um excesso de cordas.
Ambas acatam a minha ordem sem hesitar, afinal é uma decisão natural dada as circunstâncias que se encontram. Porém… não é do feitio de Ailiss não me xingar quando falo algo.
Sinto certo incômodo enquanto andamos pelo bagunçado porão. Elas devem estar tramando algo. Esperam ter uma oportunidade de escapar enquanto usam o banheiro?
— Esperem um pouco — dou meia volta e pego a metralhadora — Se eu perceber qualquer movimento suspeito, irei disparar sem pensar.
— Tsc — Ailiss resmunga.
…
Escuto passos vindos de cima. Provavelmente estão procurando por ela, já passou da hora de me livrar daquele sujeito.
…
— Ei, podemos conversar? — pergunto.
— Estou ocupado! Fale com outro membro do conselho!
Sua resposta transmite sua ira e obsessão em encontrá-la.
— Certo, é que eu acredito que tenha avistado a presidente. Há alguém em específico com quem eu deva fa-
— ONDE?! ONDE ELA ESTÁ?! — agarra-me pelos ombros.
— Por aqui, me siga.
Tão previsível… já não tenho muitas colocações a fazer a respeito de Takashi. Ele só precisa servir como um meio para desestabilizar essa busca por Mikoto. Ao encontrarem seu corpo, o restante do conselho irá se acovardar.
— E então onde ela está?
Já estamos num local afastado.
Disparo em suas costas.
…
— Já estão aqui há dois dias, precisam se hidratar e alimentar.
Isso se tornou mais exaustivo emocionalmente do que eu imaginava. Se para mim isto já está ruim, quem dirá para elas. Porém, já que cheguei tão longe preciso ao menos testar as minhas hipóteses em relação a um final onde todos permanecemos vivos.
Pego o prato de comida e as garrafas d’água, e me aproximo de ambas.
— Irão colaborar comigo ou devo tomar outros meios de alimentá-las?
Mikoto suspira e consente com a cabeça.
Fico aliviado, por mais que eu tente simular certa frieza diante delas, fazê-las mal esmigalha o meu coração.
Desamarro as mãos de Mikoto e então miro a arma para ela.
— Não entendo. Não é como se fossemos morrer por ficar somente alguns dias nestas condições… quais são as tuas intenções com isso?
— Somente se alimente, não tente me distrair.
Mikoto não possui uma força sobre-humana como a de Ailiss, mas provavelmente é muito mais hábil do que eu. Se eu vacilar ela pode me desarmar, sem falar da sua persuasão que é muito forte.
— Pois bem… — suspira e começa a se alimentar.
Passado alguns minutos, Mikoto termina a refeição e então fala.
— Podes prender-me novamente.
Era o que eu pretendia fazer, mas um mau presságio me fez repensar minhas decisões.
— Tenho uma ideia melhor… — volto-me a Ailiss — Ela é perigosa demais para portar um talher.
Não duvido que ela conseguisse me matar somente com uma colher ou hashi.
Ailiss me encara mal humorada sem dizer nada, o que entrega as suas intenções. Ela está buscando a todo instante por uma brecha para me eliminar. Mikoto também é astuta, todavia não tem a mesma experiência de Ailiss em circunstâncias deste naipe.
— Não posso negar isso. Mas o que tu estás insinuando? — comenta Mikoto.
— É mais seguro para mim se eu mantê-la solta e usá-la para servir Ailiss.
— Faças isto tu mesmo. Por que eu deveria ficar encarregada disto?
— Eu não posso servi-la e manter a minha guarda levantada simultaneamente. Vamos, apenas siga minhas ordens — levanto a arma.
Mikoto pega o outro prato e uma garrafa d’água, em seguida se dirige até Ailiss.
— É um pouco estranho fazer isto para alguém que tentou me matar, mas dada à nossa situação peço-te colaboração.
— Posso dizer o mesmo.
Mikoto então serve a comida e leva até a boca de Ailiss.
Vê-las agindo desta forma… como gostaria que pudessem chegar a este ponto de forma espontânea.
Infelizmente seus conflitos são manchas que jamais se apagarão. Neste inferno, eles apenas se repetirão de novo, de novo e de novo.
…
— Sinto-me mal de colocá-las em cativeiro, espero que algum dia vocês entendam as minhas ações. Esta também é a melhor forma para eu testar uma hipótese: O que acontecerá quando o tempo acabar?
— As regras são muito claras: A Morte virá pessoalmente encerrar o jogo para nós. Por isto estou falando que tu estás maluco, ninguém ganhará nada com isto. Inclusive tu, morrerás da mesma forma que nós — finalmente a garota volta a falar.
— É o que dizem as regras… Mas não havia nada falando em múltiplas linhas temporais. Pode ser muito bem uma regra falsa.
— Se tu achas que seja… não posso fazer nada. Todavia, por que decidiste falar conosco a respeito disto? Afinal, como tu mesmo colocaste, isto não é do nosso interesse.
Ela tem razão. Realmente fui rude ao negá-las explicações, estou tão estressado que não pude medir minhas palavras. Não posso me esquecer de qual é meu real objetivo por trás disso tudo. Por mais duros que sejam meus métodos, devo tratá-las com um mínimo de respeito, ou estaria contrariando meus princípios.
— Desculpe-me se a ofendi em algum momento. Sei que meus métodos podem não ter sido os melhores, contudo quero que saibam que estou fazendo isto por vocês. Se eu as deixasse livres, provavelmente uma machucaria a outra, como vem repetidamente ocorrendo — viro-me para a outra — Este era seu trabalho no final das contas, Ailiss, não é?
— De fato, quando você informou-me de que ela é uma jogadora, automaticamente lembrei-me da identidade do meu alvo, minha missão se tornou matar a garota aqui ao lado. Não sei como você descobriu tudo isso, mas linhas temporais? Só pode ser uma piada… deve existir uma explicação mais racional para esse vazamento de informações.
— Sei que é difícil acreditar, mas é a verdade. Eu já não sei mais o que tentar para salvar a vida de vocês, tentei de tudo que possam imaginar e mais um pouco, então recorri a um cativeiro. Desta forma, poderei verificar com meus próprios olhos o que acontece quando o tempo do jogo acaba e a partir disso poderei ter uma nova ideia de como salvá-las.
— Em momento algum eu pedi a tua ajuda. Posso estar enganada a respeito de minha colega, mas aparentemente ela também não pediu — diz Mikoto.
— Não preciso aguardar por um pedido de ajuda. Estou agindo por conta própria, agindo por amor.
— Agora tu vens me falar de amor? Não consigo pensar em nada mais ridículo do que isso. A única coisa que posso concluir desta tua história sem pé nem cabeça é que tu estás totalmente esquizofrênico.
— Estar esquizofrênico está mais para um elogio comparado a tanta baboseira que ele está falando — completa Ailiss.
Esquizofrênico, eu? Apesar de tudo que eu fiz, é assim que elas me veem? Isto é tão injusto…
— Escutem aqui, vocês duas — levanto-me e me agacho em frente a elas, aproximo meu rosto e continuo — Vocês são minhas, entenderam? Eu irei salvá-las porque vocês duas são minhas.
Espere, o que eu estou dizendo? Acho que eu realmente estou fora de mim. É óbvio que do ponto de vista delas eu devo parecer um maluco, elas não conservaram suas memórias no final das contas.
Esta situação está me irritando demais, e fazendo-me dizer coisas sem pensar. Porém, assusta-me saber que eu possuo ter impulsos obsessivos como esse.
— Desculpem-me, não queria ter dito isso — retrato-me.
…
Cansado, escoro-me na parede enquanto as observo. Ambas estão descansando escoradas uma a outra como se não fossem inimigas eternas.
Um sorriso involuntariamente forma-se em meu rosto. Decido desfrutar desta doce ilusão por alguns minutos.
Já passaram alguns dias, e amanhã finalmente terei a minha resposta sobre a veracidade das regras.
Espere um pouco. Elas ganharam tanta intimidade assim em tão pouco tempo? Nas minhas outras tentativas precisei forçá-las a condições extremas para romper suas inimizades.
Levanto-me e me aproximo delas.
— O que você quer agora? — diz Ailiss de mau humor.
Com a arma em guarda para prevenir um contra ataque a puxo para levantá-la.
— Como tu reparaste? Tenho certeza de que não deixei transparecer nenhum movimento — comenta Mikoto.
— Intuição — falo enquanto amarro novamente as cordas semi-soltas — Deixe-me ver as suas também.
— Ainda não possuía mobilidade para soltá-la — diz Ailiss.
— Parece ser o caso, mas não posso abaixar a guarda mais com vocês. Quem diria que iriam colaborar entre si.
— “O inimigo do meu inimigo é meu amigo” é um conselho aplicável em qualquer batalha, não seria diferente neste caso — diz Mikoto com um sorriso desafiador.
— Entendo, você está certa. Não poderia esperar menos de vocês.
Afasto-me mais uma vez das duas e volto a ficar de guarda.
Conforme o tempo restante se esvai, mais suscetíveis a fugir ambas ficam. Colocando-me em seus lugares, eu provavelmente agiria desta forma também.
No entanto, eu me pergunto como vocês agiriam no meu lugar. O que Ailiss ou Mikoto que tanto admirei fariam em uma emboscada como na qual eu me encontro?
Naqueles distantes mundos eu me sentia confiante ao estar do lado das duas. Sentia que se eu agisse em prol de uma delas ou se acatasse suas ordens eu no mínimo estaria no caminho correto.
Agora me vejo sem chão. Estou desabando em uma queda sem fim.
…
— Ei, Johann, quanto tempo resta para o fim? — pergunta Mikoto enquanto levanta seu olhar para a janela.
Já faz um bom tempo que nem uma das duas se manifesta. Talvez tenham perdido as esperanças de escapar daqui.
A noite do último dia já deu as caras, desta vez não haverá nenhum espetáculo para iluminar e aquecer esta fria noite de inverno.
— Vinte minutos.
— Tu não irás desistir deste plano maluco, não é? — sorri amargamente e solta um suspiro — Para ir tão longe, talvez tu não estejas tão louco assim. Voltar no tempo… acredito que não há nada que eu gostaria mais do que isso.
— Eu desejei isso muitas vezes também, tantas vezes que é impossível de enumerar. Mas não ganhei nada mais do que uma maldição.
— Tenho minhas dúvidas quanto à veracidade desta história toda. Mas a realidade não costuma nos ceder bênçãos, esperava o quê? O que está no passado jamais poderá ser salvo — resmunga Ailiss.
Ambas desejam mais do que tudo evitar a perda de seus pais. Enquanto eu busco a todo custo salvar ambas. Nossas motivações são idênticas, mas ao mesmo tempo tão distintas. Enfim, nunca chegaremos a um entendimento comum.
O prazo expira.
E então, o que irá acontecer conosco?
Levanto-me e olho à nossa volta. Entretanto, não constato nada fora do usual.
Será? A nossa saída era realmente esperar o tempo simplesmente acabar? Estivemos sofrendo por todo este tempo à toa?
O agridoce doce dos meus sentimentos autodepreciativos nem tiveram tempo de se dissolver em minha boca, pois logo percebo que cometi um grave erro.
Eu conheço este padrão…
Os ponteiros do relógio começam a parar.
— Tsc. Nós avisamos que isso não acabaria bem — Ailiss murmura em um tom de raiva.
Um frio sobe a minha espinha e então percebo uma presença surgindo do meio dos entulhos.
Eu estava errado. As regras são verdadeiras.
Corro na direção de Ailiss e Mikoto e começo a desamarrá-las numa tentativa de fugirmos daqui.
— O prazo se esgotou e não há nada que possamos fazer. Não há para onde fugir — comenta Mikoto.
Talvez eu consiga impedir a ação da morte ao me suicidar.
Coloco a arma em minha cabeça e tento disparar, todavia fico com meu corpo totalmente congelado devido à distorção temporal.
E assim como foi a experiência de atravessar o portão, a lâmina da foice da Morte nos atravessa. Ao mesmo tempo em que meu corpo apodrece e se desintegra lentamente, vejo minhas amadas passando por esta terrivelmente dolorosa e lenta tortura.
As suas expressões de agonia fazem com que eu sinta uma dor maior do que a própria putrefação.
Sinto muito.
Minha visão escurece.
1º Dia
10h27
Droga! Droga! Droga!
Nada de que eu tento funciona!
Recuo alguns passos, corro em direção a janela e com o impulso quebro mais uma vez o vidro.
Caído no chão olho para os mesmos cacos de vidro que utilizei para me matar inúmeras vezes. Aperto um deles até a minha mão começar a sangrar.
Eu sou idiota. Um completo idiota.
Tê-las prendido daquela forma só tornou tudo ainda pior, elas tiveram uma morte lenta e dolorosa por minha conta…
O que eu estive fazendo este tempo todo?! IDIOTA, IDIOTA, IDIOTA!
Não suporto carregar mais este fardo, não quero pensar mais nisso.
Imediatamente dou um fim a isso tudo cortando a minha garganta.
…
Segundos depois me vejo novamente na sala de aula sem nenhum ferimento… isto é algo que eu percebi há muito tempo: Não há como eu fugir dos meus pecados, não tenho a opção de fugir desta realidade.