Inimigo das Trevas - Capítulo 01
Deitado sobre a cama, o rapaz ainda encarava o teto, os olhos tomados por olheiras. Negava-se a mover um músculo sequer. Após mais uma noite mal dormida, acordou antes do horário e, agora, estava ali, totalmente sem ânimo para levantar.
Os pesadelos ainda o perseguiam. Noite após noite e incessavelmente.
ㅡ Tio… Aquele desgraçado! ㅡ vociferou enquanto esfregava as mãos sobre os olhos.
Já não bastasse a insônia, era obrigado a comparecer a outro dia cansativo de trabalho. Em outras condições estaria animado em seguir em sua decisão de ter uma vida comum, mas desde que deixara a casa do tio, suas noites eram atormentadas por sonhos sombrios…
Ou seriam lembranças que ele se recusava a aceitar?
Triim! Triim! Triim!
O alarme tocou, tirando-o do devaneio.
Antes que o som se repetisse pela quarta vez, tateou pela cômoda até encontrar o celular e desativou o alarme, deixando escapar um longo suspiro. Num impulso de vontade, ergueu-se da cama e caminhou até o banheiro, onde ligou o chuveiro e, aos poucos, deixou a água fria cair sobre si, sumindo com grande parte das más sensações que o acompanhavam.
Após isso, vestiu uma calça, um sapato ㅡ os primeiros que encontrou ㅡ e depois, a blusa do estabelecimento em que trabalhava, com seu nome e função estampados no peito: Igor Mendes, funcionário. De resto, apenas passou as mãos sobre o cabelo de fios negros e estava finalizado.
Caminhou até a cozinha e, com o pouco alimento que restava, preparou um sanduíche simples. Já na sala, saltou sobre o sofá e agarrou o controle, ligando a antiga TV, cujo único canal que ainda funcionava, no momento, transmitia o noticiário local.
Igor deu uma mordida no sanduíche e fixou os olhos no apresentador que, após fazer a propaganda de algum produto que ele jamais usaria, iniciou uma notícia que atraiu a atenção do rapaz, aparecendo o seguinte título na parte inferior da tela: “Outro jovem é encontrado morto, culpado ainda não foi descoberto.”
Já era a quarta vez que via aquela notícia na semana, e aquilo estava a lhe causar um certo incômodo. Como das outras vezes, o jornalista explicou o caso, que se tratava de assassinatos brutais em diferentes bairros da capital baiana, onde, até o momento, quatro rapazes haviam sido mortos.
ㅡ São todos bairros próximos… ㅡ constatou Igor surpreso.
O apresentador continuava sua narração, explicando que ambos os jovens tinham idade e aparência similares e haviam sido mortos com alguma arma branca, devido aos diversos cortes pelos corpos. A principal suspeita era a de que algum serial-killer estava a atacar.
O jornalista finalizou recomendando prudência aos moradores e a quem tivesse qualquer informação útil que contatasse a polícia.
“De novo não!”
Igor cerrou o punho com força. Para qualquer outro, poderiam parecer assassinatos comuns, mas para ele não. Algo anormal estava a agir sobre a cidade, e bem próximo dele.
“Foda-se! Não preciso me envolver. Não é problema meu… Não mais!”, concluiu ele, já se erguendo do sofá.
Sua atenção foi desviada para o celular, que emitiu o som de outro alarme, o horário do trabalho se aproximava. Ignorando a dor de cabeça que voltava a incomodá-lo, desligou a TV e deixou o apartamento.
Em instantes desceu os quatro lances de escada ㅡ já que o elevador sempre estava em manutenção ㅡ e se deparou com o senhor de cabelos grisalhos que era o porteiro do prédio. Um sorriso se formou em seus lábios ao ver a doce figura do idoso à sua frente.
ㅡ Seu José! Como está? ㅡ perguntou Igor e cumprimentou-o com um aperto de mãos.
ㅡ Vou bem, menino ㅡ respondeu ele sorridente. ㅡ E você? Não parece nada bem.
ㅡ Faço o que posso…
ㅡ Olhe lá, hein! Não quero que meu único amigo aqui acabe passando mal! ㅡ disse e afagou a cabeça de Igor, bagunçando seu cabelo.
ㅡ Pode deixar! E você, se cuide também, velhinho! ㅡ Igor gargalhou, despedindo-se com um gesto.
Sem demora, andou pelas tumultuosas ruas da cidade, apressando-se em chegar ao trabalho. Ao seu redor, casas e prédios históricos pintados das mais diversas cores compunham o cenário daquela parte de Salvador. Era tudo tão diferente da sua antiga cidade.
“Um ano… um ano nessa cidade. Saí de casa para mudar de vida e olha só como estou. Não… tenho que pensar positivo! Estou progrendindo”, refletiu ele em meio às lembranças.
Após alguns minutos de caminhada, logo estava em frente ao seu ambiente de trabalho: um restaurante de comidas típicas baianas, local que recebia a visita de turistas de todas as partes do país. Igor adentrou o restaurante, dando início a mais um longo dia de serviço.
A cada tentativa de saber as horas, o tempo parecia passar mais lentamente e o relógio preso na parede insistia em repetir seu tic tac infinito. Após servir mais e mais clientes, já não via a hora de voltar para casa.
ㅡ Ei! Me dê um acarajé aí, seu moço! ㅡ falou uma repentina e grave voz, soando mais que familiar nos ouvidos dele.
O rapaz se virou e um misto de surpresa e receio o tomou ao reconhecer a figura que se sentara no balcão. Rapidamente o homem o agarrou e os dois se enrolaram num abraço apertado. Vestido com uma camisa social amarela já desbotada e uma calça empoeirada, o homem exibia um grande sorriso.
Para ele, o reencontro era motivo de felicidade; já para Igor, aquilo reforçava suas incertezas de mais cedo. Algo de anormal pairava sobre a cidade.
ㅡ Tio Alonso! Como me achou?!
ㅡ Tenho meus informantes ㅡ respondeu ele enquanto tirava seu inseparável chapéu de palha, revelando os cabelos do mesmo tom do seu jovem sobrinho.
ㅡ Não me diga que… ㅡ O sorriso no rosto de Igor se desfez tão rápido quanto surgiu. ㅡ Achei que veio me visitar, mas pela sua cara vejo que não é isso.
ㅡ Meu querido sobrinho, parece que seu raciocínio continua rápido…
ㅡ Sem enrolação, tio. Fala logo pra que veio.
ㅡ Não podemos falar disso aqui e você sabe… ㅡ explicou Alonso risonho, como se estivesse alheio à irritação do sobrinho.
ㅡ Tá vendo, tio?! Esse seu humor sempre me irrita! Parece que você faz de propósito… ㅡ Uma veia saltava para fora da testa de Igor. ㅡ Quando acabar o expediente a gente se fala, me espera lá fora.
ㅡ Lá fora que nada! E trate de trazer meu pedido, ora! Aqui tem desconto para parente de funcionário por acaso?
******
De noite, as ruas da cidade pareciam todas iguais, com certeza um labirinto que faria qualquer turista distraído se perder com facilidade. Igor caminhava ao lado de Alonso, mas sem lhe dirigir o olhar, um milhão de pensamentos e lembranças tomavam sua mente no presente momento.
Mas, de qualquer jeito, aquele não era o reencontro que gostaria. Esperava ver o tio novamente só quando estivesse bem estabelecido na cidade.
ㅡ E então, o que quer? Se for algum trabalho… ㅡ perguntou, cortando o silêncio que já o incomodava.
ㅡ Eu vim te buscar! ㅡ falou o homem, tirando uma expressão de espanto do rapaz.
ㅡ O quê? Não, não…
ㅡ Cala a boca, Igor. Vê se me escuta! Você não sabe de nada… eles virão atrás de você. Na verdade, já devem estar aqui!
ㅡ Eles quem? Espíritos? Assombrações? Eu dou conta! Você mesmo me ensinou, droga! Sabe que eu sei me virar!
ㅡ Não é tão simples, são seres ainda mais poderosos, você não aguentaria enfrentá-los… ㅡ Alonso coçou a testa apreensivo. ㅡ Uma única vez na vida, só me escute!
ㅡ Esse é o problema tio, por isso fui embora, eu já estou de saco cheio dessa vida! Matar para sobreviver não é meu estilo, mesmo que sejam monstros ou coisas do tipo…
Nesse momento, os dois já estavam próximos do prédio onde Igor morava. Antes que dissesse mais alguma coisa, seu tio se agachou no chão e passou a mão em algum líquido que ele sequer notara. Em seguida se levantou, agarrando o braço de Igor e o encarando.
ㅡ Eles chegaram! Vamos embora daqui.. foram mais rápido do que eu calculei! Merda!
ㅡ Nem a pau! Seja o que for, se tiver quebrado algo na minha casa vai tomar uma surra!
Sem pensar duas vezes, Igor correu para dentro do prédio. Sem outra escolha, Alonso o seguiu. Chegando na portaria, a cena que viram fez o sangue do rapaz esquentar como nunca. Jogado sobre a mesa, estava o cadáver do Seu José ㅡ ou o que sobrara dele ㅡ repleto de cortes e coberto de sangue.
Cerrando os punhos com o máximo de força que pôde, Igor correu pelas escadas até chegar ao seu apartamento, a porta estava arrombada e pedaços dela jaziam espalhados pelo corredor.
ㅡ Espere! ㅡ Alonso o interrompeu e tomou a frente. Era nítido o estado emocional do seu sobrinho. ㅡ Já vi que não vai sair daqui sem uma boa luta… Ha, ha! Puxou a sua mãe!
Mãe… essa palavra produziu tantas emoções no jovem. Eram tantas dúvidas, mas sem nenhuma resposta. Por hora, deixaria isso de lado, focaria no seu presente e no que estava a acontecer com ele mesmo.
O prédio estava estranhamente silencioso, coisa que graças ao caos repentino eles só notaram agora. Alonso pôs a cabeça pelo espaço onde antes havia a porta, na tentativa de identificar o que estaria lá dentro, e então viu três estranhos seres.
De estatura pouco menor que a humana, tinham o corpo esquelético, coberto de pelos, ostentavam asas de morcego e tinham a pele extremamente resistente, além disso, carregavam um machado cuja lâmina tinha formato de meia-lua.
Os seres fuçavam o pequeno recinto, seus olhos vermelhos brilhavam como faróis no escuro, revirando os móveis em busca de algo. E esse algo era Igor.
ㅡ Cupendipes ㅡ sussurrou Alonso para o sobrinho.
ㅡ O quê?! Esses bichos não viviam só no Tocantins?!
ㅡ Eu te disse, o que estamos envolvidos não é pouca coisa, sua cabeça está a preço, menino.
ㅡ Como acabamos com essas coisas? ㅡ questionou Igor o mais baixo que pôde.
ㅡ O jeito fácil é botando fogo neles. Tem algum isqueiro aí? ㅡ perguntou Alonso calmamente.
ㅡ Tá maluco?! Não. Não vamos colocar fogo no prédio…
ㅡ Então vai ser do jeito difícil… temos que decepar a cabeça deles com a própria arma. Eu pego os dois da direita e você pega o que está mais ao fundo…
Igor confirmou com a cabeça e com um sinal de mão de Alonso os dois pegaram os pedaços de madeira jogados no chão, avançando rapidamente para dentro do recinto.
Os Cupendipes logo perceberam a chegada deles, mas não rápido o suficiente para desviarem da primeira sequência de golpes dos dois, que cortou o ar e acertou dois deles em cheio, desequilibrando-os. Com uma segunda sequência, as bestas foram ao chão, porém, os pedaços de madeira espatifaram-se, o que deixou os dois desarmados.
Sem pestanejar, Alonso saltou sobre uma das criaturas já caídas, acertando-lhe um soco certeiro na face, depois outro e mais outro. Em instantes, o ser não tinha mais forças para revidar e ele aproveitou-se disso. O homem arrancou o machado de suas mãos, decepando sua cabeça disforme com um corte rápido.
Já Igor não foi tão rápido quanto o tio, dando tempo para o Cupendipe se reerguer. A criatura fez dois cortes em diagonal no ar, mas o rapaz desviou rapidamente e foi forçado a recuar alguns passos. Por pouco os cortes não lhe arrancaram um pedaço do nariz.
Em seguida, o ser abriu suas asas, soltando um urro estridente que quase fez os tímpanos do rapaz estourarem. Ele ainda tentou tapar os ouvidos, mas foi inútil, mal conseguia permanecer em pé. A única coisa que o mantia firme era seu ódio por aqueles malditos seres.
“Mataram um pobre velho… inaceitável”, pensou.
ㅡ IGOR! ㅡ Alonso berrou o mais alto que pôde e arremessou o machado na direção do sobrinho.
Ao agarrar a arma, Igor recobrou boa parte do equilíbrio e juntou o máximo de força que pôde em seus braços. O machado voou enquanto girava no próprio eixo. O arremesso foi rápido e certeiro, separando a cabeça do corpo da besta e cobrindo o chão com um sangue esverdeado.
ㅡ Só queria um pouco de paz e olha só onde vim parar… ㅡ rosnou Igor.
Cambaleando, o rapaz retirou a arma que ficou presa na parede e pegou o machado da outra besta. Virou-se na direção da última criatura restante com um olhar sádico estampado no rosto enquanto girava os machados nas mãos. O ser pareceu reconhecer a situação em que estava e recuou até a janela mais próxima.
ㅡ Não vai ficar assim… ㅡ falava a criatura com uma voz rouca ㅡ Anhangá virá… Lorde Jurupari virá…
ㅡ Tá achando que vai aonde?! ㅡ gritou Alonso e saltou sobre o monstro. ㅡ Igor, o machado!
O rapaz lançou a arma, ele a pegou em pleno ar e caiu sobre a criatura. Ouviu-se um som de vidro quebrando e os dois caíram do prédio enquanto trocavam poderosos golpes de machado, gerando faíscas graças ao atrito.
Porém, a cada golpe dado, a agilidade do humano se mostrava superior à da besta e ele conseguiu decepar a cabeça do ser pouco antes de cair no chão, um baque ressoou ao atingirem o solo.
ㅡ TIO!
Igor se posicionou sobre a janela enquanto tentava achá-lo na escuridão da rua, seus olhos iam de um lado para outro velozmente. Só então conseguiu identificá-lo em meio a vários sacos de lixo, coberto de sangue e dejetos.
Se apoiando na própria perna, Alonso procurou seu chapéu e ao achá-lo olhou para cima, fazendo um sinal de positivo. Igor suspirou profundamente, o aperto em seu peito cessou ao ver que ele estava bem. Apesar de não gostar do modo de vida do seu tio, ele ainda era seu único parente vivo.
ㅡ Nunca mais faça isso, seu maluco!
Alonso deu uma longa gargalhada, colocou o chapéu na cabeça e limpou a poeira da sua roupa. Eles tinham feito as pazes.
Só então olhou para a semblante preocupado do seu sobrinho e disse: ㅡ Faz as malas, porra! Tá na hora de ir pra escola…
Igor arqueou uma de suas sobrancelhas. A fala de Alonso não fez o mínimo sentido para ele, porém, sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Vindo de seu tio, sabia que boa coisa aquilo não era…