Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 99
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- Capítulo 99 - Assim, Shimizu Shou expõe suas frustrações. (3/3)
1º Dia
10h27
O tempo equivalente a mais alguns anos se passa e a quantidade de sobreviventes supera as minhas expectativas.
A explicação para este resultado se dá por causa da redução de surtos psicóticos, pois as mortes agora se resumem a suicídios.
A forte política de julgamento do conselho estudantil varreu com todos aqueles que esboçavam sinais violentos, tornando o ambiente escolar novamente seguro. Ainda assim, é cedo para confiar plenamente nos sobreviventes.
Por fim, chegamos neste estágio restando vinte por cento do corpo estudantil ainda vivo.
Entretanto, não me parece que isto durará por muito tempo. Ao caminhar pelo pátio da escola a única coisa que consigo ver são jovens jogados ao chão com olhares perdidos. Seus corpos ainda estão funcionando, mas a suas mentes já parecem ter sido corrompidas. Talvez apenas estejam vivos porque nem para cometer suicídio tenham motivação, porém creio que em qualquer pico emocional que tiverem será o suficiente para tomarem coragem de realizar tal ato.
Em outros termos, pode-se dizer que praticamente restaram mortos-vivos. Eles não se expressam, não trabalham, não se divertem, não sentem. Apenas existem e aguardam os ponteiros do relógio alcançar o infinito.
Manabu, Miyu, Keiko, Haruki e alguns outros membros do conselho estudantil ainda conseguem se manter conscientes. Então o grupo ficou responsável por tratá-los de modo análogo a uma clínica de reabilitação, contudo sabemos que nenhum paciente terá alguma melhoria, muito pelo contrário.
…
— Más notícias — diz Ailiss abrindo a porta do conselho estudantil.
— Mais um suicídio? — pergunto.
— Na verdade não. Alguns estudantes que estavam sofrendo de tontura, tiveram uma piora e os levaram a óbito.
Os efeitos do déjà vu resultavam em sintomas similares no meu corpo ao que nossos colegas vêm passando… Mas chegar ao ponto de morrer?
— Compreendo — Mikoto suspira — Pelos relatórios da Kobayashi-san e do Hasegawa-kun, nenhum dos casos apresentava melhora alguma, por isso imaginei que terminariam assim.
— O que vocês acham que seja a causa destas complicações? Não temos repertório médico suficiente, todavia isso não me parece ter origem física. Há alguma explicação sobrenatural? — manifesto-me.
— Explicações fundamentadas em teorias prontas não cabem mais a nós, esta realidade já foi adulterada por aqueles dois demônios. Aliás, se fosse apostar, diria que é um trabalho deles — comenta Ailiss sentando-se conosco.
A presidente então fecha seus olhos para raciocinar, bebe um gole da sua xícara de chá e replica.
— Que tudo origina-se deles, não tenho dúvidas. No entanto, precisamos pensar em como eles estão causando isso para verificarmos se é possível tomarmos alguma contramedida. Vamos começar limitando o nosso escopo… — toca em seus lábios de forma pensativa — A princípio, isto só começou ao terem suas memórias preservadas, correto?
A pergunta dela lembra-me das palavras da enfermeira.
“Acho que estamos passando por uma virose, apesar de não ter visto nada grave como o seu caso, outros estudantes estavam um pouco mal pela manhã, até mesmo eu estava um pouco tonta. Por isso os medicamentos acabaram… ”
— Pelo que me consta, isso começou quando eu recuperei minhas memóri- — paro bruscamente a fala enquanto mais memórias ressoam na minha mente.
“Falando nisso… a enfermaria estava bem movimentada mais cedo.”
“É… alguns colegas nossos estavam se sentindo um pouco enjoados.”
As conversas que tive com Shou e Manabu apontam que isso sempre esteve acontecendo.
— Não, isso já estava ocorrendo enquanto nós três estávamos presos no looping de três fases, já havia indícios de alunos necessitando de atendimento na enfermaria — completo.
— Entendo, mas ao menos podemos afirmar que os sintomas se intensificaram a ponto de tornarem-se letais a partir deste evento — Ela responde.
— Bem, eu passei pelo mesmo por um bom tempo, logo eu deveria ser o primeiro a apresentar os mesmos sintomas.
— Muito pelo contrário, Mistkerl. Lembre-se que você é um elemento necessário para esta realidade, você não pode morrer, ao menos não pode morrer de forma definitiva. Como o restante da plebe são contingentes para a manutenção desta realidade, podem ser muito bem descartados pelos demônios.
De fato, então a princípio somente nós três estamos isentos disso? Todos sofrerão do mesmo mal?
— Pois bem, vamos assumir que a nossa hipótese de que tal dano é uma consequência de estarmos saltando continuamente de uma linha temporal para a outra está correta. Por reiniciarmos nossas condições não somos afetados, mas isto não responde a pergunta: qual o fator em si que está afetando os demais participantes? Vós tendes alguma ideia? — a outra pergunta.
Uma palavra que me atormentou por todas essas repetições se materializa diante de mim.
— Tempo.
É uma questão assombrosamente simples: se até buracos negros evaporam, por que nossas consciências seriam eternas?
— O que tu queres dizer com isto?
— Na física, há o estudo de decaimento radioativo, o que possivelmente ocorre até mesmo para as partículas elementares. De modo análogo, isto também deve ocorrer com o nosso espírito.
Ambas arregalam seus olhos e então assentem com a cabeça.
— Compreendo.
Devido ao número monstruoso de repetições que estamos presos, superando o número de Graham, este decaimento começou a se manifestar na população restante de estudantes presos neste mundo.
Em termos simples, o que nossos colegas sofrem é algo que se comporta como uma doença degenerativa, no entanto trata-se de um decaimento que não ataca o corpo físico, mas o espírito.
Ou seja, mesmo que consigamos sobreviver, temos um tempo limite aqui dentro. O que de certa forma é o que sempre desejei, todavia, este meu desejo manifestou-se da pior forma possível.
…
— Obtivemos alguma melhora? — pergunto entrando na enfermaria.
— Nenhuma. Os poucos remédios para enjoo que temos não têm efeito algum sobre eles — replica Keiko — A melhor coisa que podemos fazer é deixá-los repousando, isso é o que mais ameniza a dor deles.
Claramente remédios não terão efeito. Estes trabalham com a bioquímica do corpo humano, e não é esta a área que está sendo danificada pela realidade sobrenatural.
Neste ponto, acredito que alguns deles já prefiram outra forma de amenizar a dor, ou melhor, cessá-la por completo. No estado deles eu iria querer recorrer a eutanásia.
Todavia, se boa parte deles não têm condições nem de se comunicar, como podemos confirmar esse desejo? Não sei. Acho que Keiko e Miyu não aceitariam meus métodos sem essa confirmação.
— Descanse mais um pouco, logo você vai melhorar — diz Miyu para um dos estudantes em estado crítico.
Uma doce mentira. Mesmo alguém que costumava ser otimista como ela já sabe que não teremos resultados. Ainda bem que temos pessoas gentis como ela para cuidar dos enfermos.
Provavelmente eles estão chegando ao máximo de que suas almas podem suportar.
1º Dia
10h27
Os sintomas do decaimento somados com a tendência suicida desenvolvida pelos estudantes faz com que o número absoluto chegue a meros vinte sobreviventes.
Totalmente abandonada, a escola que sempre se mantinha movimentada e barulhenta está irreconhecível. O que lhe resta é um grande período de quietude.
O pátio, o ginásio, o saguão… tudo está vazio.