O Invocador Sagrado - Capítulo 11
Diário de Roan
Ps: Peguei emprestado um caderno vazio e tinta de Pólito, espero que ele não se incomode.
Dia 1 — Nunca fui de escrever, mas preferi começar este diário para não me esquecer das coisas que tem ocorrido nesses últimos dias.
É muita informação pra minha cabeça; o contrato, o sistema, o Sexto Olho, os Paladinos, demônios… Caramba, minha mente dói só de pensar.
De qualquer jeito, hoje não ocorreram tantas coisas. Tive uma pequena discussão com Cass, acho que voltarei pra casa depois de entregar essa carta.
Li alguns livros da estante de Pólito, ele não se incomodou que eu os pegasse. Não achei nada de especial, no máximo notas sobre o que fazer em ritual X ou Y, mas o que eu faria com isso?
Aqui embaixo não tenho noção do dia ou da noite, o tempo parece passar devagar. Só consegui esperar lendo ou jogando Glossário Aprofundado com Cass e Ravi.
Bem, talvez eu anote uma estratégia ou outra mais tarde pra usar nesse jogo, já que será meu passatempo até sairmos dessa máquina.
Dormirei agora, estou com muito sono, porém sinto um pressentimento ruim dessa viagem. Tomara que minha intuição esteja errada, se não, estou ferrado.
Dia 3 — Agradeço pela minha intuição não ser boa, nada de ruim aconteceu desde então.
Hoje, enquanto lia, Vatares me chamou para ver o vagão da sala branca. Fiquei impressionado ao descobrir que aquele lugar era reservado para um treino.
— As paredes são duras para segurar qualquer impacto — disse ele, enquanto dávamos voltas pela sala. — O senhor pode meditar, usar suas magias e fazer o que bem entender. Se porventura ocorrer algum problema, basta pressionar aquele botão. — Ele apontou para o botão cinza ao lado da porta.
Acenei com a cabeça, e assim que ele foi embora quis testar para ver se era verdade o que havia dito. Disparei balas negras nas paredes, elas sumiram antes de encostar nelas, assim como na vez do covil.
Eu não estava tão afim de ficar sozinho, então chamei Cass e Ravi para aprimorarmos alguns glifos. Eles aceitaram imediatamente meu pedido.
Cass ficou se pagando de bonzona, fazendo um monte de exercícios físicos em série. Já eu meramente pratiquei magia negra, quero reproduzir aquele efeito de repulsão que Lezandra usou.
— Senhor Roan — chamou-me Ravi. — O senhor poderia invocar duas daquelas criaturas do poço pra eu utilizar, por favor?
— Claro. — Não recusei o pedido, pois estou em débito com o garoto.
Invoquei dois golens de madeira e ordenei-os a seguir as instruções de Ravi. Depois disso, me concentrei puramente no elemento escuridão e procurei um meio de amplificar minha lista de magias.
Tentei de todas as formas, mas foi em vão. Tem algo faltando, um detalhezinho que preciso saber para usar magia… só não sei o que.
Também me sinto muito cansado e não sei o motivo. Não peguei tão pesado no treino, mas toda vez que forço um pouco a barra, meu corpo dói e preciso ficar uns segundos parados para me mexer de novo.
Quando chequei os status, percebi que a mana possuía um (-10) ao lado. Não entendi o que significa, o sistema evita falar. Espero que passe logo, sou muito dependente desse atributo.
Enfim, no final do dia, fui cozinhar o jantar. Jamais deixarei Cass tomar conta da cozinha, ela mataria todos à bordo! Estou escrevendo isso logo antes de dormir, para não perder o costume.
Dia 7 — Acho que já faz uma semana desde que comecei a escrever, estou cronometrando os dias de acordo com o meu próprio sono.
Enfim tive como organizar as informações nos livros de Pólito de uma forma consistente e também percebi alguns detalhes sobre o sistema de glifos. Vou anotar as informações desse mundo e depois sobre o sistema para não me perder.
O nome desse mundo ou continente é Serpentina e há três ou quatro países governando tudo, sendo um deles o Império Vaniense, o país em que estou atualmente.
O que mais me chamou atenção foi a República Diáfana, localizada no leste do continente e organizada nas Cordilheiras de Obsidiana. Esse lugar é descrito como “lar dos anões” ou “A Forja do Vulcão”.
Tem vários contos dizendo que armas poderosas foram forjadas lá, e que os equipamentos dos Paladinos para combater os demônios são construídos a partir de um material do vulcão chamado Mithril. Não tem muito mais que isso, então vou para o próximo.
No extremo sul do continente, há um deserto chamado de “Deserto de Coral”. Não tem nenhuma indicação se é um reino ou coisa do tipo, no mais é mostrado o quão disputada a região é entre meio-demônios e orcs.
O nome vem de um fenômeno que ocorreu há muito tempo. Antigamente a região era um oceano, mas que secou e deixou barreiras de corais no lugar.
Por sinal, como devem ser esses meio-demônios e por que os Paladinos permitem que eles andem livremente por lá? Preciso pesquisar mais tarde.
O último país é algo meio esquisito, é mais como um aglomerado de territórios controlados pelos outros países, chamada Província Central.
Por tudo ser tão juntinho, há uma mistura do povo ali, e os livros dizem que houveram revoltas nos últimos anos para se livrar do domínio das outras regiões.
Tem mais um detalhe sobre a Província Central; lá se localiza o templo onde todos os Paladinos são treinados e onde os “santos” de cada religião do continente se reúnem.
Pelo visto, o povo desse mundo preza muito pela religião, principalmente com essa deusa Yondra.
Que dor… é muito complicado manusear tanta informação, mas ainda preciso falar do sistema para me lembrar.
Não tive tanto progresso, mas descobri que se você fizer certo nível de exercício físico, seus atributos evoluem naturalmente. Deve ter sido o motivo de Cass realizar aqueles exercícios mais cedo.
A única exceção dessa regra é mana. Ao contrário de só usar magias, é necessário meditar e se concentrar para pegar uns “pontinhos azuis” no ar. Ao menos, é o que vejo quando tento meditar.
É tipo respirar, você puxa os pontinhos para si e depois os solta para o ar. Foi assim que aumentei minha mana até a mesma quantia da penalidade imposta pelo sistema. Se eu não tivesse, já teria uns 60 de mana…
Também vou adicionar que descobri como aumentar minha lista de feitiços; basta imaginar e reutilizar o elemento em questão.
Por exemplo, se eu preciso de uma bola que cause dano, basta que eu imagine uma esfera negra e una os pontinhos azuis até formar o que preciso.
Esse conceito vale aparentemente funcionou quando repliquei o feitiço de repulsão de Lezandra. O que fiz foi puxar os pontinhos e empurrá-los de volta usando o elemento escuridão.
Lembro de ter aparecido uma janela indicando que eu aprendi o feitiço Barreira Sombria. Além disso, meu glifo de Magia Negra subiu para o rank D!
Não é muito, mas ter que gastar menos mana para cada feitiço usado me parece um grande negócio. Certo… acho que já repassei tudo aqui, vou dormir.
Pólito diz estarmos perto de chegar ao nosso destino, mal posso esperar pra sair desse trem sem fim!
*****
Uma noite numa grande cidade era o melhor lar que um monstro poderia conhecer.
Vultos negros atravessavam os telhados de pedra de altas casas, banhados na luz da lua e com centenas de pessoas abaixo de seus pés.
As ruas estavam tumultuosas, inúmeras pessoas se empurravam para conseguir um pouco de espaço naquela praça, onde ocorria um gigantesco evento para os plebeus e nobres.
Carroças puxaram um homem em direção a um palanque de madeira. Recusava-se a seguir em frente, seus pés se arrastavam no chão conforme os cavalos andavam.
Ele foi colocado no palco, jogado de cara contra as farpas de madeira, amarrado em cordas e vestido com trapos. Seu rosto tinha diversos cortes e seu cabelo era raspado.
Um sujeito mascarado subiu no palanque, levando consigo um longo chicote de pontas metálicas.
O chicote girou em suas mãos e acertou nas costas do homem caído; cada grito de dor causava urros de satisfação na plateia.
No alto da torre de um sino, uma sombra assistia ao espetáculo, as longas garras roçavam nas paredes e os olhos vazios refletiam a sua própria alma.
— Humanos… tão nojentos… — Sua voz soava distorcida, afinando e engrossando. — Os mais saborosos são sempre os impuros… pena que não pude experimentar nenhum dos fiéis do culto de meu senhor, pois não são meus próprios servos…
Os vultos se posicionaram entre a multidão, na borda dos telhados e por todos os becos da cidade. Um sorriso vermelho surgiu no rosto da criatura, cheio de escárnio e ódio contra a humanidade.
O monstro assistiu ao açoite com prazer, para ele os gritos de dor soaram como passarinhos cantando e o sangue derramado era como mel escorrendo.
Pouco tempo depois, outras figuras compareceram à praça, velhos e velhas dos mais variados estilos, mas todos com uma característica em comum: batinas arroxeadas e colarinhos cinzas.
O líder do grupo, um ancião de bengala e com um grande símbolo de pássaro no chapéu pontudo que usava, ergueu a mão em direção ao torturador, o gesto imediatamente o fez os estalos do chicote pararem.
— Cidadãos de Saint Jester, vejam este homem. — O padre apontou para o sujeito caído. — Um pecador, um profanador da santidade, um sujeito de má índole que ousou sujar o nosso templo com seus ritos!
Urros enfurecidos emergiram da multidão, tomates foram lançados na direção do homem, que não conseguia reagir direito. O ancião mais uma vez levantou a mão, então um silêncio se instalou na praça.
— Mas somos justos, e não animais que focam sua raiva em alguém. Somos cultos, povo de Saint Jester! — O padre elevou a bengala e deu uma forte batida no chão. — Por isso, escutem com atenção o que o paladino de maior confiança de nossa cidade, o conde Vales Vatares.
Um indivíduo deu um passo em frente, as placas da armadura eram tão brancas que refletiam a pouca luz na praça.
Era possível enxergar sua feição, um rosto despreocupado e uma longa barba dourada, ostentando em parte uma grande vitalidade.
— Virtuoso-Canário Gobes e povo de Saint Jester, permitam-me descrever o que vi — anunciou, parando na borda do palco. — Com toda certeza, escutei murmúrios de “Tenho certeza que esse culto não passa de enganação, minha avó nunca foi recuperada por nenhuma artimanha dos Canários e logo morrerá.”, além de outros comentários que, por respeito a deusa, não falarei. Sem contar nos gestos ofensivos e das risadas… aquilo feriu até minha alma…
— Já basta, paladino Vales — falou Gobes, e conforme seu pedido, o paladino voltou ao lugar que estava. — Então, o que acham, povo?
— Açoite-no até os ossos!
— Joguem-no do topo do monte de Gondrael!
— Matem sua família e extermine para sempre sua linhagem!
Xingamentos, junto de inúmeros desejos de morte, fizeram o monstro do sino explodir em risadas; o melhor de se ver era o sofrimento daquela pessoa no palco.
Aos poucos, a humilhação tomava conta do cérebro do homem, tornando a cena num verdadeiro inferno.
Porém o vampiro tinha um limite para paciência, principalmente quando estava com fome.
Levantou as mãos, as nuvens do céu escuro se uniram em um único ponto e formaram uma esfera concentrada de gás.
Relâmpagos vermelhos caíram na praça, chovendo aos milhares em uma tempestade furiosa.
As pessoas atingidas tinham um destino pior que a morte, explodiram em centenas de pedaços só de encostar na altíssima carga elétrica.
Gritos ecoaram em meio a tormenta, precedidos da fuga rápida da plateia ali presente, que eram mortos pelos encapuzados.
O paladino de armadura branca agiu rápido e puxou um escudo das costas, protegendo o grupo de sacerdotes.
O impacto do ataque foi poderoso, fazendo seus pés afundarem na terra para tentar segurar a magia, ao ponto do escudo se partir em dois após defendê-la.
— Fujam para o templo, rápido! — Ele puxou o sabre da cintura, enquanto o grupo de sacerdotes correu para a entrada do templo. — Seu monstro vil…
O vampiro desceu em forma de gás. Ao retornar à sua forma original, ostentou as presas e as longas garras das mãos.
Lambeu os lábios, o sorriso vermelho crescia conforme o caos crescia na praça, gerando uma satisfação sem igual para ele.
Os encapuzados começaram a matar indiscriminadamente as pessoas ali, lançando magias ou facas para acabar o serviço depressa.
As poças de sangue se acumularam em um rio vermelho, que o próprio vampiro guiou o curso com a mão. Risadas abafadas escaparam da boca do monstro.
— Eu, um nobre monstro, sou uma criatura vil? — Moveu o polegar, as poças de sangue se acumularam numa densa esfera vermelha. — Só estou tomando o que vocês, mortais, tiram de todos os seres vivos: a vida.
O vampiro pôs a esfera vermelha no peito. Aquele sangue circundou seu corpo, entrando por cada um dos poros.
O paladino ergueu a espada, um brilho branco envolveu o gume. Ele avançou contra o monstro, diminuindo a distância entre os dois em pouco tempo.
De repente, uma aura avassaladora recaiu sobre o demônio, que segurou a espada com dois dedos e ainda desferiu suas garras diretamente no peito de Vales.
O homem cuspiu sangue, a luta tinha acabado num único movimento. Soltou a espada, as garras tinham atravessado-o, fazendo sua vida aos poucos se desvanecer.
Gandriel soltou o corpo morto do paladino e respirou fundo. Lentamente sua aparência abominável desapareceu, o cabelo branco ganhou tons rubros e os olhos negros obtiveram cor, junto de duas pupilas vermelhas.
Era uma sensação prazerosa de poder, enfim estava em sua forma original. As garras se retraíram, suas costas ficaram ereto, mas a palidez permanecia pelo corpo.
Olhou para o templo, de lá alguns encapuzados saíram, liderados por Bodon ao lado de um grande lobo verde.
— Meu senhor, já neutralizamos os sacerdotes — disse o velho. — O que faremos agora?
— Faremos o restante, é claro… — Ele cortou a cabeça do paladino fora, apanhando-a com uma das mãos. — Já é menos um paladino no mundo, faltam muitos outros. Você irá atrás do segundo apóstolo, Bodon, e eu irei atrás de uma grande arma.
— Senhor, como farei isso sozinho?! — O velho demonstrou raiva, a vitória daquele dia só tinha sido garantida graças ao vampiro. — Só possuo uma invocação e minha magia não é tão poderosa como a sua!
— Relaxe, velho… — Largou a cabeça, que rolou pelo palanque. — Aqueles sacerdotes sabem de muito, e sabem onde está cada um dos apóstolos. Torture-os o quanto for possível e obtenha a informação de onde o segundo apóstolo está. Eu farei o resto.
Sem saber refutar, Bodon suspirou e acenou com a cabeça. Preparou seus homens para outra longa viagem, montou em seu lobo verde e voltou para dentro do templo.
O vampiro olhou para os corpos mortos, sua consciência estava repleta de rostos distorcidos e assustados.
Risadas diabólicas ecoaram de sua boca, uma felicidade latente crescia dentro dele conforme andava sobre os cadáveres.
“Enfim, estou de volta! Espere por mim, meu lorde!”