O Horror de Portsworth - Capítulo 5
PARTE 5: INFERNO PARTICULAR
37 ANOS ATRÁS
“A vida é como fumar um cigarro. A cada segundo, você está morrendo e sabe disso. Cada vez mais, você se vicia com os sentimentos que vêm à tona. E quanto mais valor você der… Menos vida você tem. Eu precisava encontrar um jeito de contornar essa lei. A Morte ainda não era bem-vinda.”
Alderman sentia um medo primitivo. Seu fim era iminente. Sentia isso em cada parte do seu corpo, que lentamente era tomado pela doença. O sangue fluindo em suas veias era como ácido, queimando-o a todo o momento. Seus órgãos estavam apodrecendo num processo de autodestruição. Respirar estava ficando cada vez mais difícil e doloroso.
Em seu castelo de pedras, no topo de uma colina solitária, o nobre se protegia de uma tempestade de relâmpagos, descendo lentamente a escadaria para a masmorra. Aproximou sua mão trêmula da maçaneta de uma espessa porta que o separava do local onde o maior dos pecados seria cometido.
O vasto cômodo empoeirado era iluminado parcamente por velas, deixando um clima nefasto no ar. Cinco indivíduos dividiam o recinto com Alderman. Três deles eram crianças, acorrentadas pelo pescoço a uma tora de aço presa ao chão. Estavam chorando desesperadas, gritando por suas mães. Haviam aceitado limpar o castelo em troca de alimento para suas famílias, que nunca mais veriam. Abaixo dos pequenos, jazia um símbolo de invocação, feito com o escasso sangue do nobre que conduziria o ritual. Os pequenos imploravam e se debatiam, mas de nada adiantava.
Suando bicas e tentando secar-se com um pano sujo, o mordomo de Alderman aproximou-se de seu amo cada vez mais pálido.
— Milorde… — O velho tentou pensar em um jeito de impedir tamanha heresia. Sua mente o traiu não lhe dando respostas. — Acha mesmo que é uma boa ideia?
— Não há outro jeito, Alfred — o nobre ignorou seu mordomo, firmando o olhar em seu fiel carrasco, armado com uma foice. — Josef… Faça.
— Já era hora. — O gigante lambeu seus lábios, aproveitando cada momento. Recoberto por seu capuz negro, sabia que ninguém notaria seu imenso prazer no trabalho.
— Seja rápido. — Alderman segurou o choro.
Num único movimento, a foice calou três coitados. O sangue escorreu farto, entrando pelas frestas das pedras e manchando todo o símbolo do ritual, que adotou um brilho escarlate. A carne das crianças se decompôs e fundiu-se com o sangue borbulhante, gerando uma única criatura amórfica, que se erguia inabalável.
O Portão dos Infernos se abriu. Nenhum véu cobriria a perdição iminente.
O Demônio havia chegado.
— Deus dos Infernos, Pai dos Demônios e Criador de Todos os Pactos! — Alderman abriu seus braços, iluminado pela luz macabra. — FAÇA COM QUE A MORTE NÃO ME IMPEÇA DE CONHECER O MUNDO INTEIRO!
ATUALMENTE
DENTRO DO ABISMO NO MOINHO
— Não faça isso! — Alderman acordou gritando, arrependido.
Num susto, Friynn caiu para trás, enquanto emanava calor por suas mãos e libertava o lich recém-descongelado.
— Meu corpo… — O caçador observou as mãos esqueléticas e encharcadas, ainda com alguns pedaços de gelo.
— É, foi mal por isso, mas não tinha como saber que era você, desse jeito aí. — Friynn ajudou o monstro a se levantar. — Mas eu sempre soube que havia algo de errado com você.
— Eu sei.
A visão de Alderman se acostumou com a escuridão e passou a analisar o ambiente. Percebera que tudo era feito de pedra escavada, com um teto tomado por estalactites. Haviam entrado em uma caverna.
Com exceção do lich, que não conseguia sentir nada além de tristeza e culpa, todos no grupo experienciavam um enjoo crescente, desde que adentraram o túnel no moinho. Era como se o ar tivesse adotado a pressão das profundezas marinhas. Sandor se aproximava do grupo, mancando.
— E aí?! — Keiniz se aproximou, segurando a vontade de vomitar.
— Nada… — O guerreiro tinha grandes olheiras. — A saída sumiu. Quanto mais eu subo, mais parece que eu desci… E a dor fica insuportável… Eu não entendo esse lugar!
— Você nos matou! — Lecram investiu contra o líder, com mais medo do que ódio.
— Isso não é motivo para se desesperar. — Adran parou entre os dois. — Toda vida é uma sentença de morte e ele só adiantou a nossa.
Keiniz não controlou as lágrimas. Elas desceram por sua face, acompanhadas por sangue. Estava ficando cego.
Friynn tremia, enquanto suas escamas caíam ao chão pela terceira vez desde que entraram, mesmo sendo um fenômeno que só acontecia uma vez ao ano. Não sabiam há quanto tempo estavam presos no abismo. Suas unhas cresciam numa velocidade impressionante, enquanto os cabelos de todos caíam em tufos, apenas para nascer de novo alguns segundos depois. Quanto mais eles tentavam descer no túnel, mais turva era a visão, frente a imagens incompreensíveis. Em dado momento, perceberam que o chão era macio e todo o ambiente parecia vivo. Voltaram correndo até a parte mais larga da caverna, onde se escondiam do desconhecido.
Os deuses e poderes divinos não os alcançavam. Adran sentia-se inútil, mesmo estando cada vez mais próximo da Morte. Os itens mágicos não funcionavam mais. Daratukk jazia enferrujada, já sem fio. Lecram não segurou o vômito, que veio acompanhado de pedaços do intestino. Alderman ficou calado, imerso no seu desespero particular. Sandor deveria estar inconsolável por ter arrastado seu grupo até a caverna, ao invés de fugir com eles.
O guerreiro soltou uma risada histérica, indo ao chão e ganhando o desprezo de todos. Não conseguia se controlar.
Poucos minutos depois de Alderman acordar e Sandor desistir de encontrar uma saída, Keiniz passou a chorar histericamente, enquanto perdia cada vez mais de seu fluido vital, encharcando-se de sangue.
Não havia sons ou cheiro, somente interpretações mal feitas que seus cérebros exaustos tentavam gerar. Todos sentiam frio e calor, ao mesmo tempo. Estavam sendo tomados por uma sede imensa, mas não havia o que beber e, se pensassem em água, eram acometidos pela vontade de vomitar. Era como se suas entranhas estivessem rastejando dentro de si, ganhando vida própria e tornando-se parasitas.
— Nós precisamos dormir um pouco. — Lecram apoiou-se na parede e sentiu espinhos em suas costas.
O ambiente insistia em feri-los.
— Descansar aqui seria desistir da própria vida. — Sandor alcançou um pouco de consciência.
Adran riu pela primeira vez em décadas.
— Pelo menos a minha deusa está aqui, por toda a parte. — Suas pernas bambearam e o clérigo foi ao chão. — Mas ela me abandonou.
As botas do elfo afundaram na pedra, que se tornava uma areia movediça de sangue e excrementos. Todos se ergueram com rapidez.
— Isso… É algum tipo de magia?! — Lecram percebera que sua pele estava descascando.
Lentamente, o druida deixava de ser o meio-elfo que todos conheceram. Sua pele foi se tornando cinza, enquanto sua cabeça se esticava consideravelmente. Os olhos tornaram-se dois orbes negros. Voltava a ser o que sempre foi: um ser amaldiçoado.
— Minha transformação… — Sua voz ficava cada vez mais grave. — Está se desfazendo!
Ele estava sozinho.
No chão inundado de sangue, um corpo boiou até o druida. Um meio-elfo, de cabelos verdes, pele imaculada e uma beleza que seria estonteante, se não fosse pelo buraco em seu crânio, por onde o cérebro havia sido extraído. Os olhos do cadáver fitaram os do impostor.
— Por que você fez isso comigo?
— Eles iam me levar de volta para os Infernos… — Lecram caiu para trás, afundando metade do corpo cinzento no sangue farto. — Eu não queria!
Nenhuma das cores aos olhos de Sandor era reconhecível. Nenhuma forma fazia sentido naquela caverna que, lentamente, se tornava um universo inteiro. Os pigmentos desconhecidos começaram a ser adaptados para sua mente fraca, para que não enlouquecesse apenas com a visão do novo mundo. Seu subconsciente tentava mascarar a verdade indescritível, enquanto tudo parecia vivo e em constante mutação. Mesmo quando pensava que já havia suportado e ocultado toda aquela loucura, algumas imagens insistiam em vazar para dentro dos olhos, lembrando-lhe do incompreensível.
Sandor sentiu uma presença. Sombras com formas impossíveis passaram a cercá-lo.
— QUEM SÃO VOCÊS?! — O guerreiro insignificante batia sua espada para todos os lados, tentando se defender. — O QUE QUEREM COMIGO?!
— Socorro! — A maior sombra fez a familiar voz de uma mulher adulta. — Me tira daqui, amor… Eu imploro!
— VOCÊ NÃO É ELA! — Sandor errou o golpe contra a sombra, que parecia perto e longe, ao mesmo tempo.
— Papai… — A menor das sombras, também feminina, agarrou-se às pernas do guerreiro. — Por que você deixou aqueles homens fazerem isso comigo?
O cadáver do verdadeiro Lecram boiava cada vez mais próximo do impostor.
— Eu não queria morrer.
— FICA QUIETO! — O druida pôs as mãos na cabeça, gritando e chorando incessantemente. — FAÇA SILÊNCIO!!!
E o passado veio à tona.
7 ANOS ATRÁS
Doppelgangers.
Aberrações grotescas advindas da mais rasa camada dos Nove Infernos. Criaturas perigosas o suficiente para escapar ao mundo dos mortais, sempre sedentos por uma identidade e uma forma para roubarem. São a personificação perfeita da inveja, sempre polindo e lustrando seus corpos roubados, para que fossem lindos por fora, mesmo que terríveis por dentro.
Era noite e o jovem Lecram voltava para casa, depois de alimentar os filhotes de um cervo que havia sido caçado recentemente. Estava apenas cumprindo seu papel como druida, quando percebeu um movimento estranho no solo próximo. A primeira parte que chegou à superfície foram as garras sujas de terra e cobertas de minhocas. O corpo cinza e desnutrido, com costelas à mostra e vértebras sobressalentes nas costas, ergueu-se do chão, tendo completado sua fuga.
— Pelos deuses! — O jovem soltou sua lamparina, num susto.
Atraiu a atenção de seu algoz faminto. Tentou correr, mas pôde dar apenas cinco passos, antes de sentir o peso da criatura contra suas costas. Seu corpo foi prensado contra o chão lamacento, onde suas lágrimas se misturavam ao sangue que escorria de sua cabeça. O demônio fincara os dentes na caixa craniana, arrancando primeiro a carne e fazendo o meio-elfo gritar de agonia.
— POR FAVOR! EU… — Antes que pudesse negociar sua vida, sentiu uma pressão na cabeça.
O crânio rachou. Quebrando seus dentes na refeição rígida, o doppelganger continuou o trabalho até criar seu caminho ao cérebro do jovem indefeso. Lecram sentiu uma confusão quase tão grande quanto a dor da morte, no momento em que seu cérebro foi sendo sugado pelo demônio. O impostor saboreou a carne macia e viscosa, mastigando as fibras até que não restasse nada. Quando finalmente terminou, ele já era um meio-elfo belíssimo, com a boca suja de sangue e todas as memórias de seu jantar.
— Você é apenas uma farsa. — O cadáver boiando no sangue rompeu as memórias dolorosas do impostor.
— NÃO! — O druida ativou seus poderes, adquirindo a forma de um morcego. — ISSO JÁ FOI LONGE DEMAIS, EU VOU EMBORA!
Uma terceira sombra investiu contra Sandor. Diferente das outras duas, essa parecia querer feri-lo, pois arremetia contra sua face. Num movimento certeiro, o humano tentou cortar o morcego ao meio, mas sua lâmina teve capacidade apenas para cravar-se na cabeça do alvo.
— San… Dor… — foram as últimas palavras do impostor.
Sandor reconheceu sua voz. Havia assassinado o primeiro de seus companheiros.