O Diário do Começo - Capítulo 7
Ponto de vista de Eduard Harley
O homem saiu pela porta da cabana com um sorriso confiante. Fiquei parado na cama ainda pensativo sobre tudo que me foi revelado. Não sabia se podia acreditar no que ele me disse, quer dizer isso é loucura. Eu morri? Yole tá vivo? Minha cabeça tá começando a girar.
Joguei os cobertores para o lado e me coloquei de pé. Meu peito ainda doía, porém era suportável. Dei pequenos passos até a porta que rangiam o chão com meus movimentos mais suaves. Chegando a saída, finalmente vi o lado de fora da cabana. Era lindo, assim como o campo que havia me encontrado com Yole, várias flores e árvores gigantescas rodeavam a moradia. O sol era forte e parecia que eu não o via a dias. Respirei puxando todo ar que pude, antes de soltá-lo em alívio.
Olhei para frente e o bêbado estava a minha espera de costa para a casa. Suas mãos sinalizavam para subir. Fiquei um pouco desconfortável de me apoiar nas costas de um estranho, todavia eu já havia feito isso mesmo que involuntariamente e agora, não poderia me dar ao luxo de fazer movimentos bruscos. Cedi e me aproximei do homem que me ergueu, me dando um pequeno sorriso.
Virei meu rosto irritado: — Tsc.
“Não sou mas uma criança! Droga!”
Ele deu uma falsa risada enquanto adentrava na floresta. Aos poucos, o sol escaldante que nos iluminava desapareceu em meio as grandes árvores da floresta. Fui tomado por um sentimento de ansiedade, já que foi nessa mesma floresta que tudo aconteceu. Os passos de Yole eram firmes e precisos, mesmo com pedras, raízes gigantescas e outros obstáculos que dificultavam o caminho. Ele parecia conhecer bem aquela área.
Vuuuu…
O silêncio reinava naquele momento e nenhum de nós ousou quebrá-lo, apenas seguimos enquanto observávamos a vasta flora em nossa volta. Após alguns minutos de caminhada, finalmente pude ver a saída da floresta. Uma pequena estrada que levava a uma abertura em meio a todas aquelas árvores. Ao sairmos, meus olhos demoraram para se ajustar a claridade e pouco a pouco, o borrão em minha frente foi tomado por um vasto campo repleto de flores e ao longe, uma linda cerejeira no topo de um morro
O Homem alertou: — Chegamos! Acha que consegue caminhar um pouco?
Sinalizei positivamente e o homem agachou-se me pousando em segurança no chão. Ele confirmou se estava tudo bem antes de começar a caminhada em direção a cerejeira. Eu o segui logo atrás.
Coçando sua falhada barba ele questionou: — Já ouviu falar que humanos dependem de outras raças para usar magia?
Acenei positivamente com a cabeça ao lembrar-me da conversa que tive com o guarda no dia da invasão e de diversos livros de história que eu havia consumido. Yole pareceu contente e deu um pequeno sorriso antes de continuar.
— Humanos realmente não podem usar magia por meios convencionais. A magia é dividida em duas essências que giram em volta da nossa alma, mana e elemento. Tudo que existe é composto por mana, o ar, as águas ou até mesmo o solo. A questão é que ela esta adormecida no interior de tudo que existe, sendo a fonte de energia para a ativação do elemento que juntamente a mana gira em torno da nossa alma. Contudo diferente da mana que pode ser absorvida, o elemento nasce com a pessoa, e essas pessoas seriam…
— Os seres mágicos. — disse involuntariamente. Yole que pareceu não se importar e continuou.
— Exatamente. Eles tem uma reserva de mana em seu corpo que não é infinita e afinidade com algum elemento, e é aqui que eu queria chegar.
Eu estava distraído e não percebi sua parada, me colidindo em suas costas. Paramos a poucos metros da cerejeira, Yole se abaixou e fixou seus olhos em mim, enquanto se preparava para falar.
— Essa regra não se aplica aos humanos… Nós não temos afinidade com nenhum tipo de elemento e por isso não podemos utilizar nossa mana para nada.
Olhei confuso para ele que parecia esperar por isso.
— Humanos tem mana?! — questionei.
— Exatamente, contudo não podemos usá-la.
— Então qual o sentido?!
— Os contratos. A verdade é que humanos podem armazenar muito mais mana do que as outras raças. Talvez seja para compensar a falta do elemento, eu realmente não sei, porém para contornar isso foi criado o contrato. Um humano e um ser mágico faziam um pacto, que permitia os humanos usarem a essência do ser mágico em troca da mana do humano. Isso permitia que esses seres tivessem acesso a uma fonte gigante de energia, muitas vezes maior do que a sua própria.
Após a explicação, Yole sentou-se em suas pernas retirando a espada de suas costas, colocando-a sobre seus joelhos que permaneceu em silêncio desde o nosso último… encontro. Eu o acompanhei e me sentei em sua frente.
Com um semblante nostálgico em seu rosto ele concluiu: — É isso que If e eu fizemos.
Olhei confuso para aquela cena. Eu compreendi sua explicação, contudo uma coisa não fazia sentido. Yole percebeu meu rosto desordenado e questionou.
— Qual o problema?
Apontei para a espada curioso: — Como você fez o contrato com ele?! Ele é uma espada.
Silêncio…
Afeição de Yole mudou, o suor corria por sua testa como se eu acabasse de cometer um crime terrível. Me voltei para a espada que lentamente saiu de sua bainha deixando um pouco de sua lâmina visível.
— Você parece um anão em forma de pudim e eu não disse nada!
Ouvir aquelas palavras me fizeram ranger os dentes de raiva. Ser chamado de pequeno e pudim na mesma frase era inaceitável. Fechei meus punhos com força, enquanto abaixava minha cabeça prestes a explodir.
— S-sua lata velha, você sabe quem sou eu?! Um príncipe!
— Lata velha?! Eu sou um dos cinco grandes seu pivete!
E assim começou minha discussão com a espada enferrujada, trocamos farpas e mais farpas. Yole tentou nos parar, contudo era tarde de mais, ele apenas cruzou seus braços olhando o chão em sinal de espera. Continuamos nossa briga por muito tempo e eu nem me dei conta que estava em um embate com uma espada falante.
— Eu sabia que tinha sido um erro falar de você para o Yole!
A espada recuou em sua bainha criando um silêncio desconfortável. Olhei confuso para o bêbado que estava na mesma posição de espera. Ele levantou sua cabeça perguntando.
— Acabou? — falou impaciente.
— O que ele quis dizer com isso? — questionei.
Yole suspirou antes de dizer. — Quando você chegou aqui eu estava inconsciente, foi If que me alertou que você foi para a floresta. Francamente você nem se perguntou como eu sabia seu nome?!
— Eu…
Abaixei minha cabeça sem saber o que dizer. Olhei para a espad… quer dizer, If um pouco arrependido de tudo que falei.
Ele coçou novamente sua barba e continuou. — Enfim, respondendo sua pergunta, tudo que eu disse se aplica no Reino físico… Nós estamos no Reino espiritual. Não se esqueça criança, nós estamos mortos.
— EU NÃO ACREDITO! Eu não posso acreditar em você, eu prometi que ficaria bem! — exclamei.
O homem me olhou incrédulo com um semblante triste em seu rosto. Ele se levantou vindo em minha direção, tentei recuar, porém ele agarrou meu braço pondo a palma de sua mão em meus olhos que ficaram pesados, se fechando em seguida.
O bêbado ordenou tirando lentamente suas mãos: — Abra os olhos…
Era como se pedras estivessem amaradas em minhas pupilas. Forcei minha visão que pouco a pouco revelou uma linda imagem em minha frente. Arregalei meus olhos enquanto lágrimas escorriam por minhas bochechas. O motivo do choro não foi de tristeza, de felicidade ou de dor. Eu apenas chorei e nem mesmo sei porque.
O campo foi tomado por centenas de luzes com formatos esféricos enquanto vagava junto ao vento. Elas estavam em toda parte, no céu, ao chão e algumas até vagavam ao meu lado.
Yole sentou-se junto a mim. — Isso são almas, assim como If, assim como eu… assim como você. Elas estão aqui pois ainda não encontraram a paz.
Limpei minhas lágrimas olhando o homem que admirava aquela cena como se fosse a primeira vez. Yole estendeu sua mão e pegou um dos diversos orbes em nossa volta destacando uma pequena mancha negra em meio a toda luz da esfera.
— Nossa vida é feita de escolhas. Escolhas que as vezes nos arrependemos amargamente, e na hora de nossa morte… esses arrependimentos se tornam pendências ou se você preferir, assuntos não resolvidos. Ao fazermos um contrato com esses espíritos, tomamos a responsabilidade de ajudar a resolver esse arrependimento. E ao conseguimos, a alma finalmente pode descansar.
Ver tudo aquilo me fez perceber o quão confuso e assustado eu estava. Não queria aceitar o fato de que tudo que ele me disse fazia sentido, não queria admitir que quebrei minha promessa fechando meus olhos para a verdade.
“Eu sou patético.” me desliguei por um momento.
Yole colocou sua mão em meus ombros indagando — Quer tentar?
— Você quer que eu faça um contrato!? — exclamei.
— Talvez você acredite em mim se fizer!
Ainda apreensivo eu perguntei: — E como isso funciona?
— Existem dois tipos de contrato, o de longo e de curto prazo. O contrato de curto prazo são aquelas almas que não tem tanto assuntos pendentes e que podem ser resolvidos rapidamente. Já os contratos de longo prazo são almas muito corrompidas e que é preciso um longo tempo para curar todas as feridas.
Olhei para If que ainda estava quieto. Pelo que Yole me disse, eles estão juntos a cem anos… não posso nem imaginar o que aconteceu com ele para demorar tanto o contrato.
O homem apertou a luz que se transformou em uma lança reluzente. — Agora enfie isso no seu peito.
— O QUE?! — disse assustado.
— Vamos, você já está morto mesmo. — Yole disse se aproximando querendo me acertar com a lança.
— Espera e-eu mudei de ideia!
Tentei correr mas cabei tropeçando desabando no chão me tornando indefesso naquele momento. Eu tentei resistir mas era tarde de mais. Yole cravou a luz em meu peito e tudo em minha volta se tornou branco. Olhei em todas as direções procurando pro algum sinal de vida. Até que ao longe pude ver uma grande árvore deslocada em meio aquele espaço.
Me senti em uma pintura inacabada, como se estivesse na parte que o pincel ainda não havia tocado. Comecei a me deslocar em direção a árvore e a cada passo, um pequeno campo era formado em sua volta com arbustos e flores que a rodeavam.
Finalmente coloquei os pés na grama do campo. Era estranho pois olhando para os lados, tudo era branco e vazio. A árvore começou a balançar e uma voz se propagou em meio as folhas.
— Tem alguém ai? — perguntei.
De repente um grito ecoou e algo começou a cair. Olhei atentamente e vi uma criança pendurada em um fino galho que estava preste a se romper.
— Você está bem?! — exclamei preocupado.
O garoto me olhou assustado, seu rosto era esverdeado com pequenos dentes afiados saído de sua boca. Seus cabelos negros escondiam parcialmente suas orelhas pontudas, ele parecia ter minha idade. Ao tentar responder, o galho se partiu o fazendo cair em queda livre.
Corri em direção ao garoto que ia de encontro ao chão. Pulei e consegui agarrá-lo, rolamos diversas vezes em direção a um arbusto que amorteceu nossa queda.
Me levantei lentamente preocupado com o garoto: — V-você se machucou?
Olhei para o lado e o vi deitado imóvel. Levantei rapidamente indo em sua direção, ele não parecia machucado porém estava inconsciente. Agarrei seus ombros e comecei a balançá-lo desesperadamente.
“Vamos acorde droga!”
Aos poucos, seus olhos se abriram. Ele parecia desorientado e demorou um pouco até se recuperar totalmente.
— O-o que aconteceu? — o desconhecido disse confuso.
— Você caiu daquela árvore. O que você tava fazendo? — questionei
— Tinha um gatinho la, eu subi pra salvá-lo — o garoto disse mostrando um pequeno gato que estava envolto em seus braços.
Me levantei estendendo a mão para a misteriosa criança que me olhou surpreso, porém logo aceitou minha gentileza e se apoiou em meu braço. O gato parecia bem e o garoto cuidadosamente o acariciou com um semblante alegre.
“O que fazer agora?” Pensei.
— Se você está bem eu vou indo. Se cuida tá? — disse me virando de costas.
— E-ei, espera!
O garoto veio correndo em minha direção: — O-obrigado. Você me salvou.
Eu fiquei envergonhado, porém logo recuperei minha postura agradecendo a gentileza. De repente, o garoto tirou algo de seu bolso. Ele agarrou minha mão colocando um objeto sobre ela.
— N-não é muito mas…
Ao abri-la, vi um pequeno boneco feito de gravetos e palha. Por mais simples que fosse eu não conseguia parar de olhar para ele. Aquele brinquedo inundava meu corpo com uma paz inexplicável. Olhei para o garoto que esperava por minha resposta com um rosto inocente…
“Ele não sabe que está morto?!” pensei apertando minhas mãos com raiva.
— É muito fofo, obrigado! — agradeci.
O garoto corou. Ele era envergonhado e tímido, o que não condizia com sua aparência assustadora, contudo quem se importa ele era igual a mim. O garoto começou a chorar de repente.
“Merda o que eu fiz!” pensei em pânico.
O menino limpou suas lágrimas dando pequenos soluços. — N-não me leve a mal, é que ninguém nunca foi tão legal comigo! Obrigado — O menino disse sorrindo.
Suas palavras me trouxeram um sentimento nostálgico que eu não sabia explicar. Sorri de volta e tudo começou a ser consumido pelo branco. As flores, a grama, a grande árvore e finalmente o garoto que continuou sorrindo até o último momento. E antes de desaparecer ele me perguntou.
— Meu nome é Ralf, qual o seu?
Com lágrimas nos olhos eu respondi: — Me chamo Eduard, foi um prazer conhecê-lo.
Lentamente fui recuperando minha consciência. Abri meus olhos e vi pétalas da cerejeira vindo em minha direção. Me levantei e Yole apoiado a árvore com seus olhos fechados.
“Dormindo de novo?!” pensei.
De repente o homem que parecia estar em um sono profundo se manifestou: — Parabéns por seu primeiro contrato.
Olhei para minha mão que ainda estava fechada. A abri lentamente na esperança de encontrar o presente dado por Ralf, contudo minhas expectativas foram quebradas… Não havia mais nada lá. Yole parece ter percebido meu semblante e se levantou vindo em minha direção me erguendo em suas costas.
— A-aonde vamos?! — exclamei.
— Ora! Vamos testar sua magia.
O homem apertou seus passos em direção a um morro. Tentei questioná-lo para onde estávamos indo, porém ele dizia que eu veria quando chegássemos lá. Caminhamos por horas e o sol que a pouco estava iluminando o céu, lentamente desaparecia no horizonte. Ainda estava pensativo sobre Ralf.
“Seu único arrependimento foi não ter salvo aquele gato… ele morreu muito jovem, isso é injusto!” Pensei apertando Yole sem perceber.
O homem que estava quieto todo o trajeto finalmente se manifestou: — Estamos quase lá.
Olhei para frente e vi uma abertura em meio as árvores que nos cercavam. Soltei um suspiro aliviado. Os raios fracos do sol bateram em meus olhos que presenciaram uma linda paisagem. Nos estávamos no pico de uma colina, pássaros voavam pelo céu amarelado que destacava a floresta logo a baixo.
Eu estava encantado, contudo algo tomou minha atenção. Ao longe haviam quatro estruturas gigantescas, uma em cada direção e em sua volta, o que parecia ser várias cidades.
— Nossa! — exclamei. — O que são aquelas torres? Aquilo em volta são cidades? Por que você nunca foi lá?
— Hahaha, são muitas perguntas. É pra lá que as almas vão, pelo menos acho que é. Cada uma das torres representam uma raça, Elfos, Anões, Orcs e Dragões.
— Não são cinco? Faltou a gente. — disse contando nos dedos.
Yole coçou sua barba antes de continuar: — Realmente, porém eu nunca vi uma alma humano em todos esses anos. Enfim isso pode esperar, que tal testarmos sua magia?
Concordei com o homem que me colocou suavemente no chão.
— Certo, contratos de curto prazo só te permitem usar magia uma única vez. Você deve ter recebido algo da pessoa la dentro certo?
Apertei minhas mãos balançando a cabeça positivamente. O homem se colocou ao meu lado me pedindo para repetir seus movimentos.
— Certo, estenda seu braço. Eu quero que você se lembre do que recebeu, mentalize ele e você vai saber a hora certa.
Obedeci fechando os olhos. Pensei sobre o boneco de madeira que tinha recebido e a mesma sensação quando o vi pela primeira vez inundou meu corpo.
— Concentre essa sensação na palma de sua mão. — Ele ordenou.
Abri meus olhos e vi a um brilho verde surgir em minha mão. Logo aquela luz se transformou em uma pequena pedra que flutuava em minha palma. Não pude esconder minha excitação. Olhei para Yole que tinha um sorriso contente estampado em seu rosto.
Contudo me distrai por curto um momento, a luz desapareceu e a pequena pedra caiu no chão. Senti como se uma parte de mim tivesse sumido e logo toda aquela euforia havia cessado…
— Não se sinta mal Eduard, seja la quem você viu la, está num lugar melhor agora. Olhe para o chão.
Obedecendo, olhei para o solo e em minha frente estava uma pequena flor, semelhante às do campo com a cerejeira. Lagrimas preencheram meus olhos enquanto voltava meus olhos para o horizonte.
O homem colocou sua mão em meu ombro: — Vamos voltar, você deve estar com fome.
— Você não tem cara de fazer uma comida muito boa. — brinquei segurando o choro.
Yole que pareceu ver isso como um desafio. Me apoiei no homem que começou a descer o morro palestrando sobre o quão deliciosa era sua comida. Olhei para trás pela última vez me despedindo da flor.
“Vejo você depois, Ralf.”