O Conto da Bruxa: A Última Flor - Capítulo 4
4
O inverno havia terminado há pouco mais de um mês. O vento frio que beliscava insistentemente as bochechas da garota de olhos carmesim era apenas um resquício, não lhe daria trégua por um bom tempo. Mesmo que desejasse que não fosse algo que realmente a preocupar, ela não deixaria de se cobrir com o manto esfarrapado que Serena havia cedido.
Ela provavelmente notou que, ao caminhar por aquelas ruínas maltratadas, a garotinha nada usava além de poucos trapos que lhe foram oferecidos antes de ser raptada.
— Minhas pernas estão doendo, me carregue nos ombros, por favorzinho… — disse Sarah com um tom choroso. Aquela lorota ainda persistiu por mais tempo do que Serena imaginava suportar.
Serena ponderou por alguns segundos sobre o pedido de Sarah e simplesmente ignorou. Seus olhos passeavam atentamente pelas ruínas do que um dia foi uma cidade. Tudo ali estava destruído, nenhuma casa foi poupada. As que não podiam mais ser chamadas de casas estavam completamente desocupadas, e as ruas desertas davam ares de que algo aterrorizante havia acontecido no passado.
Mas para as três pessoas abrigadas em algum lugar do antigo reino, o lugar era conveniente o suficiente para suas necessidades de apenas “se esconderem”. Elas haviam sido listadas como criminosas, o que tornava entrar e sair da cidade ainda mais complexo, embora não fosse impossível.
— Parando para pensar, lá fora está uma tremenda tempestade… parece que tudo vai desabar com esse vento insano… parece que estamos em um conto de terror neste lugar.
Serena ignorou educadamente o comentário e continuou a ler o livro. O conteúdo do livro certamente era mais interessante do que o papo furado de Sarah. Em resposta à gentileza de fingir que Sarah nem mesmo existia, Serena apenas suspirou.
— Mesmo que fiquemos aqui a noite toda, pode ser que não consigamos voltar para Idavollr. E, já que você tem a personalidade mais desagradável entre nós, deve cuidar dela agora com seus poderes de cura, que são a única coisa boa em você — disse Serena, convicta de que ela mesma seria a exceção.
Apesar de Serena ter dito isso, Sarah apenas consentiu, sem fazer perguntas. Pela primeira vez na vida, “ela ouviu”, pensou Serena, perplexa, enquanto folheava o livro.
Mas o que quer que tenha chamado a atenção dela no livro, foi o motivo de tê-la encontrado caído no chão, aberto em uma página específica. Sarah voltou sua atenção para onde Serena estava sentada e, sem perceber, chegou até a menina, que estava deitada na cama improvisada.
A garotinha de olhos carmesim foi envolvida por uma luz suave, sem entender o que estava acontecendo. Ela disse a si mesma: “Não… quero perguntar, mas…”, essas palavras estavam em sua mente turva. Mesmo que as duas intituladas Bruxas trocaram poucas palavras, ou apenas o básico.
A garota ainda tentava clarear seus pensamentos, mas estava tão atordoada que não conseguia falar livremente. Mesmo que quisesse dizer algo, seu corpo não obedeceria devido ao seu estado.
— Aliás, tenho algo para perguntar… por que você deixou sua Drómi cair nas mãos daquela mestiça?
Essas palavras foram o suficiente para Sarah se sentir desiludida. Aturdida, ela pensou em uma ótima desculpa, mas não a disse, com medo de falar algo desnecessário e comprometer sua “passagem” livre. A posse errada desse item poderia causar uma catástrofe.
Depois de uma pausa tensa, Sarah disse: — Ah, isso, você sabe… eu…
— Só para de dar desculpas! — gritou Serena furiosa — Eu deveria ter enfiado o Kanabô na sua testa, sua tola! — Serena, com ódio por Sarah, disse enquanto apontava o Kanabô para ela, que recuou.
Sarah emitiu um som peculiar em resposta ao sermão.
Mas depois de ouvir parte do sermão, Sarah disse: — Eu só queria beber um bom vinho, entende? Então, ela passou por lá e me pegou… — disse Sarah com ressentimento, fechando levemente um olho.
— Você está mentindo! Sempre que mente, isso está escrito em seu rosto!
— A parte sobre o vinho não é mentira, mas eu vacilei em não ficar alerta, porque a persegui… queria apenas dar a ela um corretivo.
— Ah… — Serena soltou um longo suspiro. — Não consigo nem ficar em paz pensando que você é capaz disso. Deveria ter mandado outra pessoa em seu lugar.
Sarah imediatamente olhou para Serena, que estava sentada na beira da porta, e disse: — Ei, você sabe muito bem o que acabou de dizer, não sabe?
Sem um pingo de ressentimento, Serena ignorou novamente Sarah, que bufou.
— Deixe disso. E como está ela? Não falou nada e nem reagiu desde que estamos aqui.
— Suponho que, devido ao fato de estar muito fraca e sem se alimentar, ela esteja nesse estado. Não acredito que ela acordará tão cedo, mesmo com uma magia de recuperação desse nível.
— E aquela conversa de hoje cedo, de que ela seria nossa Deusa? Ela é apenas uma criança, vendida como escrava. É impossível, sabe? — Sarah falou, com um leve pressentimento de que Serena poderia estar certa.
— Bom, veremos depois do ritual. Se for realmente ela, acredito que poderá impedir o que vem pela frente. Se não for, temo que tudo esteja perdido — Serena disse, com um tom de arrependimento. Mesmo que ela tenha se convencido de que sua previsão não “pode” estar errada. — Haha… — Sarah riu. — Você, no fim, sempre acerta.
Serena corou levemente, seu rubor a tornando ainda mais bela. Ver essa cena deixou Sarah ainda mais apreensiva, não era sempre que ela demonstrava isso, apesar de sua personalidade séria.
Mesmo que seja bem tarde, as bruxas têm hábitos noturnos e não precisam se preocupar com o dia e a noite, ou se devem ou não dormir. Então, elas podem vagar livremente à noite, mas lá fora há uma tempestade vinda do Norte com ventos gelados. “O clima não está ajudando”, pensou Serena.
Sarah ainda mantinha a suave luz fraca e aconchegante envolvendo a garota. Ela mostrou uma melhora drástica nas últimas horas.
Até aquele momento, tudo ocorria tranquilamente, mas então ouviram um estridente som de marcha. Era evidente que o exército se movia em meio a um clima adverso, mas pararam para pensar que enfrentá-los seria suicídio.
O vento soprava com força e a chuva caía incessantemente. Sarah, com os olhos arregalados, perguntou: — Você ouviu? — Serena, levantando-se da cadeira, respondeu sussurrando: — Sim.
Elas achavam que podiam descansar em paz naquele local, mas não perceberam que próximo havia um campo de treinamento das forças militares, onde se reuniam para discutir e elaborar planos. Embora estivessem prestes a cometer uma tolice, a casa em que se encontravam estava encantada com uma barreira mágica que ainda tinha efeito, pelo menos até que Sarah chamasse seu hipogrifo.
Naquela altura, já era tarde demais para saírem dali. O lugar servirá apenas como ponto de parada até a chegada de alguém, sinalizado pelo rugido do hipogrifo de Sarah, que novamente causou problemas.
Serena olhou furiosa para Sarah e disse: — Você sempre deixa esse animal idiota arruinar tudo?!
Sarah respondeu, defendendo seu companheiro: — Ei, não fala assim do meu bebê. Se você fizer isso de novo, vou contar a todos na cidade sobre a marca de nascença que você tem em um lugar bem sensível… aí, vai doer, hein?
Serena pegou rapidamente a garota deitada na cama, puxou o cabelo de Sarah e se dirigiu ao hipogrifo que batia as asas.
Após algum tempo sobrevoando as planícies do Deserto do Rei Goblin, ficou claro para onde estavam levando a jovem garota. O destino delas já estava definido desde o início da viagem.
Pouco depois, chegaram à aldeia de Melt, onde ambas atuavam como Bruxas Guardiãs. Esse título se deve ao fato de o Reino não se importar com pequenas aldeias que não conseguem pagar impostos. Enquanto nas grandes capitais, os impostos eram mais do que suficientes para sustentar um grande exército, as pequenas aldeias eram completamente esquecidas pela capital, que era responsável por gerir e distribuir esses recursos. Isso resultou no apagamento dessas vilas do mapa.
No entanto, algo intrigante acontecia nas aldeias esquecidas. Surgiam pessoas fortes o suficiente para se tornarem mercenários e ajudar os mais fracos. O dinheiro arrecadado nessas pequenas vilas era suficiente para custear esses mercenários.
Serena caminhava pelas estreitas ruas da aldeia e era reconhecida por todos, recebendo saudações calorosas. Mesmo sendo uma aldeia pobre, os moradores valorizavam a hospitalidade. Sarah havia saído em uma breve expedição e provavelmente estaria de volta até a noite, se tudo corresse bem. No entanto, algo aconteceria mais tarde.
Enquanto Serena refletia sobre sua estadia na aldeia, pensava no fato de que, depois de três dias de tratamento mágico, a garotinha de raros olhos carmesim havia recobrado a consciência e conseguia se alimentar sozinha, apesar de sua fraqueza evidente. No entanto, sua recuperação total levaria mais de um mês.
Serena suspirou, preocupada com o tempo. Sarah havia mencionado que poderia ficar mais uma ou duas semanas antes de partir, mas Serena resistia à ideia de que seus planos poderiam falhar. Ela apagou firmemente esses pensamentos, mesmo que seu autocontrole para controlar suas emoções sombrias estivesse falhando.
Ao chegar na pequena cabana, foi recebida pela alegre e saltitante garotinha de olhos atípicos, cujos olhos brilhavam intensamente.
— Te entendo Anne, mas vai ter que esperar. — Com um sorriso irônico, disse Serena, mas o que ela quis dizer com isso?
Anne abaixou a cabeça e consentiu com as palavras dela.
Mas seu estômago se manifestou.
Gruuu!
O som do ronco de seu estômago ecoou por toda a sala. Com a cesta na mão, Serena a colocou sobre a mesa. A menina esperava ansiosamente pelo sinal para começar a comer.
Mesmo após tanto tempo vivendo em condições miseráveis, Anne, pela primeira vez na vida dela, desfruta de uma refeição decente.
Ela tomava água para tentar acalmar a fome, e isso funcionava até certo ponto. Vinte ou trinta minutos depois, no entanto, ela sentiria ainda mais fome. Beber água era uma maneira temporária de aliviar a fome, mesmo que por alguns instantes. Mas, em vez disso, o que geralmente acontecia depois de beber muita água era que ela vomitava tudo. Não era um método eficaz para saciar a fome.
Às vezes, quando estava tomando água para tentar enganar o estômago, a água parecia ter o gosto mais horrível que ela já experimentara, e mal descia pela garganta. Não sobrava nada além de alguns poucos farelos de pão velho. Assim, a água se tornou a única forma de tentar acalmar a fome. Ficar quatro ou cinco dias sem comida era algo que ela nunca mais queria experimentar em sua vida. Apenas as vagas lembranças dessa experiência eram suficientes para deixá-la em choque.
Apesar de sua expressão revelar uma mistura de espanto e felicidade, Serena sabia que tudo aquilo não passava de uma aposta arriscada, uma aposta que poderia até mesmo custar sua vida. Seus verdadeiros objetivos não estavam claros, e Anne estava perplexa com isso.
— Pode comer à vontade… — Serena falou, com um tom de voz relutante, antes de desviar o olhar para a janela.
Serena notou que a pequena aldeia, esquecida e negligenciada havia muito tempo, estava em completo caos desde a manhã. De repente, uma sombra enigmática passou pela janela. A expressão de Serena mudou de serenidade para pavor.
Uma voz ressonante ecoou, acompanhada por um som inconfundível de metal cortando o ar. Depois de alguns segundos, todos na cidade entraram em pânico, correndo para salvar suas vidas.
Um golpe incrivelmente poderoso foi desferido na porta, estilhaçando-a em vários pedaços. Tudo isso aconteceu enquanto o som de passos ordenados se aproximava cada vez mais da porta.