Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 92
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- Capítulo 92 - Sem sombra de dúvidas, esta falsa paz é passageira. (1/3)
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Este lugar… acho que já estive aqui. Sim, jamais poderia me esquecer dessa densa e escura névoa.
Mesmo em meio à própria insanidade, meu sangue não pode deixar de ferver ao perceber onde estou.
Malditos!
Aqueles malditos! Cadê vocês seus desgraçados?!
Eu sei que estão aí! Apareçam!
Viro-me e fito o meu arredor. No entanto, não consigo encontrá-los, pois a visibilidade desta névoa é praticamente zero.
Permaneço em silêncio nesta escuridão, até que algo chama a minha atenção.
Escuto o som de passos se aproximando, e conforme eles chegam mais próximos a mim, a neblina começa a dissipar-se um pouco deixando que eu visualize a silhueta das duas crianças.
— Você já despertou? Achei que estaria mais atordoado. Ao que tudo indica, podemos conversar com você sem precisar aplicarmos uma terapia antes — diz um dos demônios.
— Vão se foder! Qual o significado disto tudo?! Expliquem-me já o que está acontecendo! Não me falaram nada a respeito deste inferno que estou vivenciando! — respondo e avanço na direção deles — Eu vou matar vocês dois!
Repentinamente braços de sombras surgem do chão que se espicham enrolando-se pelo meu corpo e me deixam imobilizado.
O que é isso?! De onde essas coisas surgiram?!
Os braços puxam-me para baixo e colocam-me de joelhos em frente às entidades e em seguida as mãos de trevas seguram o meu rosto para que os observe. Sou colocado em uma posição de total impotência.
Droga, não consigo me mover.
— Aparentemente não será o caso… temos completo domínio desta realidade. Não há como você se opor a nós aqui, então fique comportado aí enquanto escuta o que temos para falar — riem.
— Seus malditos… Soltem-me já! — me rebato.
Os braços de escuridão apertam-me com mais intensidade, então envolvem meu pescoço e começam a me sufocar.
Estas coisas são muito fortes, realmente é impossível lutar contra eles.
Em seguida, quando eu estou prestes a desmaiar, eles liberam-me parcialmente.
— Iremos libertá-lo em breve, mas antes se acalme e deixe-nos lhe perguntar algo interessante — aproximam-se de mim e falam em meus ouvidos — Você sabe o que a bruxa, a assassina e o louco têm em comum?
Após um breve momento, a menina completa com uma sentença que me causa um arrepio na espinha.
— Os três têm suas mentes assombradas por demônios.
— O que vocês querem dizer com isso?
Ambos soltam uma gargalhada e então o garoto completa.
— Você realmente acha que suas ações foram tão fabulosas a ponto de quebrar um ódio eterno entre Yukihara Mikoto e Ailiss von Feuerstein, ou a conciliação delas já era algo natural a acontecer?
Não foi justamente para cumprir isso que eu recebi as memórias dos outros mundos?
Permaneço em silêncio e a menina toma a fala.
— Nunca passou pela sua cabeça o quão estranho foi ter se acostumado tão facilmente a matar seus colegas e amigos? Era como se fosse algo rotineiro, certo?
Minhas memórias ressoam na minha mente.
“Estranhamente peguei o jeito com uma arma de maior porte rapidamente, e parando para analisar há certas diferenças entre elas que absorvi sem sequer notar.”
“Estou apenas matando por matar, é como se isto tivesse se tornado uma atividade automática para mim. É como se eu já tivesse os matado assim bilhões e bilhões de vezes.”
Sim, eu me acostumei com aquela arma rapidamente. Eu me acostumei a matar como se não fosse nada.
Arregalo meus olhos em espanto, enquanto tento negar a mim mesmo as minhas próprias suspeitas.
— Do que vocês estão falando? Do que isso se trata? — pergunto.
— Certo, vamos abrir logo o jogo. Aquela nossa conversa sobre estar lhe cedendo uma chance de mudar o futuro e encontrar uma terceira via entre duas convergências não foi a primeira vez que aconteceu.
— Como assim não foi a primeira vez?
— Que não houve nada de especial naquela iteração. Para falar a verdade, a quantidade de vezes que você realizou o seu réquiem é maior do que possa imaginar. Para se ter uma ideia desta dimensão, já ouviu falar do Número de Graham? Pois é… o número de repetições que você manteve suas memórias é irrisório perante a todo o tempo em que isto está se repetindo.
Número de Graham? Este número é tão grande, mas tão grande que é difícil de colocá-lo em palavras. Não pode ser… tanto tempo assim? Se o que eles dizem é verdade, isto vem se repetindo por um número absurdamente maior que o número de átomos no universo. É loucura apenas de se pensar.
Eu estava ciente de que eles haviam me enganado, mas não desta forma…
— Entendo. Então eu fui feito de piada por vocês… hahahahaha… todo este tempo, por todo este tempo eu estive enganado… hahahahahahaha — volto a rir histericamente.
Eu não sei nem o que pensar a respeito. Só sinto vontade de rir da minha própria desgraça. Achei que estava fazendo algo, achei que havia sentido em minhas decisões em salvá-las. No fim, nada disso tinha significado, fui uma marionete este tempo todo. Todas as minhas ações para encontrar um novo futuro não serviram de nada.
A única coisa que consigo fazer é rir.
— Nee-chan, pelo visto a mente dele já está quebrada. O que devemos fazer com ele agora? — o menino percebe o cessar das minhas risadas — Espere, acho que a consciência dele voltou.
— Respondam-me só uma coisa. Não cansaram de aplicar o mesmo golpe tantas vezes assim? O que há de tão engraçado em enganar-me por tanto tempo? — pergunto com um sorriso amargo.
— Não me faça rir, você realmente pensa que você é tão especial assim? Por nenhum momento cogitou que você não era o único?
As palavras dos demônios me atingem certeiramente e mais uma vez um apanhado de lembranças se passa diante de meus olhos.
“Johann, apesar de eu ter escolhido justamente o contrário, no fundo quero que algum dia tu entendas as ações que tomei.”
“Posso afirmar categoricamente que é a primeira vez que você me conhece. E não estou usando “Mistkerl” como insulto, foi assim que decidi te nomear.”
Droga, não pode ser.
— Então, elas também… — perco minhas palavras.
— Exato, o mesmo ocorreu com as outras jogadoras, e este ciclo de três fases vem se repetindo periodicamente… Sim, foram tantas vezes que se criou uma ligação abstrata na forma de déjà vus entre as repetições, de tal modo que tudo se estabilizou em três finais padrões. Todavia, não é como se tivéssemos lhe mentido, o que lhe contamos sobre a infinidade de vezes que as duas morreram não era mentira, apenas omitimos que você também estava incluso nesta situação. Até que de fato nos enjoamos e quebramos este ciclo, o que resultou na sua habilidade de lembrar-se objetivamente das iterações passadas para criar novos futuros.
— Realidades paralelas, linhas temporais? Não havia paralelismo nenhum… correto?
— Usualmente tem-se a ideia de linhas temporais paralelas, no entanto, neste caso são linhas temporais cíclicas. Pode-se imaginar que cada um de vocês esteve saltando três linhas temporais para frente, logo nunca se encontraram.
Os reflexos de Mikoto, a denúncia com caligrafia japonesa ruim que atribuí a Shou, as suas confusas palavras… agora tudo bate. A anomalia que eu havia constado era basicamente nossos inconscientes percebendo esta monstruosidade de repetições. E um detalhe mais horrendo ainda é saber que aquelas duas… as duas passaram pela mesma coisa que eu… como não fui capaz de perceber que tiveram a mesma ideia?
Tendo acesso a estas memórias somente por meio de déjà vus era um pouco complicado analisar as incongruências comportamentais nas repetições em que me mantive passivo. Mas mesmo assim, mesmo sem nenhuma informação prévia eu deveria ter percebido que elas estavam escondendo seu sofrimento… acho que no fim das contas elas eram atrizes muito melhores do que eu.
E o pior de tudo…
— Então o meu réquiem não foi somente uma tentativa falha de salvá-las, mas o precursor de todo este sofrimento. Correto?
— Exatamente. Assim, tal como o dragão Ouroboros que engolia o próprio rabo, suas ações foram causa e consequências das ações delas e vice-versa. Em outras palavras, o suicídio de Johann Geistmann, o suicidio de Yukihara Mikoto e o suicídio de Ailiss von Feuerstein catalisaram um ao outro.
Enquanto minhas hipóteses se confirmam, sinto apenas uma agonia tão grande que me faz querer desaparecer.
Tudo errado. Eu não pude fazer nada por elas…
Abaixo o rosto em total desânimo e faço mais uma pergunta.
— E o que vocês ganharam com tudo isso? Se não há nada em especial na gente, o que ver meros adolescentes agonizando da mesma forma por uma eternidade é capaz de proporcioná-los?
— Boa sorte em descobrir. A verdade tem muitas camadas, e esta foi mais uma delas — riem.
Ao escutar o seu riso atordoante, o meu sangue volta a ferver e a minha ira dispara contra as entidades à minha frente, sendo mais uma vez repreendido pelos braços de escuridão.
— Seus merdas, o que é tão engraçado?! Estavam se divertindo com isso tudo?!
— Não vamos negar que foi divertido de observar. Mas como já falamos, tudo se estabilizou tão rápido que perdeu a graça. Virou algo determinístico, pois os déjà vus faziam tudo convergir para os mesmos pontos. Enjoados disso tudo, decidimos quebrar o ciclo e com isso, saltando para a mesma linha temporal, você manteve suas memórias. Todavia, antes de cem mil iterações você enlouqueceu e com isso voltamos ao tédio. Sinceramente, esperávamos bem mais de você, justamente por ter sido o mais insano dos três nos seus métodos, contudo infelizmente a criatividade humana é bastante limitada.
Estas criaturas são de um sadismo doentio… não consigo encontrar adjetivos para explanar tamanha crueldade. Eu quero matá-los com minhas próprias mãos.
Sou pressionado mais.
Entendo. Eles conseguem sentir minha hostilidade. Por hora, devo me focar em retirar o máximo possível de informações, pois não sei quando terei uma nova oportunidade de me comunicar com eles.
Contudo, há algo muito importante que preciso me certificar: a veracidade de suas palavras.
— Se já me enganaram uma vez, como posso saber se vocês não estão mentindo de novo para mim? Mikoto e Ailiss… vocês não estão fazendo-as passar por esta mesma experiência de manter as memórias durante o ciclo?
— Fique tranquilo a respeito disso, Johann. Nós não mentimos, apenas omitimos a verdade, mas se nossas palavras eram enganosas foi sua culpa aceitá-las daquela forma. Por acaso, os seus pais nunca lhe falaram para nunca acreditar em demônios? — caem em mais gargalhadas — Ademais, não deixa de ser impressionante o quanto vocês se importam uns com os outros. Não há outra maneira de descrever senão um verdadeiro amor doentio.
— E agora que não pude satisfazer as suas expectativas… o que pretendem fazer conosco? Será que poderão finalmente nos libertar? Já não temos mais utilidade como seus brinquedos.
— Para tornar as coisas mais interessantes… iremos aplicar a sua habilidade a todos os outros. Desta maneira ao menos acho que você terá uma revigorada mental. Entretanto… com exceção dos jogadores, os quais são essenciais para o jogo, qualquer um dos seus colegas que morrer a partir de agora… terá esta condição conservada.
1º Dia
10h27
Após milhares de iterações minha consciência retorna. Lembro-me da conversa que tive com as entidades no intervalo entre esta e a última repetição.
O tempo em que estou preso nesta realidade é imensamente maior do que eu achava… por tanto tempo achei que havia salvado aquelas duas dos cruéis destinos de realidades paralelas. Ledo engano, eu estive completamente perdido.
Por melhor que fossem as minhas intenções por trás de todo o sacrifício que imputei a mim, a elas e ao restante do corpo estudantil, tudo se demonstrou sem valor. A discussão de fins e meios perde qualquer sentido quando nem mesmo estes fins foram alcançados.
Ao que tudo indica, elas passaram pelo mesmo que eu. Agora consigo recordar-me com mais clareza de alguns detalhes das repetições nas quais não tive contato direto com as entidades, das repetições onde me mantive passivo. Posso compreender bem o que aconteceu naquelas ocasiões… o comportamento assassino de Ailiss e Mikoto agora faz todo o sentido.
Elas estavam agindo daquela maneira, pois acabaram tendo a mesma ideia que eu, quanta ironia não? Cobrir-se com a vestimenta mais horrenda de todas para assim salvar uma a outra. Não sei se estou sendo pretencioso, mas quem sabe também estivessem tentando salvar a mim, é a única explicação que consigo encontrar para elas também terem se submetido ao papel de vilã a contra gosto.
De qualquer forma, preciso encontrá-las logo. Agora que as propriedades do jogo novamente foram adulteradas não estarei mais sozinho nesta batalha, a primeira coisa que devo fazer é persuadi-las como vinha fazendo antes de me perder neste caminho.