Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 98
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- Capítulo 98 - Assim, Shimizu Shou expõe suas frustrações. (2/3)
1º Dia
10h27
…
O incidente ocorrido entre Natsuki e Keiko está longe de ser o último. A paranoia com o passar do tempo resulta periodicamente em um surto impulsionado por inveja ou por pura loucura. Deste modo, o número de execuções realizadas pelo conselho tem um salto considerável.
Infelizmente ações como esta se tornarão cada vez mais recorrentes.
Mantenho o rapaz ajoelhado diante de um grupo de membros do conselho estudantil.
— Yamamoto Kaito, responsável pelo crime de homicídio doloso de Watanabe Daikichi e Sato Sakura, há uma última consideração que gostarias de tecer em tua defesa? — indaga Mikoto com um olhar frio.
Afasto-me, dando espaço a Ailiss, a qual se aproxima e mira o cano de seu revólver na direção do rosto do rapaz.
Ele mantém-se em silêncio enquanto encara o chão com um olhar trêmulo.
Keiko, Haruki e os demais membros se posicionam.
— Pois bem. Por unanimidade, o conselho estudantil atribui ao teu julgamento a pena de morte — completa.
Ao Mikoto encerrar sua sentença, Ailiss puxa o gatilho impulsionando um estrondo que ecoa por toda a escola.
O corpo do rapaz cai sobre a neve na maior quietude.
Aproximo-me de Ailiss e então tomo a responsabilidade de me desfazer de seu cadáver.
Os ponteiros do relógio continuam avançando e voltando de modo que, em tempo aparente, mais alguns anos tenham se passado. A população estudantil continua a decair já abaixando de quarenta por cento.
Mais da metade de todos os alunos que conviviam aqui, sorriam e se divertiam agora estão mortos. Tiveram suas existências permanentemente apagadas. Não lhes restou nem mesmo o pó, apenas as suas memórias que assim como eles, logo desaparecerão…
— Obrigado pela ajuda, Manabu. Estou lhe devendo uma por esta — digo enquanto terminamos de fechar a cova.
— Tudo bem, Jocchi. Eu já li tantas vezes meus mangás que já sei a história decor. Então ando bastante desocupado mesmo.
Eu continuo seguindo os conselhos de Ailiss e Mikoto e os mantendo na ignorância. Não sei ao certo se esta foi a decisão correta, e muito menos o quanto esta farsa irá durar. Porém é o que eu posso fazer no momento.
Colocando as últimas pás de terra, sinto-me desconfortável e decido quebrar o silêncio puxando um assunto qualquer.
— E a propósito, como vão as coisas com a Miyu?
— Bem… eu acho. Talvez você possa me dar umas dicas de relacionamento, pois possui o dobro de experiência, visto que praticamente tem duas esposas — ri.
— Vocês têm uma impressão bastante errada sobre mim. Eu já lhe disse, nossa relação é mais de mestras e escravo. Este trabalho que estamos fazendo agora é uma prova da minha servidão, elas deixam todo o trabalho sujo para mim — respondo.
— Para um masoquista, até que não é um mau negócio — para de rir — Mas diga-me algo, Jocchi, está tudo bem entre vocês três?
Está tão visível assim? Por ser próximo a mim, acredito que Manabu consegue notar claramente esta rachadura. Sim… não é somente com eles que estou sendo desonesto. Eu precisei realmente me afundar nesta coisa falsa para sobreviver a minha própria autoconsciência.
— Sim, está. Por que a pergunta? — evito contato visual.
— Faz um bom tempo que não vejo vocês três juntos quando não estão realizando as tarefas do conselho estudantil.
A verdade é que depois do ataque de Takashi, comecei sentir certo receio em me manter visível próximo a elas. Não há como ter certeza de que não existam outros como ele, e que num gatilho de inveja tentem fazer algo ruim, não a mim, mas a elas.
Mesmo que tudo rebobine ao final de cada iteração, não há como ser apagada a experiência de uma agressão. Apesar, das suas impecáveis habilidades de autodefesa, especialmente as de Ailiss, sinto um tremor incondicional somente de imaginar alguém as ferindo.
— É só impressão sua — forço um sorriso — Conversamos bastante enquanto estamos no conselho estudantil, e além do mais, acredito que elas acabam ficando um pouco enjoadas de mim. Por isso, é sempre bom dar um espaço a elas para respirar, ou ficará parecendo pegajoso demais.
— Um espaço? Eu não tinha este problema com as minhas garotas 2D, será que a Miyucchi pensa que sou pegajoso? — pensativo repousa seu peso sobre o cabo da pá.
Claramente não. Essa justificativa toda eu inventei agora.
— E falando no Diabo veja quem resolveu dar as caras — aponto para trás de Manabu.
Miyu aproxima-se de nós com duas xícaras na mão.
— Que tipo de comentário foi esse, Johann-kun? Pensei em trazê-los algo quente para beber por estarem trabalhando no frio, mas pensando bem acho que não merecem — emburra o rosto.
— Ei, Miyucchi. Não seja malvada com a gente — coça a cabeça — O Jocchi só falou brincando, né?
— Sim, foi apenas uma piada, não leve a sério — forço um sorriso.
— Eu não deveria, mas como somos amigos vou perdoá-lo desta vez — sorri — Vamos sentar em algum lugar para beber.
A mudança mais notável que ocorreu no meu círculo de amizades foi que Miyu se declarou para Manabu há mais ou menos cinquenta iterações. Isto faz com que estejam num relacionamento de quase um ano.
É evidente que nem o bom humor totalmente espalhafatoso deles resistiu a tanto tempo aprisionado aqui. Consigo notar o cansaço nos seus olhos, tantas repetições são para acabar com a sanidade de qualquer humano. Contudo, vejo que após abrirem seus sentimentos obtiveram uma maior resiliência.
Em contrapartida, quem acabou sofrendo do efeito oposto foi o elemento que ficou de fora dessa nova relação, Shou.
Sentamos em um banco do pátio para tomarmos o chá que Miyu nos trouxe. Os dois conversam tranquilamente, já eu foco minha atenção no sujeito que nos observa rancoroso a distância.
Não é de hoje que vejo este tipo de comportamento dele. Sua reação ao saber da confissão de Miyu, foi de felicitações, entretanto até que ponto eram verdadeiras é algo bastante questionável.
“Estou feliz por vocês!” diz o pacto social.
Contudo, não se pode negar o ego. Apesar de Shou falar abertamente sobre querer se relacionar com diversas garotas, quem ele sempre quis para si acaba de escoar pelos seus dedos.
Algumas repetições após Manabu e Miyu engatarem o relacionamento, percebi que ele estava evitando contato direto ao mesmo tempo em que os observava à distância.
O que você está pretendendo? Shou…
Se me lembro disso bem, ele chegou a brigar com eles em uma das repetições por meros ciúmes. Tudo bem que depois ele pediu desculpas e passou a colaborar conosco e com Ailiss… porém esta tendência não deixa de existir. E estamos no cenário perfeito para perder o senso de razão.
Eu já vi isto antes… uma tragédia está para se repetir.
— O que aconteceu, Johann-kun? Está bem disperso — pergunta Miyu.
— Não é nada, só estou um pouco pensativo.
Realmente quero estar errado sobre ele.
Quando retornamos ao saguão do bloco principal, ele está à nossa espera.
Uma mudança de comportamento? Será que ele caiu na real? Eu torço que sim, mas ainda sim… o olhar dele não está nada legal. Dependendo do seu estado mental, terei de falar com Mikoto para que deixem os três sob constante vigia.
— Ah, Shimizu-kun. Está tudo bem com você? Faz tempo que nós não conversamos, o que você tem feito? — o cumprimenta acenando.
— Preciso mesmo responder? Está tudo bem? Só se for pra você — Ele replica com uma frieza fora do habitual.
— O que aconteceu? — Miyu pergunta surpresa.
Tenho um mau pressentimento… isto parece caminhar para a mesma situação de Keiko e Natsuki. Neste caso preciso intervir agora mesmo, antes que ocorra alguma fatalidade.
Esta situação não é nada boa.
O maior problema é que deixei o revólver nas mãos de Mikoto hoje cedo e não estou portando nenhuma faca.
Droga, não pensei que isto iria ocorrer justo hoje.
— Você ainda tem coragem de perguntar? Quantas vezes eu disse que a amava? Quantas vezes me pediu tempo para pensar? E no fim… no fim sempre foi ele, sempre ele. Se ao menos você tivesse a dignidade de me dizer desde o início… por que manter minhas esperanças por tanto tempo? Planejava utilizar-me de consolo se fosse rejeitada por ele?
Ele havia se declarado a ela? Não estava ciente disso. Desta forma, o rancor torna-se ainda maior, ele vê o relacionamento de Manabu e Miyu literalmente como uma traição. Uma traição amorosa e de amizade.
Miyu chocada apenas o encara de olhos arregalados.
— Shoucchi, já chega — Manabu para em frente a Miyu — sei que você está incomodado com isto há um bom tempo, e todas as vezes que o pedi para conversarmos você recusou.
Coisas aconteceram entre eles sem eu saber, entendo. Talvez se eu estivesse menos preocupado em simular o meu próprio comportamento próximo a eles, e buscando os entender melhor, isto não estaria acontecendo.
— E iríamos falar o quê? Não há nada para esclarecermos entre nós. A verdade é somente uma: Você e Miyu são dois traidores de merda — Shou cospe estas palavras enquanto franze o olhar.
A expressão de Shou torna-se bastante semelhante à de Takashi quando me atacou por ciúmes.
Se as coisas continuarem progredindo neste ritmo… Não quero que ninguém morra, preciso pará-lo agora.
— Ei, Shou. Vá descansar um pouco, acredito que você não esteja no melhor dia para manter essa conversa — me manifesto.
Ele olha para mim raivoso e então começa a falar devagar.
— Johann, fique quieto. Você é o que menos pode falar por aqui… como a vida pode ser tão injusta assim? Parando para pensar, você é um jogador… logo isso significa que você é um dos culpados por estarmos presos neste inferno — coloca a mão no bolso e exibe a ponta de um objeto metálico.
Coloco-me em estado de alerta para reagir enquanto continuo escutando o seu relato.
— E como você é punido? Tendo seu amor correspondido não só uma vez, mas duas vezes, e justamente pelas duas garotas mais cobiçadas. Qualquer um daqui que já se matou cortaria um membro do corpo para estar no seu lugar — ri e então alterna seu tom de voz de forma agressiva — É sério mesmo que você tem a coragem de pedir paciência para alguém sendo tão privilegiado assim?! Você não pode morrer e tem tudo às suas mãos!
Vejo que a minha hipótese estava correta, não é só Takashi que pensa dessa forma. Apenas ter uma amizade ou simples proximidade com aquelas duas já é o suficiente para gerar este tipo de revolta em alguns. Acredito que isto normalmente não fosse ocorrer, mas este confinamento eleva as condições de surto ao extremo. Takashi, que possuía tendências psicopatas, teve aquele comportamento engatilhado por este ambiente.
Notoriamente, pessoas como ele e Shou só conseguem ver os aspectos positivos de quem invejam. Queriam estar no meu lugar? Teriam determinação para isso? Porque quase que eu não tive.
— Shimizu-kun, se você tem algum problema comigo, não coloque o Johann-kun e o Manabu-kun nesta história — Miyu se pronuncia.
Viro-me para ela e a interrompo.
— Está tudo bem, cuido disso — volto-me para Shou — Eu aceito as suas críticas, mas não machuque Manabu e Miyu. Eles não têm culpa alguma sobre seus sentimentos. Lembre-se de tudo o que vocês vivenciaram, não creio que você queira estragar esta amizade. Eu sei que este confinamento que nos foi imposto é para enlouquecer qualquer um, então mantenha a calma e pense bem antes de fazer qualquer coisa.
Ele está armado e irá atacá-los a qualquer momento. Se eu não conseguir persuadi-lo, vou precisar da ajuda de Manabu para segurá-lo. Porém, isto não deixa de ser arriscado, na pior das hipóteses teremos de…
— Foram eles que estragaram nossa amizade para começo de conversa, mas machucá-los? Não… não há o porquê de se preocupar com isso. Eles de fato são traidores, mas como você mesmo disse, eu jamais machucaria meus amigos.
Manabu e Miyu soltam um suspiro de alívio.
Foi tão fácil assim? Não pode ser que ele esteja falando sério de não ter más intenções. Posso sentir no seu olhar a mesma hostilidade de Takashi. E qual seria o sentido da arma que está escondendo?
— Quem eu irei matar é o culpado por estarmos presos aqui, não é, Johann? Acha que todo este papo me engana? Essas regras são mais uma invenção sua! — avança em minha direção — Basta que um jogador morra e acabou!
Eu sou o alvo? Bem… nós encobrimos o caso no qual fui morto por Takashi, então Shou não soube que o looping reiniciou mesmo comigo estando morto. Talvez mesmo que soubesse faria isto, ele já parou de agir racionalmente e só está procurando culpados.
Coloco-me em guarda para não tombar com a sua investida.
Manabu o agarra pelo braço para me salvar e consequentemente a Shou.
— Pare Shoucchi, você está louco! Você também vai morrer se matar o Jocchi! Não se lembra do que foi dito pelos alto-falantes?
— Me solte! Aquilo com certeza foi armação dele! Eu vou acabar com isto agora mesmo!
Agarro o outro braço de Shou e ajudo a Manabu a tentar desarmá-lo.
— Shou, nos escute. A regra é verdadeira, você pode não se lembrar, mas sempre o causador da minha morte sofreu do mesmo fim — falo.
— Conta outra, você só não encerra o looping porque não consegue se desfazer de uma das suas namoradinhas. Não lhe culpo por isso, não tenho nada contra você especificamente. Elas são bem bonitas, afinal de contas provavelmente faria o mesmo no seu lugar — ri — Então espero que não leve para o pessoal quando eu matá-lo.
Ainda está insistindo nisso? Não há jeito dele mudar de opinião.
— Deixe de ser teimoso, você entendeu tudo errado!
— Socorro! Eu preciso de ajuda! — grita Miyu.
De tanto se debater, Shou consegue uma abertura para golpear Manabu. Então esfaqueia superficialmente o tórax dele, fazendo-o que solte o seu braço armado.
Com uma das mãos livres, Shou vira-se para mim e tenta me apunhalar na barriga.
Droga, nesta posição vai ser impossível imobilizá-lo de novo.
— Morra, Joha- — Shou é subitamente para de agir e sangue escorre de sua boca.
Trêmulo, ele olha para baixo e em seguida perde suas forças. Dá mais alguns passos em minha direção e então o corpo dele cai ao chão com um grande furo em seu peito.
Logo noto que ele foi abatido por uma arma de fogo.
— Sinto muito pelo seu amigo, Mistkerl. Mas dada a ameaça, ele precisava ser eliminado — fala Ailiss adentrando o saguão.
Shou foi pego no flagra, em circunstâncias como estas sequer necessita de um julgamento perante o conselho estudantil. Ailiss possui carta branca para abater qualquer um pego em flagrante que esteja exercendo a violência com intenção de matar.
— Fique tranquila a respeito disso, se você não disparasse ele iria morrer da mesma forma ao me esfaquear. Acho que não havia nada que poderíamos ter feito a respeito dele — abaixo o olhar — Não conseguiríamos amarrá-lo e mesmo que fosse o caso também não ajudaria em nada, mais cedo ou mais tarde ele tentaria essa loucura de novo, só lhe restando a pena de morte. Agora precisamos tratar de Manabu o mais rápido possível.
Observo o corpo do meu amigo ensanguentado ao chão. A situação é análoga àquelas eternas repetições em que me mantive sem memória. Ailiss acabou o matando com um tiro no peito deste mesmo modo.
No entanto, sinto um contraste emocional muito grande. Daquela vez me senti culpado pelas vezes que o matei em outras linhas temporais sem ao menos lembrar-me delas conscientemente. Era uma culpa que não entendia de onde vinha.
Agora apesar de tentar valorizar minhas amizades, apesar de falsas, e conscientemente tentar me redimir. No fundo sinto apenas uma gigantesca apatia. Depois de tê-lo matado conscientemente por tantas vezes, seria hipocrisia da minha parte expor qualquer lamentação.
Isso só pode significar que toda esta tortura por qual passei parece ter matado o restante de sensibilidade que residia em mim.
— Manabu-kun! Como você está?! — grita Miyu ao ver o corte em Manabu.
— Tudo bem, Miyucchi. Eu estou bem — responde Manabu.
— Como o corte foi superficial, ele não corre risco de vida. Vamos levá-lo até a enfermaria, Keiko pode fazer os primeiros socorros e então quando o mundo rebobinar ele já estará bem — comento.