O Belo e a Medonha - Capítulo 5
Com a toalha enrolada sobre a cintura, Tsezar saiu do banheiro junto de uma cortina de vapor.
Em mãos, ele segurava um pote com o restante da água que ele não usou.
Se espreguiçando, o oficial caminhou até a cômoda do apartamento, Pricyla ronronava em cima da cama, deitada sobre o uniforme sujo dele.
Ao abrir as três gavetas, o loiro não encontrou nada, apenas caixas vazias.
— Ei, Priscyla, invoca a maleta de roupas para mim, por favor.
Com um balançar de sua “cabeça”, a serpente negou o pedido de seu mestre.
— Você é realmente ingrata… — disse ao se aproximar de sua colega de quarto, puxar a “cauda” dela e picar seu dedo com o gancho.
Usando a gota que se fez, o rapaz fez um meio círculo em sua palma. O quarto foi tomado por outra cortina de fumaça. Em suas mãos, uma maleta sem remendos e feita de um couro escuro surgiu.
Ao colocar sobre o lençol e abrir, o loiro viu roupas limpas e um quepe branco com outro grande corvo no centro.
Por debaixo do uniforme, havia roupas mais simples; uma regata branca e um short curto. O jovem usava aquele conjunto como pijama, era a única coisa permitida no batalhão.
A brisa fria que saia pela janela começou a soprar com mais força, a vela que ficava de canto começava a falhar. O cadete se trocou com pressa, não antes do apartamento ser tomado pela escuridão.
— Me lembre de comprar fósforos amanhã.
Mesmo sem olhos, Pricyla se sentia desconfortável no escuro, ela tremia e se enroscava sobre as cobertas, mas, concordou com seu mestre em prontidão.
A luz do lado de fora adentrou pela janela, era de um tom azul brilhante, vinha de um poste um pouco distante da pensão.
O oficial pegou dentro de sua mala um estojo novamente de couro. Dentro, estava uma escova de madeira e um tubo com alguma substância que ele se recusava a perguntar a receita.
Com o copo em mãos e os braços apoiados na janela, Tsezar começou a escovar seus dentes. Duas vezes na esquerda, duas na direita, duas na frente e 5 vezes na parte de cima e de baixo da boca.
— Queem diiria que teeria estee tiipo de iluminaação estaaria aquii. Pennsei que só graandes ceentros tiveessem isso — disse com a boca cheia de sabão.
Uma chuva torrencial aos poucos começou a cair, o chão de terra aos poucos se tornava barro. A poeira começou a se acumular em grandes poças.
A rua estava vazia, tudo que se mexia eram os enormes conglomerados de água barrenta. Quando terminou sua escovação e cuspiu o resto em seu copo, um estranho barulho chamou atenção.
Uma figura encapuzada enorme corria em meio às poças, sua capa velha nem parecia se molhar dada a sujeira.
O loiro olhou ela cruzar a rua, ignorando sua presença. Os anos no batalhão lhe ensinaram a não mexer no problema dos outros, mas ele esqueceu uma coisa.
“Espera um segundo… uma figura encapuzada, andando tarde da noite na chuva ainda por cima, em um lugar que possui constantes ataques de animais… como eu posso ser tão burro!”
Ao guardar o copo sobre a cômoda, o cavaleiro saltou pela janela e correu em direção a figura.
— Calma ai colega!
Ao ouvir o grito, a figura apressou o passo e virou em uma rua à esquerda, correndo o mais rápido possível por 4 quarteirões. Ao acreditar ter despistado o seu perseguidor, a enorme silhueta bufou com as mãos sobre o joelho, cansada daquilo.
— Se cansou? — Surpreendentemente Tsezar surgiu na frente dela.
Pasmo, o vulto perseguido deu dois passos para trás, pronto para correr de novo.
— Não adianta correr, eu sou mais rápido que você.
O rapaz cortou sua fala quando reparou na pessoa logo a sua frente.
Sobre a capa, uma figura feminina tentava ao máximo se esconder.
Sua pele morena escondia com dificuldade as diversas cicatrizes. Seu busto era coberto por um colete e sua cintura com o restante de uma saia, simplificando, trapos.
A diferença mais drástica dela para as outras mulheres daquela vila era sua fisionomia; seus músculos eram protuberantes, seus braços enormes, suas amplas coxas e abdômen definido.
Cobrindo areas especificas estavam tufos de um pelo negro, suas unhas eram enormes e mesmo com as mãos sobre o rosto, era possivel ver grandes caninos, indicando o que Tsezar procurava.
Seu estado era deplorável, qualquer pessoa que olha-se perceberia a situação medíocre que aquela mulher vivia.
— Você é…
— Eu sou um monstro. — Mesmo com uma voz grossa e reverberante, era possível perceber a feminilidade em suas palavras.
— …linda.
Assim como todas as pessoas que um dia tiveram o desgosto de ouvir Tsezar descrever seus fetiches e desejos, a mulher ficou completamente surpresa.
Com os olhos fixos, o loiro deu mais uma olhada sobre a moça, conferindo cada detalhe, como um juiz julga uma “miss”.
Em uma velocidade abismal, ele quase teleportou para o lado da mulher, antes mesmo que ela percebesse.
— Olha esses bíceps! Eles são quase do tamanho da minha cabeça! — disse enquanto esfregava a grande massa de músculos — Olha essas coxas! Esse tanquinho definido! Aposto que nenhuma cadete da capital chegue a esse nível de definição!
Ela olhava sem reação para todos aqueles elogios, não sabendo se sentia vergonha ou estranheza pelos gostos excêntricos do oficial.
Sobre as costas dela, ele continuou a vociferar: — Essas costas! Esses ombros!
Descendo mais rápido do que a admirada pudesse reagir, o loiro parou sobre os pés dela e finalmente reparou na altura monstruosa que ela tinha.
— E é muito mais alta que eu… — Pensativo, o rapaz deu uma última olhada, praticamente babando.
Sobre aqueles olhos gulosos, a mulher pela primeira vez em muito tempo sentiu seu rosto quente. Não pelas marcas e sim por vergonha.
— Ah! Me perdoe, quando eu vejo algo que gosto eu perco o controle. Eu sou Tsezar — de joelhos, ele levantou a mão direita e continuou a dizer —, qual é o seu? Bela dama.
— Ehh…
Em estado de choque, a mulher apenas observava aquela situação toda com uma grande interrogação na mente. Sua surpresa era válida, com um corpo daquele, quem a elogiaria?
— Monstro! — Uma voz gritou distante dos dois.
Um homem envelhecido, com uma grande capa e um forcado em mãos surgiu de uma rua próxima.
— Monstro? Onde? — disse o loiro ao se virar em direção ao velho.
— Na sua frente!
— Você está na minha frente.
— Ele tá fugindo seu idiota!
Assim como o senhor corria em direção ao rapaz, ele se virava para apenas perder a sua “paixão adolenecente” de vista. A tristeza e o ódio tomaram conta do rapaz como o cupim corrói a madeira.
— Se corrermos acredito que possamos capturá-lo! — o senhor gritou ao lado do cavaleiro.
— Ela sumiu… ela sumiu… — ao travar seus olhos no senhor e encarnar todo seu ódio, o loiro manifestou — POR SUA CULPA!
Os minutos se seguiram após o ocorrido; por quase meia hora Tsezar fez um discurso negando a presença de tal monstro e que a pessoa ali era, em suas palavras: “a pessoa mais linda que eu já vi”.
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No raiar do outro dia, o jovem “acordou” cedo para cumprir sua missão. A caminho do centro da vila, um conjunto de documentos, um uniforme pesado, um quepe, grandes olheiras e um crescente desgosto acompanhavam o jovem cadete naquela manhã.
Aos pés daquele portão bem trabalhado, aquele maldito passaro surgiu, dessa vez sem bicar ou gritar. Tudo que ele fez foi acompanhar o rapaz atravessar o jardim.
Porém, o que aquele conjunto de asas não esperava foi uma corrente vazar do bolso do cadete e dar um falso bote nele. Tudo que a impediu foi o forte puxão de seu mestre.
Poucos passos à frente, as grandes portas da residência se abriram, convidando o cadete a entrar.
O caminho foi silencioso, Heiko levou o investigador até uma sala no lado contrário de seu escritório. Era uma sala mal iluminada com apenas duas cadeiras e uma cadeira velha no centro.
— Desculpe o estado dos móveis, foi tudo que consegui em um dia.
— Tranquilo…
O cadete caminhou até a mesa, que seria sua companheira pelas próximas horas e sentou na cadeira quebradiça.
Ao encostar ele percebeu que aquilo não o sustentaria por muito tempo; rangia e a perna de trás direita estava pronta para romper.
— Me avise quando puder receber as testemunhas.
Ao terminar sua cortesia, Heiko fechou a porta com toda delicadeza possível, mesmo assim, todo o quarto tremeu dado o choque.
Mais uma vez, a realidade batia forte contra tudo que Tsezar prezava como base de seus ideais.
Limpando os olhos e suspirando algo que estava preso em sua garganta desde o dia de ontem.
Aos poucos, seu fiel ajudante se arrastou pela mesa e encarou seu amo. Ela rangia suas dobradiças e fazia um barulho como um estalar de dedos.
— Sim… Pricyla, eu ainda… penso nela. Parece idiota, mas, tudo aqui é tão mediocre e entendiante. Nunca imaginei ver alguém daquele calibre por aqui… — disse, com a cabeça enfiada entre os braços.
Balançando sua cabeça, a serpente metálica concordava com tudo que ele dizia. Para consolar seu amigo, ela levantou sua calda e fez pequenos afagos na nuca do rapaz.
— O que eu seria sem você? Mas esquece essa melancolia, temos trabalho a fazer. Se esconde debaixo da mesa, é um saco explicar o porquê de você se mexer.
Após dizer e seu aliado fazer o que foi requisitado, o investigador deu três toques na parede atrás de si. As paredes eram finas, Heiko as ouviu com facilidade.
Pouco depois, a porta se abriu, um homem baixo, com roupas esfarrapadas e um chapéu largo. Sua expressão era raivosa, era possível ver o desgosto em estar ali.
Se pondo de pé e estendendo a mão, o cadete preferiu: — Seja bem‐vindo, sou o oficial responsável por investigar os recentes casos de assasinato. Poderia me responder algumas perguntas?
Não contente em ignorar o cumprimento, o senhor se sentou sem maneirismos no banco à frente da mesa.
Por fora, o oficial mantinha o profissionalismo, por dentro, ele gritou em fúria.
— Igor, pode me chamar de Igor — disse o visitante.
Se pondo em seus lugares, os dois ali se encaravam por poucos segundos. Essa análise prévia da fisionomia da testemunha era essencial para o trabalho de um investigador.
— Então? Qual sua ligação com a vítima… — enquanto cortava sua fala, o loiro olhava o documento no topo da pilha — Antoni Boyko, estou certo?
— Sim… eu era o chefe dele…
— Qual era sua ligação com ele? Era profissional ou amigável?
Outro silêncio se fez, o senhor mal se continha ali. Sua feição de raiva se transformou em uma tristeza profunda.
— Não sei como ele me via, mas eu o considerava um filho… Quando os pais dele morreram, ele veio até mim pedindo emprego, não esmola; o contratei na hora…
Ele já fungava a cada palavra.
— Vocês trabalharam juntos por quanto tempo? Como era a convivência com ele no ambiente de trabalho?
— Acho que foram uns 7 a 8 anos. Ele era incrivelmente trabalhador desde pequeno. Sempre seguiu meus conselhos e dicas, nunca reclamou uma vez sequer.
Tsezar ouvia com muita atenção o que o senhor dizia, às vezes escrevendo e conferindo informações em seus papéis.
— Pode parecer insensato, mas poderia me dizer sobre o seu último contato com ele?
— Sim, sim… estava me preparando para isso pelas últimas semanas.
Os engasgos já cortavam as falas do ancião, as lágrimas aos poucos iam se acumulavam na borda do olho.
— Nós havíamos feito o parto de uma vaca no dia, ele estava com pressa e mesmo assim fez um trabalho impecável… como sempre. Disse que iria encontrar uma garota que ele havia encontrado no dia anterior. — As mãos dele já tremiam em cima de seus joelhos. — Eu dei o resto do dia de folga a ele, sei como uma mulher muda nossa cabeça…
— Você sabe quem era essa moça?
— Não… ele queria fazer uma surpresa.
As pausas dele se tornavam cada vez mais longas, o loiro se sentia mal por forçar ele daquele jeito. O tema que o oficial mais precisava ouvir ainda estava longe, mas ele sabia que tinha que perguntar.
— Depois disso, qual foi a próxima vez que o viu? — Tsezar já sabia a resposta.
Com as lágrimas sobre a bochecha e com a voz engasgada, o senhor exprimiu: — Três dias depois. No primeiro dia que ele faltou eu tolerei, eu pensei que ele estivesse curtindo a moça, sabe?… no segundo, eu já achei estranho, mas só no terceiro resolvi ver como ele estava…
Perto de entrar em prantos, o ancião secava com a manga da camiseta secava com muita dificuldade as lágrimas que se recusavam a parar.
— Se quiser, podemos parar por aqui.
— Não! Antoni era um rapaz amável, não merecia o destino que teve. Tudo que eu puder fazer para ajudar eu farei!
Agora com os gritos, era visível que Igor já havia perdido sua base.
— Essa será minha última pergunta: como foi encontrar o corpo e o que fizeram com ele?
Engolindo a seco essa pergunta, o ancião se forçou a falar, contendo-se ao máximo para não quebrar em meio ao diálogo.
— Eu entrei pela porta, já estranhando a situação, Antoni estava… daquele jeito, quando vi eu logo gritei, o dono do açougue e da peixaria ouviram. Avisamos ao líder e pedimos para enterrá-lo, já que ele não tinha família. Eu fiz um túmulo à altura do homem que ele foi…
Com suas anotações terminadas, Tsezar já pretendia dispensar Igor, porém ele não parou de falar.
— Mas do que adianta? Um túmulo… foi tudo que sobrou, um jovem com tanto potencial, tanto futuro… jogado fora! Tudo por causa de um maldito bicho!
— Entendo, tem minhas condolências.
— Me prometa! — agarrando o braço do cadete ele gritou — Me prometa vingar Antoni, não só ele mas a todos que essa coisa matou! Por… favor…
O loiro levava toda aquela situação com extremo profissionalismo, porém aquelas palavras penetraram fundo na alma dele
Com um brilho no olhar e sem aquele ar militar, Tsezar disse: — Prometo!