Eu, (e) Eu Mesmo e um Mundo Diferente - Capítulo 6
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- Capítulo 6 - As Estratégias de um Viciado
O caos reinava no acampamento, gritos e até mesmo explosões eram escutados lá de fora. Além disso, Ariel pode ver alguns daqueles pesquisadores correrem desesperados para todas as direções. Mesmo que tivesse saído recentemente do banho, sequer teve chances de vestir-se adequadamente.
Havia um problema a mais, era o fato que Arielle não tinha recebido nenhuma ordem, e por esse motivo ela ficaria paralisada até que Ariel trocasse o controle com a garota. Porém, isso deveria ser improvisado na medida que a situação se desenrolasse.
Henrix liderou o caminho e com suas espadas em mãos avançou com bastante atenção.
Ariel, por outro lado, só podia acompanhá-lo sem fazer muito, afinal, não estava com nenhuma arma. De qualquer forma, com seu tamanho avantajado, começava a imaginar como ou o que deveria fazer se algo acontecesse.
Foi apenas ele imaginar que algo realmente aconteceu.
A tenda ao seu lado foi cortada com um único golpe e da fenda um soldado daquele reino caiu já sem vida. Seu corpo jorrava sangue e Ariel pode ver seu pescoço com um intenso e profundo corte. Do outro lado havia algo semelhante a um cervo ou veado, porém, no lugar de chifres, uma lâmina de osso ou aço. Era realmente assustador.
— Mas que caralhos! O que um corrupto desse nível está fazendo aqui? — gritou Henrix pegando sua espada e ficando em guarda.
Ariel apenas observava aquela criatura o encarar com seus olhos mortos e sanguinários. A lâmina de sua cabeça gotejava com o sangue do soldado e ele já partia dessa para melhor.
O garoto ao ver através da tenda pode confirmar o caos e o inferno que estava lá fora.
— Fique aí! Não me atrapalhe — disse Henrix e avançou contra a criatura.
Ariel acompanhou seus movimentos tal como um verdadeiro filme de ação, ou melhor, um jogo de ação. Movimentos rápidos e precisos, ao mesmo tempo que bloqueios e esquivas eram realizados com maestria.
Arial já tinha percebido que “Henrix”, o soldado reclamão era habilidoso, no entanto, ele não poderia imaginar que era neste nível.
O cervo foi derrotado após alguns bons segundos de luta, seu pescoço tinha sido cortado com o último golpe da espada de Henrix e isso fez com que todo seu corpo começasse a reagir de maneira estranha, com espasmos e movimentos involuntários.
— Vamos! — gritou após se aproximar e voltar para tenda.
Ariel, mesmo não entendo as palavras, “entendeu” o contexto e apenas o seguiu.
A primeira coisa que tinham que fazer seria recolher o baú. E por isso foram até a sala de reunião onde tiveram a conversa com aquele velho chamado Pann.
Antes que pudessem entrar, foram surpreendidos pelo aparecer de dois cachorros sinistros, ou seriam raposas? As criaturas tinham o mesmo olhar sem expressão e vida, e tanto fisicamente quanto seus movimentos lembrava Ariel os famosos “mortos-vivos” dos jogos eletrônicos. O cheiro de carne-podre também era um indício que ele estava no caminho certo.
Henrix percebendo isso, já se preparou, porém, antes que pudesse atacar ou se defender, uma árvore caiu em meio do corredor e da tenda. A árvore rasgou partes do tecido de couro e levou a estrutura para baixo, ao menos aquela próxima dela.
Ariel por pouco não foi atingido, mas não dava para dizer o mesmo de Henrix. O rapaz foi surpreendido por um “quick time event”, pensava Ariel. Mas no mesmo tempo que sua mente pensou naquela situação, outro pensamento, ou melhor, sensação, veio a atingi-lo em cheio.
“Arielle, ACORDE!” – e logo depois um barulho de tapa.
Seu rosto ardido e na sua frente uma garota gritando com ele… com ela. Arielle abriu os olhos e observou ao redor. Juliet estava movimentando o corpo da garota para que ela finalmente acordasse e, também se movimentasse.
— Você paralisou! Temos que sair daqui rápido — gritou Juliet.
— Me desculpe… Para onde devemos ir?
— Henrix fez um corte na tenda, será melhor passarmos por ela. — Apontou para trás de Arielle. — Onde estão os guardas? Como as criaturas atacaram o acampamento desse jeito?
— Acalme-se Juliet… — Arielle pensou um pouco.
Ariel pensou um pouco. Afinal seu corpo masculino estava do outro lado com duas feras e o próprio Henrix desmaiado, ela não poderia perder tempo. Será outro tiro no escuro devido a falta de testes ou experiência. Arielle fechou os olhos e pensou, pensou ativamente: “Arielle, você deve seguir Juliet e focar em proteger a garota, mas proteger-se como prioridade. Responda o mínimo possível” e assim que pensou, direcionou-se novamente para o garoto.
Será que deu certo? A sensação compartilhada diz que sim, mas o que Arielle irá fazer durante essas ações automáticas? Ariel não saberia explicar, e nem poderia nesse momento já que os dois lobos ainda estavam encarando-os mesmo do outro lado da árvore.
Com um rugido feroz os cachorros zumbis começaram a avançar. Ariel sentiu uma pontada de medo, mas firmou seus pés no chão, preparando-se para lutar.
Ele sabia que não tinha a habilidade de combate de Henrix, mas sua experiência no jogo VR o ajudou a entender a mecânica básica de uma luta. Ele se posicionou de forma defensiva e tal como acontecia durante os jogos, ele começou a “dançar”.
Ariel era um exímio jogador WFW e as vezes era chamado de viciado pelos seus companheiros da guilda. Isso o fez estar em outro nível, mesmo usando e se acostumando com aquela interface rústica, simplória e para muitos ineficiente.
O lobo veio abrindo sua mandíbula com o intuito de estraçalhar seu braço, mas como se ele esperasse o momento certo, imaginou aquilo que seria o indicador – mais porco que já existiu – de um contra-ataque em um MMORPG.
Com um respiro fundo, ele se preparou para o ataque dos lobos zumbis. Ele não tinha uma arma, mas sabia que precisava usar o ambiente ao seu redor para se defender. Com uma rapidez surpreendente, ele pegou um pedaço grande de madeira que havia caído da árvore e se colocou em posição de luta.
Seu corpo se inclinou levemente para ao lado ao mesmo tempo que seu adversário passou, com uma agilidade surpreendente, acertou o animal e o lançou contra o chão de terra como se fosse nada. Literalmente o animal atingiu o solo e pintou todo o canto com vermelho sangue. As entranhas ainda permaneceram vazando da carcaça pútrida da criatura e Ariel lançou para o lado. O impacto foi tão forte que até mesmo a madeira não resistiu.
Enquanto isso, Arielle e Juliet corriam se esquivando de escombros caindo e até mesmo outras pessoas correndo. Apesar da surpresa, as ordens tinham sido claras e isso fez com que ela simplesmente ignorasse os arredores focando apenas em observar Juliet e ajudá-la quando necessário.
As duas correram juntas pelo acampamento, o caos ao redor delas aumentando a cada segundo. Elas viram outros pesquisadores lutando contra as criaturas, suas faces cheias de terror e desespero. Por um momento, Arielle sentiu uma pontada de medo, mas então ela lembrou de sua missão – proteger Juliet e a si mesma.
Elas continuaram correndo, até que finalmente conseguiram sair daquela parte do acampamento. Elas olharam para trás, vendo a tenda em chamas e ainda ouvindo os gritos de horror dos pesquisadores.
De volta ao Ariel. Se não fosse pela adrenalina do momento, Ariel teria vomitado com a cena, mas isso não se concretizou na medida que o outro animal veio em seguida, tentando acertá-lo. Refazer a mesma estratégia parecia ser a melhor opção, mas isso não era um jogo e as criaturas não tinham o mesmo padrão de ataque, por isso Ariel decidiu ir até Henrix e pegar sua espada.
Ariel era muito maior que os “humanos” desse mundo, com apenas algumas passadas já estava próximo do soldado e pegava sua espada, que em suas mãos lembrava uma espada curta ou até mesmo uma adaga, e com um golpe seco sem muita técnica, cortou o monstro em dois jorrando ainda mais sangue pelo lugar.
Ariel segurou sua ânsia e decidido a continuar, foi até Henrix, agarrando-o por baixo dos braços e o levando como uma pasta de arquivos. Ao entrar na “sala de reuniões”, sentiu-se aliviado pela árvore não ter acertado o baú.
Carregar os dois pode ser um problema… espere, Arielle, a sensação voltou, então, ou a sua ordem não pode ser cumprida, ou ela terminou. “Espere Henrix acordar e mantenha-se seguro” ordenou ao seu corpo antes de voltar para Arielle.
A transição entre os corpos era quase instantânea, porém, tinha lhe dado a impressão que se afastar demais havia uma espécie de túnel de minhoca entre os dois corpos. De qualquer forma, assim que sua visão se acostumou, tanto Arielle quanto Juliet estavam do lado de fora.
Do lado de fora Ariel, no corpo da Arielle pôs a ver com mais detalhes o que estava acontecendo.
Um inferno sem fim, muito menos sem censura. As criaturas em formas de animais avançavam contra os humanos, sejam eles soldados, pesquisadores ou quaisquer outros e arrancavam-lhe pernas, braços, cabeças. O lugar aos poucos era pintado pelo vermelho e as tripas.
As poucas criaturas que foram derrotadas também se juntavam a sujeita e a pintura do lugar, porém, era claramente uma vitória unilateral dos monstros, a tal “corrupção” estava assinando o comitê de boas-vindas para Ariel.
— Meu vô! — gritava Juliet.
— Espere, Juliet, voltar lá agora não vai adiantar nada! — Arielle segurou Juliet que, apesar de tentar se manter durona, logo desabou quando observou a tenda dos pesquisadores cair pouco a pouco pelas chamas ou pelas criaturas.
— Também precisamos salvar a senhora Cristine!
Arielle era muito maior que a garota, portanto, ela não podia dar-lhe um tapa, mas, aproveitando seu tamanho, pegou Juliet e a chacoalhou.
— Recomponha-se Juliet.
Juliet ficou um pouco surpresa, mas ao se acalmar, fez um sinal positivo para Arielle para que ela pudesse colocá-la no chão.
— Me desculpe por isso.
— Foco… Vocês devem ter um plano para caso isso acontecesse, certo? Sabe qual seria?
— Um ataque direto no acampamento? Hmmm… Se isso acontecesse os soldados deveriam ganhar o máximo de tempo possível para que os não-combatentes ou autoridades e líderes pudessem avançar para um posto mais na retaguarda.
— De algum jeito isso está acontecendo. — Comentou Arielle enquanto olhava a cena. — Os soldados estão dando suas vidas para ganharmos tempo. Juliet, tirando os objetos que eu trouxe, o que deveríamos priorizar?
— Hmmm… provavelmente os relatórios, estes estão na tenda do Príncipe. Essas informações são fundamentais para sabermos o que estamos lidando ou o que está acontecendo.
Arielle deu alguns passos para frente e observou atentamente para o ambiente, porém, sem as informações certas, seria impossível ele determinar qual seria a tenda do Principe.
— Neste caso, Juliet, me diga qual é a posição da tenda do Principe.
— Ah, certo… está vendo aquela lá, no final? É a do príncipe, ela tem duas bandeiras.
— Obrigado Juliet, estou vendo agora. Então, nós precisaremos pegar esses relatórios e fugir para o mais longe daqui. — disse Arielle olhando para direção da tenda do Principe. No meio do caos, Ariel ainda precisava manter seu foco.
— Sim — Juliet assentiu. — Mas provavelmente vamos precisar de uma distração. O local estará repleto de criaturas.
— Elas são inteligentes?
— As mais fracas, não. Porém, se eles tiverem uma considerada Elite ou mesmo Comandante, isso será um problema. Estas podem pensar e são tão inteligentes quanto nós.
Arielle suspirou, mas vendo que não teria outra forma, deu alguns passos para próximo de Juliet.
— Eu serei a isca. Sou maior e provavelmente mais resistente que você. Além disso, Ariel… — apontou em direção ao corpo masculino, do outro lado da tenda. — Pode nos ajudar.
— Espere, isso é muito arriscado, mesmo para você… O que você acha que vai acontecer se for pega?
— É só não pensar nisso. — Brincou Arielle tentando amenizar aquele clima fúnebre que tinha sido formado. — E é claro, eu não vou me deixar ser pega. Assim que eu alcançar a tenda do príncipe, Ariel irá me ajudar.
— Como você pode ter tanta certeza? — questionou Juliet desconfiando das palavras da garota.
— Como posso explicar isso… poder de irmãos?
Juliet esboçou um leve sorriso, mas logo se despedaçou. E com aquela expressão séria, ela concordava. A determinação ou “positividade” de Arielle pareceu convencer Juliet. Ela assentiu.
Arielle deu mais alguns passos para próximo da garota e colocou uma de suas mãos em seu ombro.
— Fique segura, Juliet. Encontre um lugar para se esconder e espere por mim. Assim que pegarmos os relatórios, vamos sair daqui juntos!
Ela então se virou e correu na direção da tenda do príncipe. “Corra o máximo que puder e evite qualquer criatura ou monstro, procure o comandante ou qualquer grupo de soldados que esteja vencendo no caminho, se não encontrar, vá até a tenda, se encontrar, fique com os outros e peça ajuda”.
Juliet observou enquanto Arielle corria em direção ao perigo.
Enquanto isso, Ariel, agora de volta ao seu próprio corpo, se preparava para carregar Henrix e o baú juntos. Ele podia sentir o caos ao seu redor, o cheiro de sangue e fogo preenchendo o ar. Ele sabia que precisava se mover rápido.
Com um movimento não tão esperado, Ariel conseguiu pegar o baú, acomodando-o em seus ombros. Então, ele se abaixou para pegar Henrix. “É incrível que o baú pareça muito mais pesado”, pensou Ariel.
Assim que estava com os dois em mãos, Ariel começou a correr em direção ao posto de retaguarda, levando consigo o baú e o inconsciente Henrix.
Ele mal podia ver o caminho à frente, a fumaça e o caos o cegando. Mas Ariel se forçou a continuar sabendo que a vida deles dependia disso.
Atrás dele, ele podia ouvir o som de criaturas uivando e pessoas gritando. A devastação era palpável, mas ele não podia se dar ao luxo de parar e ajudar.
Ele precisava chegar ao posto de retaguarda e garantir a segurança de Henrix e o baú. E depois disso, ele precisaria encontrar Arielle e Juliet e garantir que elas estivessem seguras também.
Com essa determinação em mente, Ariel continuou correndo, se esforçando para ignorar o terror ao seu redor. Eles tinham uma chance de sobreviver a esse caos, e ele faria de tudo para garantir que essa chance não fosse desperdiçada.
X.X.X
Enquanto o pandemônio reinava, Ariel movia-se por entre o caos com determinação focada. Nos ombros, um baú pesado, enquanto nos braços, carregava o inconsciente Henrix. Ele tinha um único objetivo em mente – reunir-se com Arielle e Juliet, mesmo enquanto o risco das criaturas ameaçava a cada esquina.
Atravessando a entrada parcialmente destruída pela árvore, ele lançou um olhar nervoso para os restos do que outrora eram cachorros zumbis. O termo “zumbi” parecia agora mais apropriado do que nunca, conforme vislumbra seus corpos ainda com movimentos, mesmo naquele estado. Contudo, antes que o horror da cena pudesse invadir sua mente e provocar uma ânsia de vômito, Ariel saltou agilmente por cima dos corpos mutilados e se recolheu, mantendo-se em movimento.
Por um momento, sua atenção estava voltada unicamente para a frente, ignorando os gritos e lutas por sobrevivência que preenchiam o ar ao redor. No entanto, ao ouvir um grito agudo que reconheceu como de Cristine, seus pés pararam, e seus olhos se moveram na direção do som.
Na sala adjacente, ele viu Cristine, lutando desesperadamente contra outro cachorro feroz. Por um momento, ele ponderou deixá-la, mas ao ver com mais clareza, especialmente um escudo semelhante a vidro protegendo-a, começou a se questionar. Era algo além do entendimento de Ariel – um feitiço ou um aparato científico de algum tipo?
Independentemente de sua ignorância sobre esse mundo, e mesmo sem compreender as palavras que Cristine gritava, Ariel sabia que não podia deixá-la. Colocando Henrix com cuidado no chão, ele se moveu em direção ao cachorro. Cristine, percebendo sua aproximação, cessou os gritos, mas continuou a murmurar palavras de dor e determinação, enquanto mantinha seu escudo contra o ataque implacável da criatura.
Ariel, sem hesitação, levantou o pesado baú acima de sua cabeça e desceu-o com toda força sobre o cachorro, esmagando-o como se fosse uma lata de alumínio frágil.
— Está tudo bem com você? — questionou Ariel, oferecendo a mão a Cristine.
Ela, respondendo em seu idioma nativo, soltou palavras desconexas para ele.
— Como isso aconteceu? Onde estavam as sentinelas? — mesmo recebendo a ajuda do rapaz, uma dor aguda disparou por seu pé, fazendo-a gritar. Um tornozelo torcido, Ariel supôs.
Ainda que incapaz de entender suas palavras, os sinais de dor eram universalmente compreendidos. Ariel apoiou-a para que se erguesse, enquanto sua mente corria para formular um plano. Arielle estava ativada, e pelo que sabia, ainda correndo em direção ao acampamento do príncipe, ou ao menos em algum lugar com soldados. A ideia era extremamente arriscada, mas não tinha tempo para estratégias mais cautelosas.
A perspectiva de avançar para a tenda principal apresentava-se cada vez mais complicada com Cristine e Henrix sob seus cuidados. Ariel lançou um olhar ao baú – imaculado em meio à bagunça. Um dispositivo altamente tecnológico que poderia ser útil se soubesse como usar. A pergunta era: o que priorizar agora? A segurança das pessoas ou a proteção do artefato?
A resposta chegou ao ver Juliet cambaleando até a outra extremidade da sala. Ele não conseguiu ver exatamente o que ela estava fazendo atrás de uma mesa, mas quando ela se ajoelhou e começou a chorar, ele sabia que algo estava terrivelmente errado.
Com o coração pesado, ele se aproximou e encontrou o corpo sem vida de Pann, o avô de Juliet, caído de lado. Atacado por uma das criaturas, ele não resistiu. Ariel não conhecia Pann pessoalmente, mas a imagem de Juliet, desesperada para salvá-lo, foi o suficiente para entristecer seu coração. Porém, não havia tempo para lamentos!
Subitamente, a tenda ao lado foi rasgada com violência, a lona cortada como se fosse papel fino. Um dos cervos com lâminas no lugar de chifres emergiu, seus olhos vazios e mortos focados em Ariel. Sem aviso, a criatura avançou como um touro em fúria.
O cervo arremeteu com seus chifres afiados, e Ariel só teve tempo de saltar de lado. A mesa foi atingida e serrada como se feita de papel e os estilhaços da madeira voando para todos os lados. Cristine, apesar de não ser o alvo direto, foi derrubada pelo impacto da mesa, caindo com um grito de dor e a testa sangrando.
Ariel se levantou, colocando-se em posição defensiva, sua postura cuidadosamente calibrada para seguir os movimentos contrários da criatura. Ele se viu em um impasse, não havia muitas coisas nesta sala para usar como arma, e estava sem a espada de Henrix ou qualquer tipo de equipamento.
Teria que confiar novamente na estratégia de contra-ataque. Pode ter sido sorte no primeiro embate contra o cão zumbi, mas agora, nesse momento de desespero, teria que apostar que sua sorte ainda estava de pé. O cervo ataca novamente.
“Espere… Espere… agora!” Ariel esquivou-se quase no último segundo da criatura, virando a cabeça na tentativa de acertá-la com os chifres. Seu ataque foi tão violento que rasgou a parede da tenda, derrubando estantes e prateleiras.
Sem perder tempo, Ariel foi para trás da fera, quase levando um coice. Apesar de sua forma intimidadora, ele a agarrou e a arremessou contra o mobiliário da sala. Tudo ali era uma arma improvisada agora – o centro de pesquisa transformado em campo de batalha.
Ele sabia que o cervo não seria abatido só porque voou alguns metros. Assim, buscou algo para golpear a criatura, qualquer coisa. Primeiro, agarrou uma cadeira que quebrou como um galho frágil. Depois, tentou usar o que restava da mesa destruída.
O cervo, contudo, não cederia facilmente. Quando Ariel avançou, a criatura virou o pescoço e com sua lâmina no lugar dos chifres, rasgou as mãos do jovem, que soltou um grito de dor que ecoou pela sala.
O golpe, apesar de não tão grave, ardia terrivelmente. Ariel cerrou os dentes, prendendo a respiração em agonia, enquanto se agarrava à cabeça e ao pescoço da criatura. Como poderia derrotar algo que já estava morto? Ainda que usasse todo o seu peso para mantê-la sob controle, a criatura se contorcia e retorcia em movimentos estranhos. Era apenas uma questão de tempo até que ela conseguisse se libertar…
De repente, uma lança de gelo voou, atingindo a cabeça da criatura e destruindo parte do seu crânio, bem como um dos chifres. Ariel mal teve tempo de registrar o que estava acontecendo. Virando-se, ele viu Cristine e uma varinha mágica em suas mãos trêmulas.
— Muito obrig… — Antes que ele pudesse agradecê-la, mesmo sem saber se ela o entenderia, Cristine caiu. — Cristine! — Ele empurrou o corpo do cervo para o lado e correu até a mulher. Sua ferida na cabeça era superficial, mas sangrava.
Ariel olhou ao redor e avistou uma das longas capas que lhe fora dada anteriormente, destinada a Arielle. Ele pegou duas capas, uma usou em si mesmo e outra usou para cobrir Cristine e, sem esforço, a ergueu como se fosse um boneco de pano.
Mesmo em meio àquela situação caótica, Ariel, ainda um adolescente em muitos aspectos, se viu apenas desejando sair dali, salvando Cristine e Henrix, se possível.
Ele correu de volta à sala anterior, onde o baú ainda estava em cima do corpo do cão zumbi. Era impossível carregar todos e o baú, então ele decidiu abrir a caixa e tirar o “mapa” que estava dentro. Para sua surpresa, o tablet também estava lá. Não havia tempo para questionamentos, então ele rapidamente guardou os objetos dentro de seu casaco amarrado na cintura e correu em direção a Henrix.
Com Henrix e Cristine sob os braços, ele disparou em direção à saída, a mesma que Arielle e Juliet tinham tomado anteriormente.
Arielle estava do outro lado do caos, lutando contra a corrente de confusão e medo. Inicialmente, ela tinha seguido as ordens de Ariel e correu, mas a situação rapidamente se tornou mais caótica. Criaturas horrendas, desde javalis a esquilos mutantes, irromperam no cenário, tornando a luta contra eles cada vez mais desesperada. Os soldados lutaram valentemente, mas estavam sendo derrotados um a um, sem nenhuma chance de resistência.
A missão de Arielle, dada por Ariel, era clara: correr até a tenda do príncipe ou se juntar ao contingente de soldados que, aparentemente, estava resistindo. Ela optou pelo segundo, acreditando que haveria segurança em números. Quando se aproximou dos soldados, eles ergueram suas armas em sua direção. Apesar de ser humana, Arielle era muito maior do que eles e isso era suficiente para causar medo.
Os soldados estavam em pânico, vendo ameaças em cada sombra e cada movimento estranho. Mas antes que eles pudessem atacar Arielle, o Subtenente Mark do grupo de Henrix interveio.
— Abaixem as armas, seus imbecis! Não veem que ela é humana?! — Ele gritou.
— Mas senhor… ela… — gaguejou um soldado.
— Eu disse para abaixarem as armas!
Arielle se aproximou lentamente, uma vez que os soldados haviam abaixado as armas.
— Onde estão os outros? — perguntou Mark. Mas Arielle, assim como Ariel, não entendia a linguagem que eles falavam.
— Eu não sei o que você está dizendo… eu… eu preciso ir até lá! — apontou para a tenda do príncipe.
Mark, confuso, observou Arielle durante alguns segundos. Ao perceber que ela apontava para a tenda do príncipe, ele deu sinais de compreensão.
— A tenda do príncipe? — Ele replicou, fazendo gestos que indicavam entendimento.
— “Príncipe” — repetiu Arielle, tentando imitar os movimentos de Mark.
— O que você quer lá?
— “Príncipe” — repetiu.
Mark coçou a cabeça, frustrado. Enquanto isso, seus soldados estavam em batalha feroz contra as criaturas. Um deles se aproximou, a expressão ansiosa.
— Senhor, não vamos conseguir resistir por muito mais tempo.
— Temos que segurar o máximo que pudermos. Os outros precisam escapar!
— Mas…
— Você está me dizendo que vai desertar, soldado?
O soldado balançou a cabeça energicamente. “Não, senhor! Lutarei até que Vehëin me chame para o seu lado!” Ele levantou a voz em um grito que reverberou entre os soldados próximos: “Por Stelliza!” O clamor soou como um hino de bravura e desafio. Mark, com um aceno de aprovação, voltou sua atenção para Arielle.
Ela estava ofegante após a corrida até aquela área. Além disso, sua indumentária estava longe de ser apropriada para a situação – uma espécie de roupão, ou melhor, a toalha que lhe fora entregue anteriormente. Mark riu por um breve momento.
— Esse é um jeito curioso de se apresentar numa arena… esses “gigantes” de hoje em dia — comentou, em uma tentativa de aliviar a tensão. — Aqui! Amarre isso. Se não, você vai acabar tropeçando nisso.
Mark estendeu um pacote de corda para Arielle. Ela, no entanto, parecia confusa, incapaz de entender suas palavras ou a utilidade da corda. Ele gesticulou, indicando que ela deveria amarrar a corda em volta da cintura.
Arielle percebeu a exposição excessiva de seu “roupão” e rapidamente fechou a peça de vestuário. Desamarrou o pacote de corda e a utilizou para garantir que o roupão ficasse no lugar. Quando ela terminou, Mark assentiu com um sinal de aprovação e apontou novamente para a tenda do príncipe, fazendo gestos com as mãos para indicar que ela deveria caminhar até lá. Arielle confirmou com um aceno.
— “Príncipe”! — repetiu.
— Foi a Juliet que te disse isso, certo? — Mark demonstrou sua sagacidade ao conectar os pontos. — Ah! Então é por causa da Juliet que você precisa ir até lá!
— Sim! Juliet, “príncipe”, Juliet!
Ele desenhou um rosto sorridente no chão, colocou um chapéu extravagante nele, e depois riscou um grande X sobre a imagem.
— Príncipe, morte… morto.
Arielle percebeu que poderia comunicar-se através de desenhos. Agachou-se e começou a desenhar na terra: arquivos, pergaminhos, livros e até mesmo o símbolo dos Raios de Rapina.
— Hmmm… documentos? — Mark ficou pensativo, mesmo com seus homens em plena batalha. — Homens! Temos uma nova missão! Avise aos outros grupos! Precisamos impedir o avanço das criaturas, mas também precisamos recuperar as pesquisas!
Arielle pode não ter compreendido todas as palavras, mas pelo tom assertivo de Mark, ela percebeu que havia conseguido se fazer entender através dos desenhos. De alguma forma, ela sabia desenhar tão bem que, ao examinar suas próprias ilustrações, se surpreendeu com a própria habilidade.
A contagem inicial de Ariel e Arielle tinha superestimado o número de homens no acampamento. No entanto, os poucos que estavam ali lutavam com uma bravura que desafiava suas quantidades diminutas. Alguns se moviam rapidamente pelo campo de batalha, mas a grande maioria já tinha caído vítima do massacre.
Os soldados de Mark se aproximaram da tenda do príncipe, adotando uma formação defensiva. Arielle, ao chegar ao seu destino, pareceu desligar, fechando os olhos e parando abruptamente. Mark, incerto sobre como lidar com a situação, continuou a emitir ordens e a se engajar no combate contra as criaturas menores.
Foi nesse momento que Ariel percebeu que os estímulos compartilhados com Arielle haviam retomado – a “missão” dela havia terminado. Ele se encontrava próximo ao lugar onde ele e Juliet se haviam separado, mas não tinha ideia de onde a garota poderia estar se escondendo.
Ariel se esforçava para permanecer discreto, evitando chamar a atenção das criaturas ou dos monstros. Ele percebeu que, desde que não se colocasse diretamente no campo de visão deles, conseguia manter-se oculto. Isso, sem dúvida, facilitou sua passagem pelo território hostil.
Antes que ele conseguisse alcançar seu destino, ouviu a voz de Juliet chamando-o.
— Ei, garoto! Aqui.
Ariel buscou a origem da voz e descobriu Juliet abrigada dentro de um vagão de carga. Esses vagões provavelmente foram puxados pelos “dinossauros” que eles haviam visto antes, mas naquele momento, nenhum deles estava à vista.
— Ainda bem que você está a salvo — ela expressou seu alívio.
— Eu… Eu estou carregando a Cristine e Henrix aqui.
— Quê? — Juliet ficou surpresa com a revelação.
Juliet havia estado conversando com Ariel através de uma pequena janela do vagão, e apenas percebeu sua presença devido à sua altura. No entanto, ela não podia ver o resto de seu corpo, nem o que ele poderia estar carregando. Ao ouvir sua declaração, ela saiu de trás da janela, derrubou alguns itens no caminho e abriu as portas do vagão, correndo ao encontro do garoto.
— Cristine! Ela… está sangrando! Maldição! — Juliet gritou alarmada.
— Acalme-se, Juliet, ela… sim, está sangrando, mas não é tão grave assim — tentou acalmar Ariel. Logo depois, ergueu o corpo de Henrix para que ela pudesse vê-lo também. — Henrix também está desacordado.
Juliet se aproximou e chegou o estado dos dois, e ao ver as mãos de Ariel, pôs a ficar nervosa:
— Você, sua mão… você foi ferido?
— Sim, mas não é nada…
— Claro que é algo! Não lembra do que eu disse antes? Qualquer ferida ou corte pode sofrer contágio daquelas criaturas. Entre, rápido!
Ariel ficou assustado com a observação de Juliet, e lembrando-se de sua conversa anterior, apressou-se para entrar no vagão.
Ariel, por causa do seu tamanho, teve que se curvar um pouco para entrar no vagão. Ele acomodou Cristine e Henrix com delicadeza e, por um momento, ficou olhando para as próprias mãos. Se o que o atacou era realmente um zumbi, seria já tarde demais para ele? Se fosse infectado, o que aconteceria com Arielle? Ele se tornaria um zumbi?
Uma enxurrada de dúvidas inundou sua mente e Juliet, percebendo isso, agarrou seu braço e o puxou mais para dentro.
— Eu sei o que você está pensando, mas tente esquecer isso, ok? Não vai te ajudar… além do mais, vocês provavelmente não são… humanos, eu acho.
— Antes estava conferindo se éramos, agora não tem certeza?
— Me desculpe… estou nervosa — admitiu Juliet. — Quero dizer, vocês são “humanos”, mas não são como nós, disso eu tenho certeza.
Ariel se acomodou e fechou o vagão. O caos e os gritos do lado de fora continuavam sem trégua. Ele olhou novamente para a mão enquanto Juliet se ocupava com ataduras e panos, iniciando o procedimento de primeiros socorros. Ele acenou com a cabeça em concordância.
— Então, considerando isso, você acha que eu seria imune à zumbificação?
— Zumbificação? O que é isso? Corrupção?
— Ah? Como posso dizer isso… como um morto-vivo? Uma criatura que morreu, mas voltou à vida?
— Sim, corrupção.
— Ah,… então, sim. Você acha que eu poderia ser imune?
— Não podemos ter certeza, Ariel, mas considerando seu tamanho, se você se tornar um corrupto, ainda teremos algumas horas — ela terminou de enfaixar suas mãos e olhou fixamente para seu rosto. — Ariel, eu sei que é muito egoísta da minha parte, mas por favor, você pode nos ajudar enquanto ainda tiver forças?
Ariel sentia tanto a ansiedade quanto o terror da situação, mas se desconsiderasse a dor, o cheiro de sangue e morte e o próprio cansaço dessa aventura, ele poderia jurar que estava em um RV extremamente avançado. Entretanto, tudo isso o trazia de volta à realidade, fazendo-o questionar sua própria capacidade.
E agora, se ele foi contaminado, quantas horas teria? Deveria lamentar por tentar ajudar os outros, ou talvez fingir que nada estava acontecendo até que o tempo acabasse? Ele nunca havia enfrentado um dilema tão sério antes, afinal, todos os outros “mundos” em que estivera eram apenas jogos eletrônicos.
Ainda assim, Ariel cerrou os punhos e segurou as mãos de Juliet, que por causa da diferença de tamanho, parecia uma pequena boneca em suas mãos.
— Tudo bem, Juliet, pode contar comigo. Eu já chequei os dois, eles não foram atingidos pelas criaturas, então acredito que estarão bem.
— Obrigada. Agora estou preocupada com Arielle.
— Ah, droga, esqueci da Arielle! — Ariel se exasperou.
— O quê? — Juliet perguntou confusa, sem entender o repentino desespero de Ariel.
— É uma longa história, Juliet… eu não tenho tempo para explicar agora, mas por favor, me escute — Ariel sabia que revelar a verdade poderia pô-lo em perigo, mas esconder a situação atual, especialmente agora que estava com o tempo contado, seria imprudente — Arielle não é minha irmã, na verdade, eu menti sobre isso.
— O quê?…
— Por favor, apenas escute. Ela é… bem, sou eu. Nós somos a mesma pessoa.
— Isso é…
— Neste momento, eu entrarei em um modo automático, ou seja, ordenarei que este corpo fique aqui e proteja vocês caso algo aconteça, enquanto eu volto para o corpo de Arielle.
— Espere… ainda não entendi.
— Só cuide dos outros, eu já volto.
“Proteja Juliet e os outros dois mesmo que isso custe sua vida!” Essa foi a última ordem que Ariel deu a si mesmo – se é que se pode dizer assim – antes de transferir sua consciência para o corpo feminino.