Isekai Corrupt - Capítulo 39
A cidade central enfrentava dias complicados. Uma série de furtos misteriosos começava a assustar os moradores, algo geralmente raro fora da época de festividades do final do ano. As noites tinham ficado tensas, e as ruas, um tanto desertas.
No meio desse turbilhão estava Leny, um dos guardas da cidade, cuja semana havia sido um caos de investigações e chamadas, um caso estranho após o outro, cada qual mais confuso. Ele mal via o sol se pôr, sempre voltando para casa exausto, com a mente ainda presa nas ruas sombrias que patrulhava.
Mas, ao abrir a porta de casa e ver a luz suave das velas iluminando a entrada, o cansaço parecia perder a força. Ainda que exausto, Leny nunca deixava de ir silenciosamente até o quarto de Petra, sua filha.
Observava-a enquanto dormia profundamente, sua respiração tranquila e o rostinho relaxado, as pequenas mãozinhas embaixo do travesseiro. Era como se, por um instante, o mundo fosse um lugar seguro, e tudo estivesse em paz.
Naquela noite, o sono veio rápido, como um convite irresistível para finalmente descansar. Com o coração aquecido pela imagem de sua família, ele se deixou levar pelo cansaço.
De repente, Leny sentiu um peso em seu abdômen e um leve incômodo o despertou. Entreabrindo os olhos, se deparou com duas pequenas mãos pressionando seu peito, e logo um rosto sorridente encheu sua visão.
— Papai! Papai! Acorda! — Petra exclamava, as bochechas rosadas e os olhos brilhando com aquela energia infantil que ele adorava.
Ela tinha subido na cama, pulado em cima dele, e agora estava sentada ali, com a expressão travessa e animada, mal conseguindo segurar a empolgação. Leny riu, levando uma das mãos ao rosto para espantar o sono, mas o cansaço parecia menos pesado com aquela visão.
— Petra… já aprontando logo cedo, hein? — disse, com a voz ainda um pouco rouca. — O que foi agora, mocinha? Está cedo, sabia?
Ela riu, sem dar ouvidos. Seus bracinhos estavam estendidos, puxando-o com insistência.
— Vem, papai! Vem logo pra cozinha! Anda, anda!
Ele suspirou, mas um sorriso teimava em surgir em seu rosto. Como resistir àquela energia? Levantou-se, pegando Petra no colo, e a pequena logo enlaçou os bracinhos em torno do pescoço dele, como se aquele fosse o melhor lugar do mundo.
— E a mamãe, já acordou? — ele perguntou enquanto a carregava até a cozinha.
— Já, já! — Petra confirmou, balançando a cabeça com entusiasmo. — Ela tá lá esperando a gente!
Quando chegaram, Leny encontrou Emília de pé ao lado da mesa, terminando de ajeitar a louça para o café da manhã. Ela ergueu os olhos e, ao ver Leny com Petra no colo, um sorriso calmo e amoroso iluminou seu rosto.
— Bom dia, dorminhoco — ela brincou, erguendo uma sobrancelha.
Leny suspirou teatralmente, fingindo cansaço.
— Bom dia pra você também — respondeu, colocando Petra no chão com carinho. — Tive uma ajudante hoje para me acordar.
Emília riu, e a visão dos dois ao seu lado, da mesa arrumada e da luz da manhã entrando pela janela, fez Leny sentir o coração apertado. A simplicidade daquele momento, o som das risadas, a presença das duas pessoas mais importantes da sua vida… ali, ele tinha tudo o que precisava. Era como se, mesmo com os problemas do lado de fora, o lar fosse um refúgio inabalável.
— Sabe, Emília — ele começou, quase em um sussurro —, depois de uma semana dessas, eu acho que não tem lugar no mundo onde eu prefira estar.
Ela o olhou com compreensão, percebendo o peso na voz dele. Tocou o braço de Leny com uma delicadeza que só ela tinha.
— A gente tá aqui, Leny. Sempre vamos estar aqui.
Ele sorriu de volta, sentindo-se grato. Sim, ali tudo estava bem.
— Papai! Eu ajudei a mamãe a fazer o café da manhã! — anunciou Petra, a voz pequena e empolgada soando como música para Leny.
Ele se abaixou um pouco para ficar na altura dela, observando o brilho de expectativa em seus olhos.
— Ah, é mesmo? Então esse café é especial, hein? — disse, sorrindo enquanto pegava um garfo. Petra estava tão ansiosa que quase segurava a respiração, esperando o veredito do pai.
Leny se sentou à mesa e deu uma garfada no omelete à sua frente. Ao provar, fechou os olhos, fazendo uma expressão exagerada de surpresa e satisfação.
— Nossa… — ele disse, com os olhos arregalados e um sorriso no rosto. — Isso está muito bom mesmo! Parece coisa de chef!
Petra deu uma risadinha orgulhosa, fechando os olhos e levando a mãozinha ao peito, como se já estivesse se imaginando nas capas das revistas.
— Hehehe! Eu sei, papai! Um dia vou ser uma cozinheira famosa, mas muito famosa! Todo mundo vai querer provar a comida que eu faço! — declarou com seriedade, como se já visse o futuro brilhante que estava a sua espera.
Emília, observando a cena com um sorriso, não resistiu e interveio, segurando Petra carinhosamente pelos bracinhos e levantando-a do chão. Com uma leveza que só uma mãe tem, a girou no ar e a pousou em uma cadeira à mesa, bem de frente para o pai.
— Ué, Petra, e a ideia de ser médica? — perguntou Emília, divertindo-se.
Petra piscou os olhos, séria, mas logo abriu um sorriso determinado.
— Isso era antes, mamãe! Agora quero ser cozinheira. E uma bem famosa! — afirmou, cruzando os bracinhos com firmeza.
Emília levou a mão à boca para disfarçar a risada, e Leny também deixou escapar uma risada baixa, incapaz de conter a ternura que aquela cena trazia. Ele estendeu a mão e fez um carinho nos cabelos da filha, sentindo o calor daquela pequena vida por quem faria qualquer coisa.
— E você pode, minha pequena — disse ele, a voz cheia de uma firmeza carinhosa. — Pode ser o que quiser.
Ele se permitiu um momento de silêncio, observando Petra e Emília. Um desejo profundo e solene crescia dentro dele. Ter uma família era algo que sempre sonhara, algo que fora cruelmente arrancado quando ele era apenas um garoto. Seus pais faleceram cedo demais, e ele crescera sem a proteção e o amor que agora tentava dar a Petra com todas as forças.
Leny respirou fundo, um leve aperto no peito. Ele jamais deixaria que Petra sentisse a solidão que ele conhecera tão bem. Aquilo que tanto desejara quando criança — o amor, o cuidado, a segurança — ele faria questão de dar a ela, cada segundo, cada sorriso, cada palavra de apoio. Ele seria tudo o que sempre quis para si, só que agora, para sua pequena Petra.
E ao olhar para Emília e Petra ali, com a luz do sol entrando pela janela, ele sentiu uma profunda paz.
Depois de tomar o café da manhã junto da família, Leny se levantou e foi até o quarto pegar o uniforme. Ao se vestir e sair do quarto, parou por um instante à porta, observando a cena na cozinha. Petra estava empoleirada em uma cadeira, esticando-se para ajudar Emília a retirar os pratos da mesa, com aquela expressão séria de quem quer ser útil. Ele sorriu sozinho.
Minha filhinha é a coisa mais fofa e gentil do mundo… e eu não vou deixar ninguém tirá-la de mim! Podem tentar, garotos…
Sabia que soava meio hipócrita, especialmente considerando o que ele mesmo fizera com a filha de outro pai quando decidiu se casar com Emília. Mas Leny não sentia nem um pingo de remorso. Se algum garoto chegasse perto de Petra, ele não hesitaria em espantá-lo a qualquer custo.
Agora entendo você, sogrão…
Ele se aproximou e despediu-se da esposa e da filha com um abraço caloroso e beijos, como se quisesse levar consigo um pouco daquela paz. Petra deu-lhe um último abraço apertado, e ele saiu de casa sentindo o coração mais leve.
Quando chegou ao departamento, avistou alguns colegas e cumprimentou-os com um aceno amigável. Dirigiu-se ao vestiário, onde se prepararia para mais um longo dia de trabalho.
— Opa, Leny! Bom dia! — cumprimentou Igor, um colega sem camisa, que estava terminando de se trocar.
Leny retribuiu o cumprimento com um aperto de mão firme.
— Bom dia, Igor! E aí, como está sua filha? — perguntou, inocentemente.
Ele sabia exatamente o que estava fazendo. Estava pescando a chance perfeita para falar sobre Petra.
— Ah, ela está bem! Cresceu bastante, já está ficando enorme! E a sua? Como ela está?
A pergunta caiu como uma luva, e Leny tentou disfarçar o sorriso vitorioso. Era tudo o que ele queria, a oportunidade de se gabar um pouco.
— Ah, cara… você precisa ver a Petra! Ela é uma verdadeira ajudante, acorda com toda essa energia e já quer colocar a mão na massa com a mãe. E hoje ainda fez uma omelete quase sozinha! Tá ficando uma mocinha, um orgulho — disse, com um sorriso largo, já começando a abrir a “galeria” de histórias sobre a filha na cabeça.
Leny ficou mais alguns minutos falando sobre Petra, sua filha. A cada palavra, seus olhos brilhavam, e nem por um instante ele achou que estava perdendo tempo. Finalmente, Igor interrompeu, como se já tivesse adivinhado o que viria em seguida.
— Mas e aí, você realmente deixou a vida de aventureiro para trás? Vai ficar só como guarda agora?
Leny deu de ombros, soltando um suspiro que carregava o peso de decisões passadas.
— Acho que me aposentei cedo, sim.
Não foi uma decisão fácil. Leny era um aventureiro de rank 7, uma posição respeitável que havia custado anos de treino, suor e cicatrizes. Ele sempre teve talento para aquilo, e sua fama estava em ascensão. Mas as coisas mudaram quando Emília, então sua namorada, anunciou que estava grávida. Foi ali que os pesadelos começaram — visões de sua filha crescendo sem ele, a dor de deixá-la órfã. Ele sabia o que era crescer sem pais, e o pensamento de Petra passando por isso era insuportável.
Eu amava ser aventureiro, mas esse medo… Esse medo de morrer começou a se entranhar em mim, pensou.
E, mesmo amando a vida de aventuras, a decisão parecia óbvia. Se quisesse estar presente, assistir ao crescimento da filha e protegê-la como ele nunca foi protegido, precisava escolher uma nova vida, mais segura. Desde então, ele trabalhava como guarda na cidade central, onde os perigos raramente eram letais. Às vezes investigava algum mistério mais intrigante, mas tudo ali era bem menos arriscado do que o mundo selvagem além das muralhas.
— Vida de aventureiro é… complicada, para dizer o mínimo. — Leny hesitou, as memórias do passado ainda vívidas na mente. — Sair das muralhas, sem saber se vai conseguir voltar para casa depois. Lá fora, tudo é imprevisível. Monstros, feras, emboscadas… A sensação de que qualquer passo em falso pode ser o último.
Igor, que o ouvia atentamente, acenou com a cabeça, absorvendo cada palavra.
— Então, foi o medo de morrer e deixar sua família, não foi?
Leny soltou uma risada breve, balançando a cabeça.
— Me leu fácil assim? — disse ele, rindo junto com o amigo.
Eles riram juntos por um momento, mas então Igor ficou sério.
— Como marido e pai, acho que você fez a escolha certa.
Leny ficou surpreso. Desde que abandonara a carreira de aventureiro, muitos colegas o taxaram de covarde. Mesmo aqueles com família continuavam na vida perigosa, impulsionados por sonhos ou por uma sede insaciável de adrenalina.
Ele entendia o sentimento, sabia o quanto aquela vida atraía. Mas, por mais que as críticas tivessem mexido com ele, Leny mantinha a certeza de que havia feito a escolha correta.
— Eu faria tudo de novo — confessou, baixando o olhar, como se aquelas palavras fossem uma promessa silenciosa. — Nenhum tesouro ou glória do mundo vale mais do que voltar para casa e ver a minha filha dormindo em paz.
Leny subiu as escadas com passos firmes, o peso confortável da espada em sua cintura e a determinação marcada no rosto. Ele mal tinha começado o turno e já sentia a familiar serenidade de estar à beira da muralha. Mas, no meio do caminho, seu olhar cruzou com o do capitão da guarda, Bell Cryan. A figura robusta e imponente de Bell, com seus anos de serviço e um olhar afiado, transmitia uma autoridade que fazia qualquer um hesitar.
— Leny! — A voz do capitão cortou o silêncio, firme como o aço.
Surpreso, Leny parou no meio do corredor. Imediatamente, levou a mão à testa em continência e, em seguida, se curvou numa reverência respeitosa. No papel de um guarda, era sua obrigação saudar alguém de uma patente tão alta, mas a reverência vinha de um respeito pessoal — Bell Cryan era uma lenda entre os guardas, um homem com um passado glorioso no reino de ÉterNova. Ele carregava consigo uma história que exigia deferência de todos que cruzavam seu caminho.
— Descansar, Leny. Não precisa de toda essa formalidade comigo — disse o capitão, com uma expressão de leve cansaço que suavizava sua postura rígida.
— O senhor continua modesto, capitão. — Leny esboçou um leve sorriso.
Mas Bell permaneceu sério, um brilho de hesitação em seus olhos como se algo pesado estivesse preso em sua garganta.
— Leny, venha comigo. — A ordem, quase murmurada, era firme.
— M-mas, capitão… eu estou escalado para vigiar a muralha agora.
— Deixe isso pra lá. Venha.
O peso das palavras do capitão deixou Leny inquieto. Ele seguiu Bell por corredores menos movimentados, cruzando por algumas salas fechadas e finalmente entrando em uma pequena sala reservada ao capitão. No interior, havia prateleiras lotadas de livros antigos, velhos artigos de guerra, mapas amarelados espalhados e pilhas de documentos, revelando a vida minuciosa e de longa data do capitão. As paredes, nuas e frias, só intensificavam o silêncio pesado.
Leny parou próximo à porta, de peito estufado e o olhar atento, esperando instruções. Bell se aproximou de sua mesa, abriu uma gaveta com cuidado e puxou um envelope surrado, colocando-o sobre a mesa com um gesto breve.
— Por que ainda está parado aí? Chegue mais perto. — A voz de Bell era baixa, mas carregava uma urgência que Leny não ousou ignorar.
— Ah… Sim, desculpe, capitão. — Ele avançou alguns passos, observando a expressão de Bell, que agora se tornava uma máscara de seriedade absoluta.
Bell então fechou a porta atrás deles, prendendo o som abafado de seus passos. Ao retornar à mesa, ele pegou o envelope e o arremessou para Leny com uma precisão calculada. Leny quase o deixou cair, o coração batendo forte.
— O que… o que é isso? — perguntou, olhando para o capitão em busca de alguma pista.
— Leia. E que isso fique entre nós. Ninguém mais deve saber, compreendeu? — A voz grave de Bell parecia carregar um peso sombrio, e seu olhar não admitia questionamentos.
— C-certo…
Com as mãos ligeiramente trêmulas, Leny deslizou o dedo pelo selo do envelope, sentindo a textura áspera do papel que continha, de alguma forma, um aviso sombrio. Ele inspirou fundo e começou a abrir a carta, enquanto um desconforto crescia em seu peito. O papel estava amassado, e as letras, escritas à mão, transmitiam uma urgência que não deixava espaço para dúvidas.
“Um ser poderoso irá atacar a cidade central amanhã. A hora exata é incerta, mas o ataque é inevitável. Assim que avistarem o sinal de fumaça nos céus, retire imediatamente todas as mulheres e crianças da cidade.”
As palavras dançaram diante dos olhos de Leny enquanto ele lia e relia, cada frase deixando um peso crescente sobre seus ombros. O papel amassou em seus punhos, quase rasgando sob a força com que o segurava, e ele ergueu o olhar para o capitão, seus olhos arregalados e cheios de incredulidade.
— Isso… isso é sério, capitão? — Sua voz saiu como um sussurro, quase engasgada, enquanto ele tentava processar o horror silencioso que aquelas palavras carregavam.
O capitão Bell o encarou de volta, com uma expressão sombria e dura, os olhos profundos como poços de preocupação. Seu rosto, marcado pelo tempo e batalhas, agora revelava a gravidade da situação. Ele assentiu lentamente, a tensão na sua voz pesando como uma pedra.
— Entendeu agora, Leny? Não há tempo para hesitar.