O Invocador Sagrado - Capítulo 10
O vácuo, coberto por infinitas estrelas numa vastidão sem fim. Roan flutuava nesse mar vazio, seus cabelos se remexiam sem direção.
Olhou para todos os lugares, em busca de um sinal ou indicativo de onde estava. Não sabia como respirava, nem como estava vivo naquela escuridão fria.
Os arredores eram tão confusos e enigmáticos que seus olhos não pararam quietos por um instante sequer.
Tentou gritar, mas sua boca não se moveu e as cordas vocais permaneceram paradas. Tentou se mexer, mas seus braços e pernas continuaram inertes, levando seu corpo à deriva pelo espaço.
Sua mente nublada mal conseguia distinguir o tempo que passou voando por aquele sonho bizarro, até que um tique-taque puxou sua atenção.
Elevou os olhos, um largo relógio pendia acima dele. Fazia um movimento pendular, ia da direita para a esquerda num único balanço, os ponteiros se mexiam com lerdeza.
O som desse movimento ressoava pela vastidão, ritmados com os segundos. Só que, o que o assustou era o ser de pé acima do gigante relógio.
Era uma criatura humanóide, feita de inúmeras constelações e estrelas, os olhos eram dois sóis de diferentes cores e uma dezena de planetas a orbitava.
Um cabelo translúcido e preenchido por poeira espacial balançava ao seu redor, movendo-se devagar para cima. O ser olhou para baixo, para onde Roan estava, os sóis ganharam um brilho intenso.
A deusa Yondra lhe observa.
O clarão cegou Roan, que no instante seguinte saltou da beliche e quase bateu a cabeça no teto.
Olhou ao redor, não era mais aquela escuridão claustrofóbica e amedrontadora, era só um simples quartinho de uma cabine.
“O que diabos aconteceu…?”
Desceu a escadaria lateral da beliche. O sonho reapareceu em rápidos flashes, tornando ainda mais difícil montar uma memória concreta.
A única coisa marcante que não saia de sua cabeça era a maldita mensagem amarela.
Lavou o rosto com água, sua cabeça pesava toda vez que tentava relembrar do que havia visto.
Por um momento, pensou que era uma alucinação, até olhar para o cajado apoiado na parede. Pegou-o, então uma janela amarelada surgiu.
A deusa Yondra lhe observa.
“Esquisita!”
Largou o cajado, a janela fechou logo em seguida. Seus olhos se estreitaram, estalou os dedos e tirou o próprio lençol da cama. Ao segurar o cajado com as mãos cobertas, nenhuma janela surgiu.
Envolveu o objeto na coberta e o amarrou na ponta da cama, só o tiraria dali quando fosse conveniente. Ser monitorado por uma entidade estava completamente fora de cogitação.
“Deusa Yondra… não é a mesma deusa que Lezandra cultuava? Será que Pólito tem algo falando sobre ela?”
Saiu do compartimento dos quartos, optou por passear pela locomotiva para acalmar um pouco sua mente, ao mesmo tempo que iria atrás de uma informação enquanto os demais estivessem adormecidos.
Junto da cabine principal, havia outros quatro compartimentos, divididos por portas de aço revestido e perfeitamente iluminados por pedras luminosas dentro de esferas de vidro presas ao teto.
Na extremidade do veículo estavam os quartos, na qual Roan tinha acabado de sair. Os quartos eram subdivididos por finas paredes nas laterais e dentro desses espacinhos cabia uma beliche e um criado-mudo.
O vagão seguinte era uma réplica de uma taverna; vários crânios estavam expostos atrás de um balcão, próximos a várias garrafas de vinhos e cervejas enfileiradas em bancadas de pedra, cada uma constando um sabor diferente e exótico numa etiqueta.
Tinha uma plaquinha suspensa por cordas acima do balcão escrito: “NÃO TOCAR NAS CERVEJAS SEM A PERMISSÃO DE PÓLITO”.
Livros foram organizados por cor em duas estantes no canto da sala. Eram pequenos, mas Roan se impressionou ao folhear o conteúdo.
A maioria falava sobre as religiões e frequentemente citavam a deusa Yondra, a regente do céu, do sol e da lua, também referida como a “criadora do mundo”.
Era uma crença interessante e cheia de cultura. Ele parou para analisar as informações e começou a tomar notas dos detalhes que achava importante.
As nações de Serpentina possuíam cultos voltados a deuses específicos, porém Yondra era cultuada em todas.
O país que estava era o Império Vaniense, localizado ao oeste do continente, uma nação que adorava tanto Collona, a deusa da vida, quanto a deusa do céu.
A primeira se dava ao fato das vastas terras férteis, às grandes florestas e a união dos elfos e humanos, já a segunda não tinha explicação exata.
O mais engraçado dessa história era que, de acordo com os livros, havia uma prática muito apoiada de casamento entre espécies diferentes, dada a um acordo entre os elfos da Floresta de Marfim e os humanos das Colinas Foscas.
“Agora que parei pra pensar, os elfos deviam ter odiado esse acordo… ter um humano na sua família assim, do nada.”, pensou, erguendo-se da poltrona. “Imagino o que passava na cabeça da imperatriz que bolou esse acordo. Será que ela tinha tara por humanos? Vai saber…”
Um pouco cansado da leitura, fechou o livro e o pôs de volta na estante. Em seguida, retomou o seu rápido passeio pelas cabines.
O terceiro compartimento era uma enorme sala branca, linhas pretas percorriam do chão até uma claraboia circular no topo do recinto. As linhas terminavam em um botão ao lado de uma porta metálica.
Por um momento, os dedos do invocador coçaram para tocar o botão, contudo o aviso da bebida já dizia que o anão desgostava que tocassem em suas coisas, então passou reto.
Por fim, o quarto cômodo era um pequeno espaço para adoração da deusa que continha um altar encostado ao lado de uma escrivaninha.
Rolos de pergaminho pegavam poeira em cima da mesa, perto dum livro de capa dura fechado por um cadeado.
“Pólito tem o hábito de escrever um diário?” Roan passou os dedos no livro. “É, alguns segredos devem ser guardados muito bem…”
Ao conferir um pouco dos pergaminhos, encontrou inúmeros textos semelhantes a orações. Todos tinham símbolos de aves, sóis e luas inclusos nas bordas do papel.
Por sorte, achou um pergaminho esquisito que não era voltada a oração, e sim a um tipo de técnica antiga. Tomou um assento, e em voz alta repetiu o que estava no pergaminho.
“Do mais alto plano ao mais baixo plano, do mais distante ao mais próximo, tudo está atenuadamente conectado a uma regra sem fim que puxa e solta a força das criaturas. Seja a própria vida ou o plano divino que os deuses tenham feito para nós, esta relação nunca se quebra.
Sonnemund, o primeiro nome da deusa, consiste num paralelo frágil e infinito da conexão dos planos. Qualquer um que o faça terá acesso a qualquer tipo de poder, do mais santo ao mais herético. Essa liberdade sem fim trará um novo ciclo ao nosso plano mortal, independente de quem possua.”
Ele suspirou, era um monte de palavras sem sentido que não tinham valor. Fechou o pergaminho, e como o último vagão era a cabine do piloto, deu meia-volta e retornou à taverna.
Lá, aconchegou-se num sofá de veludo vermelho, enquanto olhava os outros detalhes. Era quieto, mal dava para sentir o cheiro de bebida, o ambiente trazia uma certa paranóia por estar tão vazio.
Na direção oposta à dele, notou um espelho refletindo seu corpo e rosto. A barba havia crescido bastante e ele tinha ganho algumas olheiras por ficar tanto tempo sem dormir.
Contudo o reflexo fez seu peito se remoer, um frio na barriga o forçou a desviar o olhar. Pareceu sujo para si mesmo, e só naquele momento se tocava que aos poucos o mundo ao redor era diferente de um jogo comum.
Seu pescoço ardia, sentia as costas queimarem toda vez que a memória do demogorgon vinha à mente.
“Por que eu estou aqui…?”, pensou, com um punho apoiado ao braço do sofá. “Fiz tudo por instinto e por conta desse sistema me dar essa oportunidade, mas e meu trabalho? E o meu escritório? E minha família?”
As perguntas o cansavam mais que ver a própria face suja. Jogou-se para trás e encarou o teto de madeira, as preocupações não paravam de surgir, e somente uma ideia se encravada em sua cabeça: voltar para casa.
“Eu não deveria estar aqui… droga, onde eu estava com a cabeça? Eu poderia ter morrido muitas vezes!” Ele se levantou, passando a mão no cabelo. “Poderia ter morrido para aquele lobo, poderia ter morrido naquele covil… diabos, eu quase morri contra aquele demônio!”
Seu coração bateu mais rápido, as mãos tremeram naquele pequeno surto. Qualquer vacilo ou erro o teria matado; a sorte evitou que o pior acontecesse, porém essa sorte não duraria para sempre.
Voltou ao assento, quanto mais pensava, mais se sentia louco por usar como desculpa que “vivia num jogo” para cometer maluquices.
Era ainda pior imaginar que, de acordo com Lezandra, alguém o seguiria e tentaria matá-lo por atrapalhar os planos de um culto sinistro.
Mesmo com o estômago revirando de medo, uma excitação surgia e o impulsionava para ter luta franca contra inimigos de verdade, ele desejava aprender novas magias, usar novas invocações e assim partir para cima dos “vilões”.
Sua imaginação criava cenários, embates épicos e centenas de feitiços poderosos, já o outro lado do cérebro implorava para esquecer a ideia de se aventurar. Felizmente, seus pensamentos não duraram tanto.
— Ó sonin bom — disse a voz de uma mulher vinda da saída dos dormitórios. — Ah, bom dia, Roan.
Era Cassandra, que sem compromisso algum procurou comida debaixo do balcão de bebidas. De lá tirou uma maçã, na qual deu uma bela mordida antes de se estirar no mesmo sofá de veludo
— Pra quê essa cara?
— Eu só estava… — A língua travou, Roan teve que ajeitar a postura antes de continuar. — Pensando.
— Aham, sei, tu é mesmo alguém que pensa muito.
Teria tido um silêncio constrangedor se não fosse pelo som de mastigadas. Roan a olhava de relance, procurando adivinhar o que se passava na cabeça dela, pena que o rosto desinteressado da loira falava muito pouco.
— Ei — ela chamou. —, só pra saber, ‘cê esqueceu daquilo?
— Daquilo? — O homem a fitou e relembrou dos dias anteriores. — Você se refere ao que você falou na alfaiataria, a aposta, a vila ou você xingando Pólito durante o sono?
— Credo! Eu xinguei ele mesmo?!
— Claro que não, mas seria engraçado se xingasse.
— Ora, seu…! — Um soquinho no ombro dele serviu ao propósito.
Depois de algumas risadas e trocas de olhares curtas, Cassandra arremessou o miolo da maçã numa cestinha há metros de distância. Foi um ótimo arremesso de três pontos.
Roan a viu suspirar, os olhos cansados mudavam entre si e as prateleiras de bebidas. Fez um gesto com o dedo, apontando para uma garrafa aberta no cantinho do balcão.
Só de olhar, já tinha entendido quem teria aberto e tomado metade da garrafa. Não era surpresa, sua amiga era uma beberrona de carteirinha, só se safava porque ele sempre estava por perto para salvar sua pele.
— Se lembra das rodadas de bebida depois do expediente? — perguntou, levantando uma das mãos e realizando um sinal de virar uma garrafa.
— Era muito bom. — A mulher passou a mão no cabelo e enrolou os cachos loiros. — Eu queria muito beber aquela cerveja com gostinho de morango que uma vez me deram…
— Na verdade, sua memória está meio confusa sobre isso… — Ele piscou o olho. — Você caiu no chão pelo gosto ruim e tive que te levar pro apartamento. O negócio era tão ruim que você nem foi trabalhar e me forçou a ir atrás de uma técnica pra te ajudar a melhorar.
— Minha nossa senhora… como diabos tu lembra disso?
Uma das sobrancelhas dela se levantou, o rosto se contorceu em surpresa e ela aplaudiu aquela memória incrivelmente boa. Porém, diferente do que Roan esperava, em pouco tempo a expressão feliz se tornou melancólica.
— Tenho que te confessar uma coisa — disse, enquanto abraçou as pernas e apoiou a cabeça entre os joelhos. — Eu me sinto estranha e muito esquisita desde que chegamos aqui…
— Estranha como?
— Não sei explicar… é como querer bater em tudo e sentir raiva de tudo.
— Já já você vira uma mulher verde. — Outra leva de risadas os tirou do sério.
— Deixa de zoação, seu chato. — Ela o fitou nos olhos, seu tom tinha até mesmo mudado, assumindo um timbre alto e sério. — Eu só me preocupo, sabe? Gosto de você, e por isso não quero te dar um soco na fuça.
O peito de Roan aqueceu, junto das mãos e das bochechas. Um “gosto de você” de sua amiga era tão raro ao ponto de levar o elogio para o coração.
— Sério? Então acho que seria uma boa hora pra gente falar do que houve na alfaiataria.
— Pelo amor de Deus, não me lembra disso. — Cassandra escondeu o rosto, com uma vontade imensa de se enfiar na terra. — Eu só falei demais, nem tudo o que sai da minha boca é verdade e tal…
— Hãã, deixa eu contar… — O homem levantou os dedos conforme enumerava. — Primeiro, você sempre me esperava antes de sair do trabalho. Segundo, eu escutei tudinho na alfaiataria. Terceiro, você fez muito chilique só pra saber o que tinha acontecido comigo. Quarto…
— Tá bom! Chega! Chega! — A loira abanou as mãos para o alto e ameaçou sufocá-lo. — Só cala a boca, eu não aguento tanta vergonha!
— Certo, certo, só relaxa um pouco. — Roan desviava despretensiosamente das garras mortais da mulher, que certamente tirariam seu pescoço do lugar. — De toda forma, o que eu realmente queria falar com você é sobre voltarmos pra Terra.
— Voltar? — A mulher desviou o olhar, deu uma batidinha nos joelhos. — Bem… precisamos, né. Não é como se nada fosse acontecer enquanto estamos fora.
Num momento de silêncio, ela encostou a cabeça no ombro do amigo, esticando as pernas para o braço do sofá.
— Bora pelo menos aproveitar a viagem, além do mais, não é todo dia que você literalmente vive um jogo.
Após falar, estalou os dedos, tendo lembrado de um detalhe especial. Já fazia um tempo que guardava aquele objeto, então retirou a carta do bolso para mostrar a seu amigo. Estava lacrada, com um símbolo de ave estampado no selo e cercada por entalhes dourados.
— E ainda temos que entregar isso! Então vamos aproveitar até lá, tudo dará certo.
Roan afagou a cabeça de Cassandra, esboçou um pequeno sorriso e respondeu: — É, vamos aproveitar então.
A conversa havia terminado, só restou o som das rodas da locomotiva. Usando o ombro dele como travesseiro, ela escondeu as bochechas rubras com os braços sobre o rosto e caiu no sono.
O homem suspirou, deixou sua cabeça cair e também fechou os olhos, apenas para adormecer ao lado dela, apenas para não interromper seu sono.