Imperador da Glória Eterna - Capítulo 2
3 de abril de 5997 d.E, Ducado de Etterbachen, Império de Hunterburg.
Era o fim do inverno e o início da primavera no hemisfério norte no mundo de Testfeld, era o início habitual da temporada de grandes enchentes no rio Rhein, que transbordava com a neve derretida das geleiras da grande cadeia de montanha que cortava o Império de Hunterburg ao meio. Nessa época, apenas alguns pontos de travessia eram seguros, com destaque para a cidade de Etterbachen, uma metrópole movimentada nas margens desse importante rio para o transporte fluvial de minérios extraídos ao norte.
A presença de visitantes era comum na cidade. Não só mercadores, viajantes ou aventureiros, mas infelizmente, elementos de má índole passavam pela região. Com tal histórico de criminosos, diversas guildas de heróis estabeleceram bases na cidade com o propósito de localizar e capturar esses indivíduos, visando as recompensas oferecidas pelo governo.
Uma dessas guildas era a Guilda dos Dragões do Sol, formada quase que exclusivamente por membros transportados de outro mundo paralelo para Testfeld. Naquele dia, uma patrulha realizada por iniciantes recém-chegados rastreava um fugitivo procurado. A perseguição já durava dois dias inteiros, sem sucesso até o momento. Se não fosse pela substancial recompensa oferecida, muitos teriam desistido e retornado.
O líder, um espadachim chamado Axel, o membro do grupo há mais tempo em Testfeld, liderava o grupo montado em seu cavalo. Ele trotava calmamente até observar oi atraída coluna de fumaça no horizonte. Com um sinal de mão, ordenou que parassem.
— Será ele? — perguntou um dos seus subordinados ao posicionar seu cavalo ao lado do comandante.
— Espero que sim, isso já durou tempo demais… — Axel começou a trotar com o cavalo, e a equipe retomou a movimentação.
— O que faremos quando encontramos Vítor?
— Sigam o plano, não deixem aquele idiota enganar vocês com os seus truques e ilusões — respondeu focado na fumaça cinza no horizonte.
Saíram da estrada e entraram em uma trilha paralela que ia em direção à fumaça. Ao chegarem na pequena clareira no meio da floresta, depararam-se com uma fogueira recém-apagada e lenha amontoada em um monte.
Um dos rapazes aproximou-se da fogueira e mexeu nela com a ajuda de um graveto. As brasas ainda quentes rapidamente reacenderam. Olhando para Axel, constatou:
— Estamos perto dele, nosso alvo continua próximo…
Axel encarou seu subordinado e estranhou toda a situação. Seu contato próximo que tivera com Vítor nos últimos dois meses lhe dava a sensação de que algo estava errado. Seu antigo companheiro não seria descuidado a ponto de permitir que ele se aproximasse tanto.
— Um erro, e tudo o que fiz por eles foi esquecido… — falou uma voz vinda das árvores.
— Vítor, apareça! Não há como escapar, você está cercado! — Axel falou com uma voz sem confiança alguma, ele estava surpreso pela ousadia de Vítor de aparecer assim.
— Sabe, hoje sou eu, amanhã será você. — Um jovem emergiu da floresta, um rapaz de pouco menos de vinte anos. Ele usava o uniforme branco e dourado da Guilda dos Dragões do Sol, porém era muito mais refinado e adornado do que o padrão, com insígnias e detalhes nas ombreiras. Seus olhos eram apenas uma pupila preta, sem íris, dando a impressão de olhos mortos, sem vida.
— Vítor, seu bandido traidor! Renda-se agora! — gritou Axel, agora mais furioso.
— Estou muito curioso para saber qual foi a história que Uriel inventou sobre mim. Talvez assédio? Ou até mesmo agressão? Sequestro? Qual das opções?
O grupo cercou o criminoso, Vítor apesar de não demostrar resistência, sorria de forma desdenhosa para o grupo.
— Sou conhecido como “o Marionetista” por um motivo. Sabem qual é?
Vítor olhou para eles e esperou, sem ouvir a resposta, ele suspirou e perguntou novamente?
— Ninguém vai dizer nada? Não sabem o motivo?
Todos ficaram calados, tinham a resposta na ponta da língua, mas ninguém era corajoso ou confiante o suficiente para falar contra o ex-vice-líder da guilda.
— Isso não foi uma pergunta retórica, então responderei para vocês. Minhas marionetes são ótimas — disse com um sorriso.
Uma fumaça se dissipou ao redor dele; era apenas um boneco de madeira. Todos ficaram atônitos, que tipo de truque era aquele? Mal tiveram tempo de raciocinar, a terra começou a se mexer.
Mãos, braços e pernas emergiram debaixo da grama. Eram marionetes em tamanho real, uniformizadas como soldados napoleônicos e armadas com rifles de brinquedo. Cada uma pintada à mão individualmente, com feições e características únicas; não havia uma marionete igual à outra. A característica mais assustadora eram os olhos; não eram de vidro ou pintados, tinham vida.
— Ataquem, protejam seu mestre — ordenou uma voz nas árvores.
Um grito estridente ecoou das bocas de madeira das marionetes. O instinto fez com que os heróis levassem as mãos aos ouvidos, alguns derrubando suas armas no chão. As marionetes avançaram sobre eles; embora não fossem rápidas ou fortes, a quantidade compensava a qualidade.
Axel lutava bravamente, espada contra baioneta. No entanto, sua atenção se voltou para uma marionete em específico. As feições daquele soldado de madeira eram familiares, mas foram os olhos verdes que revelaram a verdade mórbida sobre os bonecos.
— Jaime? — gritou ao chegar mais perto.
Fechou e abriu os olhos para confirmar o que via; sem dúvida, era seu colega de guilda, desaparecido em combate. O boneco atacava a todos que se aproximavam dele, pronto para cortar com a baioneta.
— Como se sente ao lutar contra os seus próprios amigos? — provocou o verdadeiro Vítor, que apareceu no meio do campo de batalha.
Este Vítor era idêntico ao boneco de madeira, mesmo rosto e uniforme, com a única diferença visível em seus olhos castanhos claros, não olhos pretos sem íris como da sua marionete clone. Seu rosto exibia um sorriso que ia de orelha a orelha, e conforme ele movimentava suas mãos, finas cordas de névoa negra controlavam as marionetes.
— O que fez com ele? — A voz de Axel se transformara em pura raiva, a cada instante o seu ódio aumentava.
— Minha nova técnica especial, eu a nomeei de “Mestre das Marionetes”, não gostaria de ver? — provocou de volta. — Meu antigo truque de usar cadáveres ficou obsoleto, mortos-vivos são apenas corpos sem vida, fracos quando comparados ao verdadeiro poder de uma consciência viva em um receptáculo.
— Você é um assassino e um estuprador, não posso ter piedade… Uriel estava certo, você é o pior! — acusou Axel, mas a expressão de Vítor permaneceu imperturbável, uma face emburrada e decepcionada.
— Não veio para apreciar a minha nova forma de arte? Uma pena, adoro mostrar meus truques novos.
— Nunca irei perdoá-lo pelo que fez contra Alice! — Com a espada na mão, Axel avançou contra Vítor.
Golpeou com a perfeição esperada de um espadachim de três estrelas, entretanto, não encontrou resistência física. A espada atravessou tudo, como numa neblina, deixando Axel perplexo diante da ausência de um corpo sólido.
— Mil desculpas, eu menti, não sou um necromante… — sussurrou no ouvido dele.
— O que diabos é isso?
— Um senhor da névoa — gritou Vítor e suas marionetes ficaram enfurecidas com o rugido de seu mestre, elas atacaram seus inimigos com mais força e intensidade.
As pernas de Axel começaram a tremer incontrolavelmente; o desejo de manter a calma e lutar contrastava com o medo crescente de perecer. Inconscientemente, talvez devido à aura sinistra ao seu redor, Axel largou sua espada e se ajoelhou, seus olhos focados no céu.
Quando recobrou o sentido e lembrou-se do seu objetivo, a batalha já havia acabado. Por onde quer que se olhasse, partes dilaceradas dos corpos dos membros da guilda dos Dragões do Sol se estendiam até onde a vista alcançava. Aquela clareira agora era tingida de vermelho, uma cor que permaneceria ali por muitos anos.
— Vamos começar, será uma maravilha adicioná-lo à minha coleção — Vítor estendeu as mãos, e uma dezena de cordas negras saiu delas.
A mente de Axel tinha apenas um pensamento: matar Vítor. Ele se levantou, pegou sua espada e a apontou para seu inimigo.
— Isso acaba aqui e agora, nunca mais você irá machucar alguém de novo…
Vítor arregalou os olhos; não esperava resistência, achava que a vontade de Axel já havia sido quebrada.
— Parece que alguém teve uma queda por ela?
— Seu estuprador!
— Cometi um único erro e tudo o que fiz pelos Dragões do Sol foi esquecido em um piscar de olhos, nunca cometerei tal falha novamente… — suspirou em um tom triste.
— Pague pelos seus crimes! — gritou ao levantar a espada para cima.
— Todos os meus planos foram jogados fora devido a uma garota… Que destino patético eu recebi…
Enquanto Vítor se lamentava, Axel o atacou, novamente a espada apenas atravessou o corpo e as roupas do marionetista, sem causar nenhum ferimento.
— Seus neurônios atrofiaram? Meu corpo é feito de névoa, você nunca vai poder acertá-lo com um ataque físico.
— Isso não me impede de tentar!
Uma terceira vez, Axel falhou. Dessa vez, entretanto, Vítor olhou para o seu adversário e notou algo interessante no pescoço.
— O que é isso? Uma marca de súcubo?
A acusação desnorteou Axel; por um momento, ele esqueceu todo o ódio.
— Como é?
Logo abaixo da orelha de Axel, haviam sete pontos vermelhos, como que feitos mediante uma agulha. Não eram muito reconhecíveis devido ao capacete, mas ele havia chegado tão perto que era impossível não notar aquilo. Vítor gargalhou ao ver como a situação se desenrolava.
— Não me diga que você caiu nessa conversinha… Isso deixa as coisas muito mais fáceis.
— Pelo menos eu tive o consentimento dela — zombou de volta ao girar a espada nara Vítor.
— Não fiz nada contra Alice, cale a boca. — A névoa ao redor dele se agitou e aproximou-se de inimigo.
Houve uma tentativa de Axel de rebater as palavras de Vítor, contudo, as palavras não saíram; tentou se mover, também não conseguia.
— O grande problema de aceitar a oferta de uma súcubo não está no ato em si, mas na marca deixada depois — explicava Vítor. — Se você aceitou, é porque não sabia da sentença de morte que isso significa para nós que somos da Terra.
O único membro que Axel tinha controle era sobre os seus olhos, que se mexiam de um lado para o outro apavorados.
— Nós, heróis provenientes da Terra, recebemos maldições e bênçãos com frequência. Uma marca de súcubo diminui sua resistência natural contra maldições. Ativei uma habilidade de paralisia de nível três, ela só deveria afetar animais pequenos e insetos, porém sua marca lhe deixa vulnerável, não é maravilhoso?
A cada palavra da explicação, Vítor ficava mais empolgado, seu sorriso aumentava gradualmente. Esticou as mãos, pronto para iniciar sua técnica e converter Axel em mais uma de suas marionetes. Foi interrompido…
Um homem montado em um majestoso corcel negro entrou na clareira. O viajante possuía uma estatura média, e se vestia com um longo casaco negro que flutuava ao vento. Seus cabelos escuros e bem arrumados, estavam penteados para trás elegantemente. Seu rosto exibia uma pele branca e pálida, que contrastava com a escuridão de seu traje.
O homem ostentava um bigode pomposo e bem cuidado, conferindo-lhe um ar de sofisticação e mistério. Mas o que realmente chamava a atenção era a ausência de arreio e rédeas na montaria; o cavalo se movia por vontade própria, sem interferência do seu dono.
O estranho olhou para todo aquele massacre, as poças de sangue, e então para Axel ainda paralisado e Vítor, cercado por sua névoa negra sinistra.
— Guilda dos Dragões do Sol? — Desceu do cavalo e observou o uniforme que os dois vestiam.
Vítor concordou com a cabeça.
— Conhecem uma garota chamada Alice? Estou procurando por ela. — O homem se aproximou dos dois com as mãos nos bolsos da calça.
— Sim, a conheço — falou Vítor em um tom despreocupado.
— Ele a atacou! — Axel havia recobrado a capacidade de se movimentar.
Seu corpo formigava, e ele sentia o esforço de cada músculo para se mover. A primeira coisa que fez foi tocar na marca de súcubo; sua mão ficou cheia de sangue. A maldição paralisante de Vítor havia estourado a marca.
— Calado! — surpreendeu-se Vítor ao ver a resistência que Axel ainda demonstrava.
— Seu estuprador! — xingou Axel ainda meio atordoado.
As palavras de Axel foram a ordem que o sujeito precisava. O homem sacou uma adaga curva de sua cintura de forma fluída e rápida, a lâmina reluzente brilhou com o sol fraco da manhã. Em um movimento preciso, ele avançou em direção a Vítor, que mal teve tempo de reagir e desviar do golpe.
— Para um mero NPC, você é bom. Ótimo para dizer a verdade — elogiou Vítor, ansioso para ver a força daquele novo oponente.
— Em nome de Erobern, legítimo Imperador de toda Testfeld, você foi julgado culpado por conspirar contra um membro do Exército de Libertação.
Ao ouvir tais palavras, pela primeira vez naquele mundo, Vítor sentiu o medo de verdade, uma sensação única para ele. A menção daquele nome deixou sua boca seca, e com uma certa gagueira, perguntou ao sujeito:
— Quem é você?
— Herman Krieger, conhecido pela alcunha de Königsmörder.
Vítor engoliu seco; aquele homem era um dos escolhidos de Erobern, agora, sim, ele havia encontrado um adversário à sua altura.
— Gostaria de testar a sua força antes de explicar tudo — sorriu ele com a emoção de um novo desafio.
— E quem disse que quero explicações? Mostre o seu melhor, “herói”!