Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 94
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- Capítulo 94 - Sem sombra de dúvidas, esta falsa paz é passageira. (3/3)
Escuto o som da porta da sala abrindo-se repentinamente. Viro-me para trás e vejo a mesma figura mal humorada de algumas horas atrás.
— Oh, estavam me esperando? — pergunta e se joga de modo desleixado na cadeira ao meu lado.
— Ótimo, chegou em boa hora. Agora que estamos todos reunidos… não acham que seja melhor avisarmos sobre o jogo antes que este seja anunciado? Assim evitaremos a morte dos funcionários — sugiro.
— Sinto em lhe informar, mas é tarde demais. Assim que terminamos de conversar no esconderijo, fui vasculhar os arredores e as roupas deles já estavam por lá. Eles perceberam os problemas de conexão com o mundo externo e foram imediatamente verificar o que estava acontecendo.
Olho para o relógio e constato que já está quase na hora dos alto-falantes começarem a chiar. Estando emocionalmente instável, acabei deixando o horário passar… a enfermeira, o diretor e os outros funcionários se foram enquanto eu conversava com as duas.
— De qualquer forma, eu acho que eles só acreditarão nisto com o desaparecimento de alguém em frente aos seus olhos. Como tu conseguiste evitar qualquer morte numa das iterações que me relataste? — diz Mikoto.
— Não foi muito simples, algumas vezes eu cometia um deslize. Primeiro os ameacei com uma faca e posteriormente com a metralhadora que roubei de Ailiss.
— Fora de cogitação — suspira — se fizermos algo assim, apenas os deixaremos mais assustados. Tu realmente não tiveras uma ideia melhor em todo esse tempo no qual ficaste aprisionado? — levanta-se e pressiona suas têmporas — Mas fica tranquilo, pensaremos em algo, vejo que ainda estás um pouco instável emocionalmente, então por hora não precisas te cobrar tanto… Ailiss e eu tomaremos conta da situação.
Não me cobrar tanto? Que irônico, não? Vocês eram as pessoas que mais exigiam de mim. Contudo, não posso deixar de ficar feliz em meio a esta cena.
Olho para baixo e sorrio.
—Qual é a graça? — pergunta Ailiss um tanto emburrada.
— Sabe, as únicas vezes em que nós três pudemos conversar tranquilamente foi quando eu as enganei e quando vocês se esqueciam tudo da repetição anterior. Então, em todo este tempo, esta é a primeira vez em que estaremos verdadeiramente juntos.
As duas sorriem de volta e Mikoto responde.
— Tu tens razão, não esperava que algum dia nós teríamos esta oportunidade, não depois de tudo que fizemos e dissemos uns aos outros. Tomamos atitudes pensando em nos afastar, dando prioridade à segurança dos outros, porém no fundo o que mais queríamos era um momento assim — volta-se para a outra garota com um sorriso sereno — Parando para pensar, ainda nem tivemos tempo para colocar nossas conversas em dia, Ailiss.
— Se o que o Mistkerl relatou for verdade, teremos bastante tempo disponível para isso durante o looping. Então, primeiro temos que decidir o que faremos com o resto dos estudantes.
— Podemos seguir a sugestão do Johann e dar um aviso por desencargo de consciência, no entanto, fica a critério deles acreditar nisto — vira-se para mim — Tu podes ficar encarregado disto, Johann? Faça um comunicado pela a sala de som, enquanto isso Ailiss e eu iremos pensar em alguma forma de conter um possível caos decorrente da persistência de memórias. Mais tarde eu irei a público para dar mais credibilidade ao teu comunicado.
— Certo, vou encaminhar isso agora mesmo. Com um aviso prévio talvez possamos amenizar o choque — assinto e saio da sala.
Apesar de estar bastante alegre por as duas estarem aqui, uma sensação ruim não cessa em meu peito. Uma pergunta não deixa de martelar na minha cabeça: “Você tem o direito de ficar feliz?”
Não consigo me ver ao lado delas da mesma forma que ocorreu nas repetições em que me mantive passivo, acho que já perdi este direito há muito tempo. Logo ao fechar a porta, e ao ficar sozinho em meus pensamentos só consigo sentir um grande vazio em meu interior.
Enquanto estamos no mesmo recinto, sinto-me acolhido e iluminado por suas auras reluzentes. Porém, ao me afastar, novamente vejo-me em escuridão.
É como se eu não tivesse mais luz própria, ou talvez nunca tivesse.
Algo está faltando… e acredito que seja eu mesmo.
Caminhando em direção à sala de som percebo que Mikoto não me entregou a chave.
Droga, eu sai na correria e esqueci de pegar a chave.
Então dou meia volta e me deparo com Natsuki que também se dirige a sala do conselho.
Ela chega um pouco antes de mim, bate duas vezes na porta, a abre e fica congelada por alguns segundos.
O que houve?!
Preocupado, eu acelero o passo e verifico do que se trata.
Compreendo…
Ela está tão envergonhada que simplesmente travou diante da sala. Volto o meu olhar para a sala e vejo Mikoto inclinada sobre Ailiss.
As duas param e nos encaram com um olhar nada amigável.
— A chave, por favor — desvio o olhar e estendo a mão.
Mikoto me encara incomodada, pega a chave de cima da mesa e arremessa em minha direção.
Não me olhe dessa forma, você também tem culpa de não ter se lembrado de me entregá-la.
Então fecho a porta como se não tivéssemos visto nada.
— A K-Kaichou e aquela g-garota… e-elas e-estavam se be-beijan… — gagueja toda corada.
Não há porque se sentir culpada, pois ao menos você bateu na porta.
— Apenas finja que não viu nada — falo tocando em seu ombro.
Iriam discutir o que faríamos a respeito do looping? Até parece… mas acho que não posso culpá-las, da perspectiva delas a última coisa que viram foi o seu suicídio e, portanto, devem ter sentido muita falta uma da outra. Querendo ou não, criaram uma intimidade muito forte quando eu decidi bancar o lunático.
Então cumpro a tarefa de alertar a todos sobre o jogo previamente, bem como o looping no qual foram inseridos.
Naturalmente, mesmo com a palavra de Mikoto ao meu lado, nem todos acreditaram até ver por mais uma vez Asahi e o professor desaparecendo ao pisarem para fora do portão.
1º Dia
10h27
Passado o prazo, o jogo reinicia, entretanto com o detalhe prometido pelas entidades. A memória de todos persiste e consequentemente a existência dos funcionários e de Asahi foram apagadas para todo o sempre.
— Nós realmente voltamos no tempo? — Manabu comenta empolgado — isto é impressionante…
Do ponto de vista deles, esta loucura toda pode parecer intrigante.
— Você provavelmente achará legal nas primeiras mil vezes… depois disso só irá querer bater a cabeça contra a parede pedindo para terminar — respondo.
— Mil vezes? Quanto tempo isto equivale? — pergunta Shou.
— Quase duas décadas.
— Isto é tempo demais… você ficou voltando tantas vezes assim? — comenta Miyu assustada.
Isso corresponde apenas a um por cento do que estive preso conscientemente. Se for levar em consideração todas as vezes que Ailiss, Mikoto e eu fomos enganados… eternidade é pouco para descrever este inferno.
A anomalia ainda parece estar fazendo efeito nos alunos. Por um lado é mais aliviante não estar correndo risco de vida por um assassino, mas ainda assim deveriam estar assustados com a possibilidade de nunca mais saírem deste looping.
Claramente Mikoto não deixou explícita esta possibilidade. Mas qualquer um que tenha o mínimo de capacidade cognitiva e que pare para analisar sabe que não temos nenhuma saída, só o fato de eu em todo este tempo não ter achado uma solução já evidencia isso.
— Pelo visto vamos passar bastante tempo juntos, Miyu-chan! — diz Shou sorridente.
— Aproveite este tempo para fazer algo prestativo, como estudar para o vestibular ou decidir sua carreira — responde emburrada.
— Quê?! Ainda estamos no segundo ano! E ainda não decidi se irei para a faculdade.
— Acho que vou aproveitar para reler umas cem vezes a minha coleção de mangás e light novels que deixo no armário da escola — comenta Manabu.
…
Como previ, as primeiras repetições não apresentaram grandes problemas. Alguns estão assustados, mas a presença dos amigos torna esta experiência não tão desagradável quanto foi para mim. Enquanto Mikoto, Ailiss e eu trabalhamos para encontrar uma saída, os demais estudantes focam-se em seus hobbies, seja esporte ou leitura.
Caminho pelo pátio e observo atentamente os demais estudantes, mesmo numa situação caótica como esta, eles estão se divertindo com seus amigos. Não é muito diferente do que eu observava no começo de cada iteração.
Porém, por quanto tempo este sonho irá durar? Depois de alguns meses já sentirão falta da família, amigos e atividades fora do convívio escolar.
Enfim, tenho a minha linha de pensamento bruscamente cortada por algo cutucando o meu ombro.
Quando viro minha cabeça para verificar o que é, sinto algo cutucando a minha bochecha. Mikoto estava com o dedo pronto para me pregar uma peça.
Vejo-a com um sorriso sereno em seu rosto e Ailiss indiferente um pouco adiante. Após alguns segundos de silêncio, eu pergunto.
— O-O que foi?
— Não estávamos te encontrando. Não suma desta maneira, pois tu tens uma presença um tanto fraca e ninguém sabia nos dizer para onde tu tinhas ido. Ademais, Ailiss e eu precisamos da tua ajuda — Mikoto agarra-me pelo braço.
— Descobriram algo novo?
— Na verdade, não. Por mais que investiguemos, não encontramos nada que pareça promissor — toca em seu queixo.
Já estou ciente de que não há escapatória, porém ainda insisto em me enganar em relação a isso.
— Então, o que vocês precisam que eu faça?
— Vamos até a sala do conselho, lá dá-lo-ei as instruções em maiores detalhes.
Assinto e caminho entre as duas em direção ao bloco principal.
Durante o trajeto, conforme nos aproximamos do saguão, sou atingido por diversos olhares de choque, rostos boquiabertos e murmúrios de desejos de morte por parte do corpo discente.
“O que ele fez para estar com a Kaichou?”
“Sem falar que a outra garota é tão linda quanto.”
“Ter duas garotas tão espetaculares? Isto é injusto, vamos quebrar esse desgraçado!”
Não preciso entender os murmúrios para saber que estão dizendo isso, garotos são bastante previsíveis.
Notoriamente, ter duas garotas absurdamente belas me fazendo companhia causam este tipo de reação no público.
Suspiro e pergunto.
— Há alguma tarefa mesmo? Ou estão apenas tentando me envergonhar e colocar alguma recompensa pela minha cabeça?
— Um pouco das duas coisas — replica Ailiss.
— Tu és mais esperto do que aparentas. Como percebeste tão rápido a nossa intenção? — Mikoto ri e sorri em deboche.
Interagindo com vocês duas há tantas repetições é impossível não perceber quando estão tirando uma com a minha cara.
— Não existe outra explicação senão esta. Vocês não iriam até o meio do pátio para me buscar à toa.
— Veja toda esta negatividade, tu já estás soando como o antigo Johann, novamente.
As palavras de Mikoto me acertam em cheio.
Oh? Acho que cometi um equívoco. Será que me induzir a isso era a real intenção delas? Alguma hora ou outra eu preciso me recuperar de tudo isso e voltar a ser eu mesmo.
— Ei, Johann! Você me deve explicações! — grita Shou do meio da multidão.
Em uma visão nostálgica, percebo Manabu, Shou e Miyu chocados com a situação.
É verdade, do ponto de vista deles, não estão cientes da aproximação que tive com as duas. A questão é: como explicá-los?
Os três aproximam-se de nós e Manabu mais uma vez encara-me choroso.
— Jocchi, diga-me que isto não é o que estou pensando… você traiu o movimento?
Quantas vezes eu preciso dizer que nunca fiz parte de movimento algum?
— E-Ei, eu estou um pouco ocupado agora. Podemos conversar sobre isto mais tarde?
— Nem pensar, eu quero explicações agora! — berra Shou.
— Shimizu-kun, deixe-o, está o constrangendo — volta-se para mim corada — M-Mas eu fiquei bastante surpresa também.
Olho em volta e percebo que este escândalo está trazendo mais e mais atenção dos arredores.
— Por que vós não vindes conosco? Johann pode explicar nossa relação enquanto caminhamos até a sala do conselho estudantil — Mikoto expõe um sorriso irônico.
Até Ailiss cede um pequeno riso à situação.
Vocês duas sabem bem como me pôr em uma enrascada, não?