Impuro Sangue Real - Capítulo 3
O interior do circo, no mundo mágico, não difere significativamente do mundo mundano; apenas se aprimora, expandindo-se em grandiosidade. O espaço é muito maior. No entanto, mesmo nesse reino de encantamento, o solo ainda é de terra e o público, apesar da magnitude do espetáculo, permanece espremido nas arquibancadas.
Há crianças no mundo mágico, mesmo que poucas. Normalmente, nossas apresentações não são direcionadas para essa faixa etária, mas as crianças sempre acabam aparecendo e se divertindo mais do que os adultos.
ㅡ É simples… vocês não acreditam? ㅡ pergunto, fazendo uma careta exagerada de impaciência, enquanto bato o pé no chão para intensificar o drama da ansiedade, fazendo graça, é claro. ㅡ Estou aqui para enganá-los, eu! Uma mera feérica de orelhas de rato.
Quanto aos espetáculos, uma sutil diferença se destacava. Os palhaços, os malabaristas e os contorcionistas enchiam o circo com suas habilidades excepcionais, mas a presença dos mágicos era questionada. “Qual a graça de apresentar magia para seres que são rodeados por ela?”
Esse é o meu papel. Mesmo sem possuir um pingo de magia, sou encarregada de enganar o público com a própria essência mágica que os rodeia. Enganar feéricos deveria ser consideravelmente mais desafiador do que enganar humanos normais, contudo, ironicamente, ocorre o oposto. Os feéricos presumem saber tudo sobre a magia, o que, muitas vezes, resulta em uma negligência em relação a ela. E é aí que surge minha oportunidade.
Após um sorriso maldoso, convidei voluntários entre os diversos que estavam presentes na plateia, abrindo espaço para o acaso. Uma criança aleatória, com chifres de bode e pernas com cascos, saltitou até o centro do chão de terra. Enquanto a criança feérica se aproximava, um dos guardas do nobre, vestindo uma roupa de metal imponente, se aproximou do lado oposto.
ㅡ Quem diria que temos tantos voluntários. Por favor, se apresentem. ㅡ Com essas palavras, abri espaço para a criança feérica e o guarda nobre compartilharem um pouco de si, permitindo que expressassem suas graças de maneira única. ㅡ Então, caro San cabeça de chifre e caro San cabeça de metal, permitam-me explicar a dinâmica.
A plateia, que antes ria, teve sua atenção capturada quando um caldeirão contendo um líquido transparente e efervescente foi carregado para perto de nós. Agradeci aos dois ajudantes, dois Brownies, que mal falavam, apenas ajudavam quando a gente precisava. O murmúrio da expectativa preenchia o ar, enquanto os olhares se fixavam no caldeirão.
ㅡ Quero saber, quem de vocês dois tem coragem. ㅡ Ambos, tanto o homem quanto a criança, confirmaram que sim. ㅡ Quem de vocês tem lealdade?
Os dois continuaram respondendo afirmativamente à minha pergunta.
ㅡ San cabeça de metal, a quem você serve? ㅡ O homem robusto apontou para o nobre, que, desde o início do espetáculo, era o mais interessado em cada palavra que eu proferia. ㅡ Apenas a ele? E que tal começar a servir a cada ordem dessa criança?
ㅡ Vai me enfeitiçar? ㅡ Ele bufou despreocupado, invertendo a situação e fazendo uma pergunta em vez de responder. ㅡ Acho impossível que uma criança tenha poder para isso, acho impossível conseguir me enganar.
“Mas se quiser, eu posso fingir para seguir o seu show…” Ele sussurrou, eu não encaro como ofensa, embora sua fala estivesse menosprezando o meu trabalho, ao contrário, imaginei ser uma oferta graciosa que me fez rir por facilitar o meu trabalho.
ㅡ Não vai ser preciso. ㅡ O sorriso convencido permanecia estampado em meu rosto. ㅡ Também não sou forte o bastante para enfeitiçar alguém como você.
De fato, em ocasiões normais, uma criança qualquer nunca teria poder para enfeitiçar um adulto, com residência e escudos mágicos desenvolvidos ao longo dos anos. Mesmo se eu possuísse magia, também não conseguiria enfeitiçar o cavalheiro, que possivelmente treina constantemente sua imunidade. Não havia a possibilidade de reverter o quadro, a não ser com muito treino e estudo. Contudo, não estamos falando de ocasiões normais aqui.
Sinto o cheiro de caramelo açucarado quando me aproximo da poção. O grimório que sempre carrego comigo tem diversas poções peculiares e difíceis de fazer, com ingredientes quase impossíveis de se encontrar com o orçamento atual.
Ao longo dos anos, fui aperfeiçoando as poções, substituindo ingredientes caros por alternativas mais acessíveis, mas igualmente eficazes. Descobri que, embora o mundo humano não possua magia tão abrangente, isso não significa que os ingredientes de lá sejam inúteis.
E o caramelo, feito de cristal de açúcar refinado, com toques de pó de estrela prateado, tem o mesmo aspecto viscoso que a baba de dragão, especialmente quando está quente.
ㅡ Você tem coragem de tomar esse líquido aqui? ᅳ perguntei ao guarda, me aproximando com um copo do líquido que havia no caldeirão, além de um pão velho.
ㅡ Só um tolo tomaria algo sem saber o que é ㅡ respondeu, fazendo-me rir.
ㅡ Ah… mas… quero fazer meu espetáculo e você disse que me ajudaria, tem até pão para conseguir engolir esse líquido de tolo ㅡ reclamei, fingindo estar chateada. ㅡ Enquanto a você, cabeça de chifres? Pode me ajudar a terminar a primeira parte do meu espetáculo e tomar esse líquido de tolo?
O rosto do menino se iluminou. Sempre havia gente disposta a participar da brincadeira. Crianças órfãs e famintas são ótimas voluntárias, por isso os ingressos para elas são gratuitos.
O menino deu um passo à frente e entreguei o pão para ele, em troca de um fio de seus cabelos encaracolados, jogando logo em seguida no copo que segurava. Encarei o resultado da bebida antes de entregar ao garoto; devia bastar por uns quinze segundos, quem sabe.
ㅡ Então, pode beber, é tão nojento quanto parece… tem gosto de baba ㅡ falei, fazendo careta. ㅡ Brincadeirinha, é doce como doce.
Após cheirar o copo e confirmar o que eu disse, ele tomou o líquido. E pedi aplausos para parabenizar o seu gesto de destreza; eu mesma não teria coragem de tomar um líquido oferecido por mim.
ㅡ Agora comande, fale alto e em bom som o que quer que o San Cabeça de Metal faça ㅡ comentei, animada.
ㅡ Isso é ridículo, o que tem aí? Você acha… ㅡ Começou o guarda, questionando a situação.
ㅡ Quero que você entregue a sua espada ㅡ o garoto disse rápido, cortando a fala do cavalheiro, que entregou o objeto sem nem ao menos perceber.
O guarda encarou o garoto surpreso; apesar de não ter forças para brandir a espada, arrastava-a contente pelo chão de terra, arranhando sua bainha, que parecia caríssima com pedras pequenas. Quando o guarda correu para tentar recuperar a sua espada, outra ordem foi dada.
ㅡ Não se aproxime, fique, senta! ㅡ ordenou e, como um cachorro, o guarda obedeceu. Sentou-se com tudo no chão, fazendo a plateia e o garoto gargalharem. O nobre, senhor do guarda, se divertia tão quanto qualquer um ali.
Foi somente quando o guarda finalmente conseguiu se levantar que percebi que o efeito da poção havia acabado. Anotei o tempo que a poção fez efeito em meu bloquinho de notas, que sempre carrego comigo. Serviria para valiosos experimentos futuros.
”Vinte segundos.”
ㅡ Muito bem, muito bem. Ele é apenas uma criança tola. ㅡ Corri para auxiliar o garoto e evitar problemas com o guarda, entregando a espada em suas mãos e pedindo para se afastar. ㅡ Vamos continuar, não é? Não está ansioso para o próximo truque?
Insisti para que ele voltasse ao local, mesmo com raiva, ele foi marchando na direção do nobre. Já tentei vender essas poções, mas tive dois grandes problemas difíceis de resolver. Um dos principais desafios é a conservação das propriedades mágicas das poções. Se estragarem, podem se tornar venenosas, e até agora não encontrei maneira de estender o prazo de validade dessas poções do livro. São tão específicas… difíceis de fazer. Já foram difíceis de modificar. O segundo problema é que, quando tentei vendê-las prontas, bem… fui expulsa de uma cidade devido à confusão que elas causaram.
A baba de dragão, ou a adaptação dela, deixa a voz encantada. Quanto mais forte é o alvo dela, mais ela fica encantada quando escuta a voz de quem tomou. A criança é fraca e o cavalheiro forte. Se isso fosse o contrário, não serviria tão bem.
ㅡ Espero que agora acreditem em mim, que passem a confiar em minhas palavras. Afinal, que mal eu faria a vocês? Quero ajudar, proteger vocês, dos perigos que este mundo se encontra. ㅡ Como planejado pelos integrantes do circo, as luzes apagaram e um efeito do caldeirão fez com que ele ficasse vermelho.
Me aproximei, a luz me envolveu e chamou a atenção do público. Havia líquido suficiente para mais uma dose. O ingrediente mais especial é a essência desse ser. O cabelo possui pouca essência e a nossa maior fonte… é o sangue.
Com uma adaga, que carrego presa no meu quadril, cortei minha mão e o sangue escorria, encostando no caldeirão. Dois segundos foram suficientes para o corte ser cicatrizado. Ao perceber que o sangue era escasso, cortei-me novamente. Posso não possuir magia, mas me curo estranhamente rápido, e esse é mais um aspecto que me diferencia dos humanos.
Meu corpo quase não tem marcas, as cicatrizes sempre desaparecem. Podem demorar um pouco, dependendo da profundidade do corte. Contudo, elas melhoram incrivelmente bem. Ou era para ser assim. A cicatriz que insisto em reabrir na minha mão, essa é a única marca que eu tenho. Por algum motivo, a única que não cicatriza por completo.
A ardência na mão não me incomoda tanto; afinal, já fiz coisas piores em minha busca para entender o motivo de eu ser assim… a dor que sinto vai desaparecendo à medida que me hipnotizo com o sangue pingando na poção. A cor transparente do líquido logo se torna vermelha e o aroma adocicado foi substituído pelo de ferrugem.
ㅡ Esse é o verdadeiro espetáculo. ᅳ Não conseguia ver o rosto da plateia, estava escuro e, apesar de a maioria dos feéricos ter a habilidade de enxergar no meio sem luz, eu não tinha magia para isso.
O silêncio invadiu o local. Todos estavam atentos a cada movimento da luz avermelhada que caía do caldeirão. Eu estava acostumada com o gosto da poção, embora o aspecto viscoso ainda me desse nojo.
ㅡ Que tal ㅡ falei após terminar de beber o restante da poção ㅡ vocês dormirem agora?
A criança é fraca e o cavalheiro forte… A poção não usava a minha magia para funcionar, mas sim a do público. Quanto mais discrepante for a proporção, melhor. Alguém completamente sem magia e uma plateia repleta dela.
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As luzes se acenderam e as pessoas começaram a acordar lentamente. Ao perceberem o que havia ocorrido, surgiram perguntas, mas, é claro, nenhuma delas foi respondida. O restante do espetáculo, a parte divertida, foi retomada, distraindo a plateia. Enquanto eu, Markson, Triket e alguns ajudantes Brownies escondíamos os pertences roubados, antes que o público desse falta deles.
Quatro minutos. Anotei em minha caderneta no final. Quatro minutos foi o tempo que ficaram dormindo.