Lovecraft Rio - Novela
O Despertar em Fernando de Noronha:
“Uma das maiores bênçãos do mundo, creio eu, é a incapacidade da mente humana em correlacionar todos os seus conhecimentos.”
Howard Phillips Lovecraft
I. Visões:
Todas as noites, ela tinha visões. Sonhos perturbados onde o sal do mar e as lágrimas de um trauma passado abraçavam–na e arrastavam–na para as entranhas de sua alma, e lá, Juliana sentia que Deus estava a fitá–la, porém, Ele estava longe de ser a sua salvação, e como sempre, quando estava para Vê–lo, acordava.
As primeiras manchas alaranjadas percorriam o céu pela moldura da janela, e o canto dos bem–te–vis perambulando pelo jardinzinho do quintal fazia o que o Samsung não conseguia. Correra o vidro, deixando a brisa percorrer a camisola e sentindo uma pontada de ânimo ao ver o vira–lata Foguinho a caçar os pássaros que bicavam o chão. Após falhar em sua empreitada, o cachorrinho percebeu–a:
– Au, au.
E ela respondera–lhe:
– Au, au, bom dia, Foguinho!
Deixou–se respirar por algum tempo e foi em direção ao chuveiro. Fez a camisola deslizar corpo abaixo e girara a maçaneta para as comportas da ducha, que, nas primeiras gotículas a encontrarem–lhe a face, fê–la expirar de alívio, visto que as noites de verão não tinham sido intervaladas pelas chuvas de fim de ano. Depois, secara–se e escovara os dentes, tomando cuidado para que a espuma da escova não sujassem–lhe os fios ondulados dependurados enquanto enxaguava a boca. Dera um sorriso para constatar se estavam limpos. Estavam, um sorriso contrastante ao rosto negro, os olhos de um castanho profundo a brilhar com o reflexo da luz no espelho.
Colocaria uma música pra tocar enquanto vestia–se. Djavan? Não, hoje não tô nesse clima… Charlie Brown? Não, muito meloso… Uma coisa pra animar, mas que seja no ritmo certo… já sei… a barra de pesquisa do YouTube completara o pensamento que surgira–lhe como uma luva, e os primeiros sons de “Supercombo” começaram a surgir… enquanto cantava o refrão de “Piloto Automático”, colocou ração pro cachorrinho que mais parecia um esfomeado e preparava para si mesma um sanduíche natural.
Fez o café. Ela gostava dele bem forte, os cheiros invadindo a salinha da cozinha e aromatizando a manhã com energia. Ela fora ao escritório pegar a papelada para a próxima aula… os títulos vergonhosos dos trabalhos dos alunos da pós–graduação adiantavam o tormento que eram–lhe os finais de semestre. Gente, fazer um artigo científico sobre o impacto cultural na metodologia de ensino sobre história é tão difícil assim? Recolhera também o notebook, cheio de figurinhas cobrindo a parte detrás. Ela era dessas. Seus livros favoritos, suas séries televisivas, enfim, tudo. Um chapeuzinho do Walter White, uma espada longa encrustada com os ditos “O Inverno está chegando”, assim como os clássicos, como um busto de Machado de Assis, e Guimarães Rosa… e lá no meio… as histórias favoritas dela, pois remetiam à sua adolescência, aquele cujos contos de horror que passavam–se no Egito fizeram–na interessar–se sobre história e antropologia, e também aquela novela… onde o professor investiga os acontecimentos da mansão de Charles Dexter Ward… e também tinha a bruxa, os ratos… estampado ali para lembrá–la dos momentos bons. Será que era idiota por gostar das histórias de um autor tão… tão racista? Ainda mais ela? Querendo ou não, o busto estilizado de HP Lovecraft ainda encontrava–se ali.
Pegara a bolsa e as chaves de casa e do carro; vira se a jaqueta e a calça jeans estavam apropriadas. Estavam sim. E partira para mais um dia de trabalho, as ruazinhas de Cidade Praiana começavam a agitar–se, e tão logo ela encontrara–se na pista partira para a universidade. A manhã contagiante atravessava a janela lateral, e o sol litorâneo banhava o asfalto percorrendo o centro, os quiosques e as lojinhas de início de manhã.
Chegando ao estacionamento da universidade, Juliana saíra do carro e encaminhara–se para a sala dos professores. Após preparar o seminário, fora em direção à sala de aula, ministrar assim seus cursos sobre o período Paleolítico. Os alunos receberam–na bem, e mais parecia uma universitária do que uma professora; conseguia dissertar sobre o tema quase como se estivesse em uma conversa de boteco, mas, em meio às piadas e ao barulho das canetas correndo o papel, tomando notas sobre o tema abordado, Juliana também parecia tomar nota de um homem em específico que chamara–lhe a atenção.
Terminada a aula, enquanto os alunos retiravam–se para outra sala, num auditório onde teriam outra palestra, aquele sujeito de feições pálidas e austero, vestido em um paletó e cujo perfume estranhamente soava–lhe familiar, aproximara–se dela, dizendo–lhe em forte sotaque inglês:
– Com licença, você é a senhorita Juliana Mendes da Cunha?
– Sou sim, e você…
De repente, a feição assumira um tom de urgência:
– Sou Howard Raynold Duncan, um pesquisador que muito tem interesse em sua pessoa, mais precisamente, seu artigo ‘Dos efeitos históricos da apropriação de templos das tribos indígenas no Amazonas’…
– Fico feliz pelo reconhecimento… mas, se me permite, por que o artigo…
– Eu gostaria que visse isso…
Então, estendendo–lhe uma fotografia de uma região tropical, onde algum sujeito de semblante humilde carregava uma estatueta, perguntou–lhe:
– Conhece o sujeito dessa foto?
– Sim, era um amigo de longa data… Janderson… o que tem ele?
– Esse sujeito cometera suicídio há algumas semanas.
Ela riu. Não podia ser verdade. Sentara–se na cadeira e olhara–o de cima a baixo:
– Escute, se isso for uma brincadeira de mal gosto…
– Não é… ele era um companheiro de uma… assim… eu não sei explicar direito, fala inglês?
– Sim.
Então, mudando o idioma da conversa, ele prosseguiu:
– Fazemos parte de uma organização de acadêmicos, há alguns indícios de fontes confiáveis de que este estado tem passado por inúmeros registros suspeitos e que levantara nossa desconfiança. Janderson, como bem deve saber, residia em Natal, e atuava como intermediador de nossas empreitadas, visto que acreditávamos estarmos muito próximos de nosso destino final.
– E qual seria ele?
– Na carta que ele enviara a mim, dissera–me que a constatação era verdadeira, e que um mau muito antigo estava à nossa espera. O Brasil é o ponto de transmutação, junto ao Egito, que mais possui indício dessas conexões, e acreditamos que você possa ser uma pessoa de confiança.
Como ela poderia acreditar em todas aquelas informações vindas de um gringo qualquer que mais parecia um falastrão, inventando calúnias para com um colega e tentando levar vantagem em qualquer coisa? Juliana já preparava–se para inventar uma desculpa quando Howard indagara–lhe:
– Você também sonha com ele… não é?
Ela parou na porta, de costas. Ele, não satisfeito, continuou:
– Sonha que está afogando–se… vê aqueles olhos esverdeados.
Ele tinha a sua atenção. Virando–se, exortou:
– Como sabe disso?
– Por que você foi escolhida.
– Por quem?
– Por Janderson.
– Do que está falando?
– Já estamos perdendo tempo. Escute, não posso divulgar informações para qualquer um, mas se quiser saber a verdade sobre seus pesadelos, diga–me agora, ou nunca mais verá o meu rosto ou saberá de algo.
Ela permanecera em silêncio. Sua vida corria tranquilamente, tinha um emprego fixo, gostava de seu trabalho, da convivência com os pais, os amigos, ainda assim, alguma coisa naqueles sonhos faziam–na sentir–se solitária, ansiando por alguma mudança. Depois de alguns minutos refletindo e ponderando, ela respondeu–lhe:
– Está bem.
II. O Pesquisador Excêntrico:
O orvalho matutino banhava o jardim do Hotel Vilarejo, e o mar agitado que aos poucos carcomia as encostas da costa litorânea também regurgitava a incerteza de Juliana. Chegara ali há uns poucos minutos, e Howard levara–lhe a um quarto recluso ao final de um extenso corredor. Lá, dois sujeitos, um homem moreno que apresentava ser brasileiro, o outro, um senhor de idade cuja barba farfalhava com a brisa e cujo rosto pálido e cinzento assemelhava–se em muito ao homem que acompanhava, receberam–na cordialmente:
– Senhorita Juliana, gostaria de entrar? – o velho senhor perguntara.
Ela assentiu, e quando entrara no cômodo, diversas papeladas estavam dispostas ao longo de uma escrivaninha e muitas fotografias estavam espalhadas pela cama. Ela disse–lhes, quando todos portaram–se diante de si:
– Poderiam me explicar o que está acontecendo?
O velho estendera a mão, bem como, logo depois, o sujeito ao lado:
– Sou o senhor Arnold Brian Brandon, mas pode me chamar de Arnold. – a barba parecia mexer–se sozinha.
– E eu sou o Renan Gonçalves da Silva, apenas Renan está bem para mim. Importa–se se falarmos em inglês?
– Nem um pouco? – ela respondera.
– Ótimo. – o velho senhor, indo de encontro a uma gaveta e pegando um monóculo que remetia aos tempos vitorianos, começara: – Quais são suas dúvidas, senhorita?
– Primeiro, por que me chamaram aqui?
– Direto ao ponto, gostei dela. Janderson, um amigo nosso e seu, escolheu–a para sucedê–lo numa empreitada que pode simplesmente pôr em risco a humanidade.
– Como assim?
– És acadêmica, não? Pois então, deve conhecer os artigos que Janderson trabalhara, como ‘Dos mares e dos nativos: a relação de povos nordestinos e como a cultura afrodescendente influencia as grandes cidades’.
– Sim, já fizemos pesquisas junto, ele é um bom antropólogo.
– Era. Recentemente cometera suicídio e dedicara uma carta a nossa instituição, citando seu nome como um particípio para tempos vindouros, visto que encontravam–se no mesmo lugar, em Arraial do Cabo, quando houvera a queda do meteorito.
Caren lembrava–se de ver um brilho escarlate cortando o céu enquanto estava no Pontal do Atalaia; centenas de moradores partiram para a ilha ver o que aquilo poderia significar, o mais estranho, no entanto, era que lá já caíra um meteorito antes. A coisa brilhava em estranhos tons de roxo, mas a polícia fechara o local e coletara o objeto para análise e catalogação. Ainda assim, não conseguia enxergar a relação:
– O que uma coisa tem a ver com a outra?
– Esses meteoritos são extremamente perigosos, pois nada mais são do que sensores do inominável.
O rapaz moreno prosseguira–lhe:
– Arnold é um tanto compulsivo com objetos estelares, por assim dizer, mas constatamos a queda de quarenta e cinco desses ao longo dos últimos cinco anos, sendo que quinze deles foram aqui, no Rio de Janeiro, outros dez caíram ao longo de Amazonas, e o restante caíra ao longo de Pernambuco. O que acontece é que estes meteoritos têm uma capacidade de controle… olha, antes de eu explicar, preciso perguntar algo a você…
Ela estava a cada vírgula mais confusa, dando tudo de si para creditar algo naquela teoria conspiratória:
– Pode perguntar…
– Você acredita em alienígenas?
Depois de um silêncio que varrera o quarto por um segundo, a brisa salina passando pelas venezianas entreabertas, ela disse–lhe:
– Não descarto a possibilidade, mas eu acho que sim…
Foi o velho que disse–lhe:
– Ótimo, recomendo que não descarte nem essa nem outras várias possibilidades, pois acredite, sua vida não será a mesma.
Juliana sentira um frio percorrendo sua espinha, enquanto Renan continuara–lhe:
– Estes meteoritos têm a capacidade de alterar, através de uma radiação desconhecida, o autocontrole de algumas pessoas, e diversos casos de acessos de pânico foram constatados no Rio ao longo dos últimos anos. Porém, e mais importante, o meteorito é um catalisador…
– Catalisador do quê?
– Uma energia que não cabe a nós explicá–la, pelo menos não nesse momento. Quando o objeto cai, algum tipo de esporo impregna o ar ao redor do ponto da queda, e aqueles que inspiram esse ar são infectados…
– Está me dizendo que eu peguei alguma doença? Escutem, eu não sei o que…
– Deixe–me continuar, por favor. Ela não afeta–lhe diretamente ainda, mas permite dotá–la de um sentido esquecido, cujo nome não pronunciaremos. Você, junto a Janderson e alguns outros afortunados, despertaram uma espécie de radar neurológico para encontrar os meteoritos, e não somente isso, com os instrumentos certos, também poderá ajudar–nos a localizar…
– Localizar o quê!?
– Ele, o mesmo que vê em seus sonhos. Mas não acho que vá acreditar…
Howard, que estava sentado à cama fumando um charuto e observando as fotografias, disse–lhe:
– Propomos a você uma soma de quatro mil dólares de recompensa se ajudar–nos, se as teorias que a você soam como charlatanismo não forem suficientes, o dinheiro pode ser. Precisamos da sua ajuda.
– Eu ainda não faço a mínima ideia em qual coisa eu ajudaria.
– Você vai saber logo, logo.
III. O Meteorito:
Juliana sentia o vento abraçando–a através da janela do carro enquanto Arnold dizia–lhe:
– O local para onde vamos agora, senhorita Juliana, é onde poderá constatar aquilo que tentamos dizer–lhe há algum tempo.
Tinham atravessado Cabo Frio pela estrada principal e as primeiras praias adjacentes inundavam à vista, bem como traziam a sensação de que não estava indo para nada além de alguma armadilha que procuraria manchar sua reputação no meio acadêmico. Porém, quando atravessaram uma estrada remota por capinzais interioranos onde vacas e bois perambulavam por montes, a relva do terreno irregular também abrira espaço para uma casinha de veraneio cuja varanda parecia que tombaria a qualquer momento, e um leve sereno assentava–se por entre os capões de alguns carvalhos, fazendo com que mais parecessem estar no interior de Minas do que no Rio.
Saindo do carro, o barulho de seus passos sobre o cascalho e a terra batida confundiu–se com o sibilar do vento que trazia uma frente fria. A barba do velho senhor farfalhava, enquanto Renan e Howard andavam lado a lado, como austeros soldados da cavalaria britânica, e no meio disso tudo, lá estava ela.
Os degraus rangeram quando chegaram à porta, e ela perguntou:
– Tem alguém aqui?
– Bom. – o velho arrastava a sola de seus sapatos polidos, limpando a terra úmida e retirando as chaves. – essa é a casa de um velho padre e muito amigo nosso, um espanhol chamado ‘Don Castillo’, mas acho que ele não encontra–se aqui… de qualquer forma – ele girara a chave na fechadura e escancarara a porta – acho que podemos continuar sem ele, por agora.
Então, com aquele jeito britânico, ele estendera a mão para ela, que entrara no hall silencioso e com estranha aparência mórbida. Ainda desconfiava deles, mas tinha ligado pro pai (um policial civil) e um amigo, falando sobre aonde iria e com quem estava, além do mais, se fosse preciso, ela saberia defender–se. Mas não foi necessário.
O assoalho navegava na penumbra por um tapete meio acabado, porém, um cheiro de alecrim percorria o interior da casinha. Ao lado, algumas cerâmicas e pratinhos de vidro estavam espalhados na mesa de uma cozinha humilde, mas cheirosa. Numa sala de estar, ela pudera ver um canapé balançando com a brisa proveniente da porta que há pouco abrira, e por um momento achara que ali poderia estar sentado um fantasma.
Quando eles penduraram o paletó atrás da porta, foram de encontro a sala, onde ela encontrava–se; lá, em uma maleta branca como a lua, o cinza do céu entrava por uma janela lateral e rebrilhava em seus olhos. Ela perguntara:
– O que é isso?
Arnold, com aquele jeito excêntrico dele, aproximara–se com instrumentos de medição cardíaca, dizendo–lhe:
– Ali, cara Juliana, encontra–se o objeto de nosso propósito, e é dele que saberemos onde deveremos encontrar nossos adversários.
Howard aproximara–se:
– Acho melhor elucidar–lhe algumas instruções, visto que tenho formação em parapsicologia: para constatar a prova do que dissemos, você também deverá entrar em um estado de transe muito comum em sessões de hipnose, mas eu preciso alertá–la de que não tente buscar nada propriamente, finja ser o vento.
Ela, sentindo um estranho calafrio, assentira, enquanto aqueles eletrodos eram–lhe posicionados. Renan aproximara–se da caixa:
– Assim que eu abri–la, você deverá ver um brilho muito forte, não se preocupe, é normal. Estaremos aqui durante todo o processo.
Então, como se um abrigo nuclear fosse aberto, escancarando as escotilhas do inimaginável, ela vira um objeto escamoso retorcendo o próprio espectro de cores, formando ângulos não–euclidianos e chamando–a. O brilho transformara–se em uma visão, a visão de uma cidade grotesca, assentada nos oceanos infindáveis de algum sistema solar esquecido, e por entre eles, ela pudera jurar que algum submarino viajava, não embaixo, na água (se é que aquilo era água), mas no céu nebuloso, por entre nuvens tempestuosas desconhecidas, então, ela vira como em um filme.
Indígenas reuniam–se ao redor de alguma pira e enalteciam crianças ignominiosas, enquanto tribos tentavam batalhar com criaturas que mais assemelhavam–se a sapos. Ela também vira uma costa litorânea; vira as pessoas vendo ao longe naus de viagem aproximando–se; vira um homem em veludo europeu aproximando–se da terra.
Vira mais e mais homens brancos aproximando–se com negros acorrentados, e também vira alguns deles rezando não para os céus cristãos ou católicos, ou de umbanda ou candomblé, mas para algum deus esquecido, e dos homens brancos, vira também alguns capitães e marechais cujos braços e olhos mais pareciam de peixe.
Depois, vira cidades crescendo, pessoas envelhecendo, vira tudo isso enterrando terrores inesquecíveis, e também vira uma larga ilha, e abaixo dela, um monumento. Então um grupo de sombras parecia levantar raios ao céu tempestuoso, e lá embaixo, ela fitara olhos de esmeralda. Um pescador alucinado subia em seu barquinho e começava a navegar para longe, e no casco de seu veículo ela enxergara… Fernando de Noronha? Então, aquela gigantesca criatura pareceu puxá–la, ela sentira–se afogar. Para somente então gritar e ser acudida por Howard e Renan, enquanto Arnold, embasbacado, dizia–lhe:
– Fascinante! Então, Juliana, agora acredita em nós?
Um nó parecia estar atado à sua garganta, e ela nunca tivera tanto medo em estar errada:
– Sim, acredito.
Renan disse–lhe:
– Conseguiu achar o local?
– Sim, consegui.
Todos ficaram de pé diante dela, enquanto ela bebia um copo d’água e quase engasgava com o pavor, para somente então dizer–lhes:
– Ele está em Fernando de Noronha.
– SABIA! – o velho barbudo quase chutara a mesinha onde os instrumentos encontravam–se, enquanto os outros respiravam de alívio.
– Sabia? Mas, mesmo assim… – ela continuava confusa. – como vai enfrentar Aquilo? Não tem nada que consegue vencer…
– Aí você se engana, cara Juliana. – ele aproximara–se de si. – o velho padre que conhecemos, digamos que ele também conhece pregações e anjos esquecidos, e é para lá que nós vamos.
IV. Na Casa de Deus:
Uma vela tremeluzia à frente do busto de Nossa Senhora Aparecida, e, encarando aquele cândido rosto, um velho careca de olhos escuros como o breu juntava as mãos em prece, enquanto ouvia passos vindouros às suas costas:
– Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, amém.
Virou–se, e Juliana vira um homem que parecia na casa dos quarenta, de porte esbelto e com algumas rugas nos cantos dos olhos, fitando–a com um soslaio curioso, dizendo–lhes:
– Então, finalmente acharam a abençoada.
O velho Arnold dissera–lhe:
– Sim, Don Castillo, esta é Juliana..
Estendendo as mãos um para o outro, ela sentira de novo algo familiar no semblante daquele sujeito, mas deixara o pensamento em silêncio, ao invés disso, disse–lhe:
– É um prazer conhecê–lo, padre.
– O prazer é todo meu. Agora, se me permite, conseguiram encontrar o local de expurgo?
Ela parecia confusa, mas Renan respondera–o:
– É melhor preparar as malas, padre, e prepare também seu Crucifixo, pois vamos para Natal.
Resoluto, ele disse:
– Excelente, o mau se aproxima, e estamos perdendo tempo aqui.
V. Viagem para Natal:
Os preparativos foram feitos ao longo daquele dia. Largas malas eram depositadas sistematicamente em bagagens com catálogos fixos. Também haviam contratado um motorista particular que viajaria de carro até o nordeste. Curiosa, ela perguntara:
– Por que ele não pode entrar com as bagagens no avião?
Foi Renan quem respondera–lhe:
– Por que algumas de nossas malas tem itens comprometedores, e não queremos perder tempo com a legislação.
Também tiveram mais tempo para conhecer–se, e Juliana pedira à mãe para abastecer Foguinho com água e comida todos os dias. Preparou seus itens para a viagem do próximo dia, e conseguira arranjar um atestado médico para tirar uma semana de folga. O que Juliana não sabia, era que aquela poderia ser a última semana de sua vida.
VI. Ajuda Grotesca:
Haviam chegado à Natal há dois dias, e ao longo desse tempo mais alguns contatos daquela estranha organização foram–lhe apresentados, pelo menos de modo superficial. Já haviam encontrado um local próximo da costa litorânea que Don Castillo insistia em que deveriam ir antes de estarem prontos.
Os dias estavam cada vez mais nublados, o céu parecia cobrir–se com um tapete à medida que as semanas prosseguiam, e o noticiário relatava vários casos de tiroteios em massa e acessos de pânico de multidões nas regiões litorâneas. Quando as malas chegaram, ela vira a verdadeira identidade de Don Castillo, pois carregava consigo tantas armas e poções e objetos astronômicos imemoriais que mais parecia um necromante.
Enquanto direcionavam–se a uma prainha deserta no começo de uma madrugada de maré agitada, Don Castillo entoara palavras esquecidas junto a eles, que fizeram–nos de repente sentir muito frio. O padre dissera–lhes:
– Às vezes, para servir a Deus, temos de servir ao Inimigo.
– O que quer dizer com isso? – Juliana observava aqueles olhos que pareciam ter vivido muitos terrores no passado.
– Logo você entenderá.
Então, enquanto o grupo postava–se diante de uma baía esquecida em meio a um matagal, eles puderam ver o padre preparando braseiros e jogando neles poções com cheiros fétidos de carniça, e entoando palavras que pareciam árabe arcaico.
Após algumas horas eles seguraram suas armas com mais força, pois das águas ao longe, onde a lua banhava–se no reflexo infindo, eles viram criaturas emergir. Caren exortara:
– Meu deus, o que é aquilo?
– Explicamos depois. – Arnold estava fitando–nos com um medo sublime.
O padre aproximara–se da maré, e junto as criaturas que mais pareciam seres com cara de sapo, portando tridentes, começavam a soar gritos e agitações enquanto o padre parecia gesticular. Pareciam–lhes estar negociando, e fizeram–no por horas, pois quando voltara, o homem disse–lhes:
– Eles vão tentar matar a bruxa do tempo, é mais arriscado, mas é nossa única chance. Já devem estar se reunindo na ilha.
– E o que você ofereceu a eles? – Juliana perguntara.
O velho encarara–a com um silêncio sepulcral, para somente então dizer enquanto eles voltavam para o fundo das águas:
– É melhor não saber.
VII. O Culto à Cthulhu:
As águas estavam agitadas no escuna em que encontravam–se. Estavam indo para a larga ilha e os mares tempestuosos faziam o pescador que estava com eles reclamar e fazer preces silenciosas. Estavam carregando pistolas consigo, e livros e objetos estranhos; a única coisa que fez com que eles conseguissem a carona foi o fato de o padre ser persuasivo com aquele velho senhor. O velho disse–lhes:
– Pode ser tarde demais, senhores, mas que Deus abençoe–nos.
Haviam formado um plano antes de partirem há poucos dias: aqueles homens sapos criariam um ponto de distração enquanto eles adentrassem em um mirante esquecido e tentassem impedir o ritual. As águas remexiam–se loucamente enquanto eles saltavam do barco e começavam sua corrida, ouvindo, ao longe, o barulho de gritos inumanos e cânticos tenebrosos pela natureza tropical. O padre engatilhou seu revólver:
– Como treinamos, senhores.
Benzera cada uma das pistolas enquanto avançavam mata acima, um estranho sirenar parecia navegar pela maré agitada, enquanto podiam ouvir o barulho de disparos ao avançarem na trilha tortuosa do matagal. Percorreram a densa vegetação até verem largos archotes dispostos ao longo de uma trilha de pedras sinuosa pelo ermo, e lá na frente, soldados paramilitares com feições meio escamosas trocavam tiros enquanto uma velha parecia arrastar–se por fendas desconhecidas.
Seus corações palpitavam enquanto tentavam ter uma melhor posição de disparo. Respiraram fundo. Com uma sincronia surpreendente, eles começaram a disparar naquele imenso círculo cujo fogo escarlate alçava–se ao céu e parecia dançar junto às trovoadas, enquanto, lá longe, ela podia jurar que uma lua verde brilhava sob as águas. O padre mais parecia um general templário:
– Morram, hereges!
Todos disparavam, e outras criaturas pareceram surgir na mata; eles avançaram por caixotes e muradas enquanto baleavam os monstros tentaculosos e o padre usava uma espécie de candro que parecia queimar–lhe as carnes. O velho disse a ela:
– Juliana, somente você pode impedir o ritual, tá vendo aquela torre lá?
Ela via um pedaço de concreto despontando sobre as árvores, e lá parecia haver um brilho, porém, corria ali um forte córrego de algum afluente sobre um passadiço frágil.
– Eu tô vendo!
O padre aproximara–se:
– Aqui, leve este medalhão, e que o Espírito Santo abençoe–lhe, pois as portas do inferno estão se abrindo, e cabe a você fechá–las. Corra e impeça–os!
Ela queria perguntá–los como faria aquilo; o plano original envolvia apenas uma cobertura. Mas tudo acontecera rápido demais. Então, atravessando o caos, enquanto todos ao redor pareciam desesperados de medo e de raiva, ela sentira os pés falharem, e as ripas do passadiço deixaram–lhe cair nas águas geladas, e tudo pareceu ficar escuro.
VIII. O Almirante Espacial:
De repente, enquanto bolhas de ar pareciam subir em direção ao céu, ela viu navegando através de águas imemoriais um submarino cuja carcaça reluzia runas e hieróglifos bizarros, e um almirante pareceu acudi–la na maré do espacial, com uma voz imponente a dizer–lhe:
– Você precisa emergir, tudo depende de você.
Ela estava afundando, então, uma âncora fora–lhe lançada, e ela agarrou–se:
– Quem é você?
– Sou um capitão que tem o poder de destruir Ele, mas somente se você me permitir.
– E como eu faço isso?
A voz dele parecia estar longe, de repente:
– Impeça o ritual.
Como se um véu partisse–se na imensidão, ela tossira um jato d’água, pois agora estava na margem. A pistola ainda encontrava–se, e o medalhão também. É agora ou nunca, pensou enquanto subia o caminho pela mata até a torre escarlate.
IX. Ritual:
Seus passos cansados atravessavam as folhas caídas, até que Juliana apoiara–se em um tronco para tomar um pouco de fôlego. Olhara para o mar, e lá, vira tentáculos gigantescos emergindo como torres esquecidas. Continuou a correr até o portal da torre, onde homens com caras de polvo observavam—na com olhos mortos e entorpecidos.
Um deles segurara uma lança e ela atirara em sua corrida, enquanto um velho homem parecia entonar um cântico com um livro hediondo. Ela queria ter sido mais rápida, mas os ossos enregelados e o músculo fatigado ardiam–lhe e entorpeciam–lhe, e antes que pudesse atirar no sujeito, sentira uma lança atravessando–lhe o ombro e como se uma agulha gigante rasgasse seus músculos, ela gritara, e tudo pareceu meio escuro enquanto o homem no altar gritava, enlouquecido.
X. Despertar:
Vai, você precisa conseguir. Os homens polvo observavam o mar, encantados por um horror que ela nem ousava ver, arrastara–se com a lança cravada latejando metade de seu corpo, e estendera o braço para o revólver. O homem roía a voz como se estivesse sendo arrebatado. Ela atirara.
Errou.
Atrás dele, uma sombra gigantesca esverdeada parecia surgir. Ela vira asas de morcego emergindo como as asas de uma borboleta demoníaca saindo de um casulo colossal e alcançando as nuvens, enquanto todos lá atrás gritavam de horror. É agora ou nunca. Atirou uma última vez, antes que não tivesse mais forças, e vira o projétil trespassando o peito do sujeito e atingido aquele encadernado maligno. Então Ele gritara, encarando–a nos olhos.
Adeus, foi a única coisa que pudera pensar enquanto aqueles enormes tentáculos pareciam alcançar–lhe, porém, o tapete de nuvens separou–se, e os tentáculos pararam de avançar. Cthulhu encarou o céu, e novamente urrara, pois uma nave estranha começava a surgir, e ela pudera ver não um avião, mas um submarino que torpedeara–lhe com mísseis que pareciam não respeitar as leis da física, e por um momento houvera algo como uma supernova, e tudo ficara claro, e ela fechara os olhos.
…
O barulho de gaivotas perturbou o seu sono, que já não era mais aterrorizante, ainda que, ao abrir os olhos e sentir a lâmina deslocando–se na carne dilacerada de seu ombro, ela arrependesse–se de tê–los aberto. O velho padre e Arnold estavam diante dela, tentando ajudá–la a levantar–se com aquele estilhaço ainda nos ombros e auxiliando–a a andar até o morro abaixo. Infelizmente, os corpos de Renan e Howard jaziam em meio ao caos além da torre, eles protegeram–na contra várias criaturas que nem podia acreditar. Desceram até a costa enquanto alguns moradores desavisados e guardinhas vinham ver o que estava acontecendo. Quando enfim sentara–se na areia umedecida pela maré há pouco agitada, ela perguntara–lhes:
– Conseguimos?
Eles encararam o horizonte. As nuvens abriram espaço para um sol que parecia desaguar no fim do oceano, e o padre respondera–lhe:
– Não, mas talvez ele durma por mais algumas décadas antes de outros terem de enfrentá–lo novamente.