O Horror de Portsworth - Capítulo 4
PARTE 4: PERDENDO O CONTROLE
A adaga cortou o vento, sendo aparada pela lâmina de Sandor e jogando faíscas contra o chão da taverna.
— Hypnos! — Keiniz disparou uma energia púrpura que penetrou a mente de um aldeão, pondo-o num sono pesado.
Outra adaga investiu contra o guerreiro, que não teve a mesma sorte de antes. A lâmina entrou por uma fresta da armadura, cravando-se em suas costas. Com um chute, Sandor afastou seu algoz. Tomado pela fúria, o humano atingiu o camponês mais próximo, usando a parte cega da espada. O golpe criou uma terceira articulação no braço da criatura, entre o pulso e o cotovelo. O monstro berrou como um possesso, enquanto segurava o membro. Tentou não olhar para a fratura exposta, por onde caíam restos estilhaçados de ossos.
O taverneiro não se deixou intimidar pelo ferimento do amigo. Investiu contra Sandor, quebrando seu ombro com o auxílio de um machado. Graças à ira sobrenatural, a criatura conseguira dobrar o metal da ombreira, separando a clavícula do guerreiro em duas.
O líder dos aventureiros urrou, acometido pela dor. Sua manopla pesada atingiu um golpe direto no abdômen do adversário, fazendo o taverneiro vomitar suas entranhas ensanguentadas. Antes que o inimigo recuperasse a compostura, Sandor o perfurou com sua Daratukk, num golpe fatal. A espada de duas mãos atravessou o pescoço da aberração enlouquecida. Quando o guerreiro puxou sua arma, deixara o inimigo em uma situação deplorável. Podia-se ver o buraco do esôfago entre os jatos de sangue, enquanto a criatura se asfixiava, soltando grunhidos quase mudos.
— Não faça isso! — Keiniz impediu Sandor de trucidar uma terceira vítima. — Tem alguma coisa controlando eles.
Alderman também sabia disso, mas não se importava. Com sua mão esquelética, ele agarrou o pescoço do aldeão responsável pelo caos que se instaurara. Outra das criaturas tentou atacar-lhe pelas costas, mas o braço do caçador virou-se em um ângulo impossível, erguendo o adversário pela própria face. Prensou ambos contra a parede mais próxima, apertando-lhes com toda a força.
— Suas aberrações insignificantes… — Seus olhos ardiam em chamas. — DESAPAREÇAM!
Destruiu a garganta do obeso, engasgando-o com o próprio sangue. Antes que o outro inimigo pudesse contestar, o morto-vivo fechou a mão esquerda, estourando a cabeça do aldeão e pintando a parede com uma massa cinzenta. Um dos olhos quicou no chão, próximo à Alderman, e o morto-vivo fez questão de pisá-lo. Tentou sentir a viscosidade entre seus ossos. Serrou o punho tentando aquecer-se com o sangue dos inimigos. E, como sempre: não sentiu nada.
— Ele perdeu o controle! — Sandor pensava se investia contra Alderman ou contra um camponês monstruoso.
— O que diabos é o Alderman?! — Keiniz estava mais confuso do que nunca.
— Aquilo é… — Sandor não podia acreditar no que seu instinto lhe dizia. — Um lich.
Alheio aos sentimentos dos aliados, o caçador continuava o massacre.
— Seu verme repugnante! — Agarrou outro aldeão pela garganta, iniciando um sufocamento brutal.
Uma enorme lâmina ergueu-se contra a nuca do morto-vivo, ameaçando-o.
— Alderman — Sandor o chamou pelo nome que conhecia, sem saber se era, de fato, o real.
Não havia mais confiança entre os dois.
— Sandor. — O caçador soltou sua presa, que foi direto ao chão, tossindo desenfreadamente.
— Quando você virou… Isso? — O guerreiro teve dificuldades de encontrar um eufemismo.
— Desde antes de nos conhecermos.
Enquanto os antigos companheiros dialogavam, a mão gosmenta de um aldeão aproximou-se da enorme espada presa à parede da taverna, como um antigo troféu. Trocou um olhar com seu aliado, que se escondia atrás de uma mesa derrubada, armado de um bastão com espinhos. Um terceiro inimigo, portador de uma faca de serra, se esgueirava contra Keiniz.
— Ei… — O mago limpou o suor em sua testa. Seu fluxo mágico estava se esgotando. — Nós temos que sair daqui agora!
— VOCÊS NÃO VÃO A LUGAR NENHUM!!! — A aberração poupada investiu contra Alderman, aproveitando que o lich estava de costas.
No exato momento em que um monstro se agarrou a outro, Friynn entrou pela porta da frente, surpreendendo-se pela quantidade de cadáveres e a aparência dos camponeses.
O aldeão da faca serrada investiu contra Keiniz, mas acabou derrubado por um soco na coluna, desferido por um enorme gorila. Aproveitando-se do oponente caído, o primata tornou-se uma enorme serpente, imobilizando-o.
— Deixa ele comigo. — Lecram assegurou a vitória, em sua forma serpentina.
— Friynn… O Sandor… E o Alderman… — Keiniz apontou para os fundos da taverna, nervoso demais para pensar em uma frase completa.
— Tá bom, tá bom! — Friynn preparou seus pulmões. — Deixa comigo.
Alderman se desesperou quando percebeu que era o alvo do sopro, junto ao aldeão preso às suas costas. A aberração segurava o pescoço do lich, enquanto seu outro braço batia uma adaga contra as costelas do morto-vivo, quebrando-as uma a uma. O caçador não sentia a dor, mas se desesperou com a ideia de ser congelado sem poder se justificar.
— Droga… — Estendeu as mãos esqueléticas, gesticulando para que a companheira se acalmasse. — Espere, Friynn… Eu posso explicar!
Já era tarde demais. A draconata desferiu seu sopro gélido, criando um rastro de neve no chão, além de duas estátuas congeladas na forma de um esqueleto e camponês monstruoso. Sandor pensou em impedir a companheira, mas chegou à conclusão de que o melhor a se fazer era neutralizar o traidor, pelo menos enquanto estivessem em uma situação de risco. Aproximou-se dos corpos congelados e separou as duas figuras. Um dos braços do aldeão continuou preso ao ombro de Alderman, mas o guerreiro pareceu não notar.
— As coisas só pioram! — o líder esbravejou.
— INVASORES!!! — Armado com o bastão de espinhos, um dos monstros investiu contra Sandor.
O guerreiro esquivou do golpe, atingindo um soco no rosto deformado da criatura e lhe arrancando diversos dentes.
— Para trás, seu cretino! — Sandor derrubou o inimigo e depois se virou para a serpente. — Lecram, leva o Alderman para fora daqui!
O druida tornou-se um meio-elfo confuso, em cima de um inimigo asfixiado.
— Espera… — O druida encarou o morto-vivo congelado. — Quer dizer que o Alderman é esse…
— AGORA! — Sandor gritou, defendendo uma espadada que quase o degolou.
— Que grosseria. — O corpo de Lecram inflou consideravelmente.
Enquanto o meio-elfo se transformava em minotauro, Sandor trocava golpes com o último aldeão de pé. O druida não pensou duas vezes antes de agarrar o lich pela cabeça e erguê-lo do chão.
— Você tem muito o que explicar, seu psicopata — Lecram falou como se Alderman pudesse ouvi-lo. — Mas agora é hora de dar o fora daqui!
Sem receios, o minotauro investiu contra a parede mais próxima, criando uma saída à sua altura.
— Podem ir! — Sandor executou uma manobra, desarmando o oponente. — Eu tô logo atrás de vocês!
Todos partiram pela imensa passagem deixada por Lecram. O guerreiro seguiu os rastros do grupo apenas quando teve certeza de que não estava sendo seguido.
EM UM BECO ESTREITO E ESCURO
Os aventureiros ainda restauravam seus fôlegos, quando Adran confrontou Sandor.
— Faz parte do meu juramento não deixar que os mortos caminhem de novo. — Os olhos do clérigo fitavam os ossos congelados de Alderman. — Você sabe que eu preciso matá-lo.
— Quando nós terminarmos com esse vilarejo, eu deixo vocês dois se resolverem sozinhos.
— Eu não posso esperar todo esse tempo. — O elfo sacou sua foice.
— Você não tem escolha! — Sandor já segurava a Decapitadora. — Não complique as coisas agora.
Os outros membros observavam a discussão em silêncio, suando frio. Parecia que a qualquer momento haveria uma luta entre os dois, e apenas um sairia vivo. Os nervos estavam à flor da pele, quando Lecram, em sua forma de meio-elfo, decidiu intervir.
— Acho melhor nós cortarmos esse papo furado e focar no que é realmente crítico.
— Essa missão já foi por água abaixo. — Keiniz não parava de olhar em volta, sabendo que algo os observava. — Se nós continuarmos aqui nessa noite, um de nós vai acabar morrendo.
— Você só percebeu isso agora? — Friynn suspirou um vapor gélido.
— Eu já perdi sanidade demais por hoje… — Lecram sentou-se apoiado na parede, escondendo a face entre as pernas. — A gente precisa dar o fora daqui e voltar amanhã.
— Nós não precisamos mais do Alderman. — Adran tentou ultrapassar Sandor, mas foi impedido pelo guerreiro.
— Nesse estado atual, ele não consegue nem se defender! — A fúria no olhar do guerreiro encontrou reciprocidade nos do clérigo. — A sua deusa pode esperar até nós descobrirmos a verdade.
O druida se ergueu, aproximando-se do conflito. Parecia apressado para deixar o lugar.
— Eu posso carregar ele de novo — pigarreou, antes de continuar. — Enquanto a gente foge.
— Fugir? — Sandor caminhou até Alderman, removendo o braço congelado do aldeão, que ficara preso à estátua. — Isso não tá nos planos.
— A única opção, além de fugir, é ir até o moinho. — O clérigo tentou se contentar com a promessa de matar o lich após a missão.
— E o que nós sabemos até agora? — O guerreiro trocou olhares com cada membro do grupo.
— Essas pessoas estão sendo controladas. — Keiniz tinha certeza. — Eu acredito que por uma ilusão coletiva.
Adran tentou pensar em uma explicação.
— Um corpo não passa de um véu que retrata a passagem do tempo… — O clérigo tomou o braço decepado da criatura. — Mas alguma coisa nesses aberrantes fez com que eles parassem de envelhecer e passassem a simplesmente… Mudar.
— Uma mutação que interrompe o envelhecimento e altera o corpo — o druida refletiu. — Não é muito diferente do meu dom.
— Mas o que me impressionou naquelas coisas foi a alma delas… A falta, no caso.
— Então estamos lidando com um ladrão de almas?
— Eu não tenho certeza se elas foram roubadas. Um corpo não se move sem uma alma, o que me leva a crer que ainda tem alguma coisa dentro deles, e eu tenho certeza que não é divino ou profano.
— O que você acha que pode ser?
— Eu tenho mais de 300 anos e posso dizer, com certeza, que eu já explorei praticamente todo o mundo… — Adran mordeu os lábios até sangrarem. — E eu nunca vi nada parecido.
Sandor se juntou à teorização.
— Então nós estamos diante de algo completamente novo. — Serrou os punhos. — Isso é melhor do que eu pensava.
— Você é um clichê magnífico. — O clérigo não escondeu seu descontentamento. — Mas nós podemos estar diante de algo inextinguível. Esse vilarejo deve ter enfurecido os deuses.
— Não seja tolo, Adran! — Keiniz rilhou os dentes, lembrando-se do passado. — Não é como se os deuses se importassem conosco.
Ele estava certo.