O Invocador Sagrado - Capítulo 12
Ravi estava entediado. Já tinha se passado metade de uma semana desde os acontecimentos no covil, mas a falta do que fazer dentro daquela máquina o fez perder noção do tempo.
Os dias se resumiam a jogar Glossário Aprofundado com qualquer pessoa disponível, treinar um pouquinho na sala branca e dormir.
Livros estavam à sua disposição para ler, pena que ele não gostava de se sentava numa poltrona para passar horas afundado em livros velhos.
Além disso, não fazia a menor ideia de como ativar suas três únicas magias: Passos Leves, Agilidade e Invisibilidade.
Toda vez que tentava ativá-las, sentia-se muito cansado e era obrigado a parar, então janelas com a mesma mensagem apareciam.
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Mana insuficiente
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Era frustrante ver aquela mensagem se repetir. Com uma carranca no rosto e quase sem vontade nenhuma, deitou-se no sofá de veludo vermelho do vagão taverna.
Encarou o teto, à espera de um milagre. Para sua surpresa, uma das portas se abriu e Vatares passou num piscar de olhos para o outro lado da sala.
O loiro parou, olhou ao redor e se aproximou do rapaz, dizendo: — Meu salvador, preciso lhe mostrar uma coisa na qual tenho certeza que vai se interessar!
— Sério?! — Ravi saltou do sofá e seus olhos viraram estrelas cintilantes. — Me mostra!
— Então me acompanhe!
Vatares seguiu com um passo rápido, atravessou a sala branca e a cabine de pergaminhos, até chegar na cabine de pilotagem.
Ravi meneou a cabeça para os lados, à procura da suposta “fantástica coisa interessante”.
Para seu desapontamento, não encontrou nada. Aquela sala era muito igual da primeira vez que vira, havia o cordão de pássaro amarrado no redundante retrovisor e vários tubos cheios de vapor acima de sua cabeça.
O paladino manteve um largo sorriso no rosto e apertou vários dos botões do painel. Por fim, puxou uma alavanca à esquerda.
As correntes de vapor se intensificaram, certa quantia escapava pelas bordas dos canos metálicos. O som do movimento das rodas se intensificou.
O rapaz levantou uma das sobrancelhas ao ver quatro placas de vidro saírem das pontas do parabrisa e se unirem em uma só. Então, seu queixo caiu.
Ao invés de uma parede de terra, a lente arroxeada transformou a visão em um show de cores. Pontinhos multicoloridos piscavam entre si, de tamanhos e formas diferentes.
— O que… caramba, que que isso?
Ravi grudou os rostos no vidro e apoiou as mãos numa parte do painel para observar as luzes mais de perto.
— São cristais mágicos, meu salvador — disse Vatares, ao lado do rapaz. — Você está vendo o subsolo por uma lente de detecção mágica. Cada luz representa uma veia de cristais e suas cores definem os tipos. Além disso, eles são uma grande fonte de energia para nossa sociedade, o que providen…
— Já entendi, não precisa explicar tudo — interrompeu, afastando-se um pouco da vista. — Mas espera, se eles são fontes de energia, por que esse trem está cheio de vapor?
— Eu ia explicar exatamente isso, meu salvador. — Vatares retomou a postura e arrumou a franja do cabelo. — Vapor é uma fonte muito mais controlável que os cristais, porque assim não precisamos lidar com sobrecargas e acidentes são menos suscetíveis a ocorrerem.
O paladino loiro continuou com uma longa explicação sobre os tipos de pedras. Ravi não prestou atenção, estava mais interessado nas funções das pedras e nas suas capacidades.
“Será que eu conseguiria aumentar minha mana se usasse uma delas…?”, pensou, observando com atenção os minerais.
Porém, um deles chamou atenção, era um ponto completamente branco em meio ao filtro arroxeado.
— O que seria aquilo, Vatares? — Ele apontou para o objeto luminoso.
— Ah! Sorte a nossa, meu salvador! Essa é uma pedra de mana bruta!
— E o que isso significa?
— Esse tipo de pedra é rara e não tem nenhuma função elementar, logo, ela pode alimentar qualquer objeto movido a mana, independente do tipo. — O paladino coçou o queixo e analisou o tamanho do ponto brilhante. — Dizem que também pode aumentar a capacidade mágica de um mago e…
Ravi travou os olhos no ponto brilhante, queria muito por as mãos nele se fosse possível, pois resolveria facilmente seu problema.
Contudo, dentro daquela locomotiva pesada e enterrado metros abaixo do chão, seria impossível pegá-la. A única opção restante era escutar o que Vatares tinha a dizer.
“Isso vai ser muuuuito longo…”
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Enquanto isso, uma pessoa tinha acabado de entrar no vagão da sala branca. Era Roan, que havia se levantado a pouco tempo e estava disposto a um treino. Com um gesto no ar, abriu a janela de atributos.
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⠀⠀⠀⠀⠀Nome: Roan
⠀⠀⠀⠀ Classe: Invocador
⠀⠀⠀⠀ Nível: 10
⠀⠀⠀⠀ Título: Salvador dos Salvadores.
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⠀⠀⠀⠀⠀ Força | 10
⠀⠀Resistência | 59
⠀⠀ Velocidade | 15
⠀⠀⠀⠀⠀ Mana | 39
⠀⠀⠀⠀ Vontade | 10
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⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Remoção Animal.
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Magia Negra.
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Resistência Mental.
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Discernimento Mágico.
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Invocação.
⠀⠀⠀⠀⠀⧫ Glifo de Comando.
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“Já faz um tempo que eu não abro os atributos… caramba, nível 10, 59 de resistência e seis glifos ao mesmo tempo? Desde quando tenho essas coisas?” De repente, duas janelas amareladas surgiram para respondê-lo.
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A cada 10 níveis é adicionado mais dois espaços de glifos para serem usados.
O título Salvador dos Salvadores proporciona mais 50 de Resistência passivamente.
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“Bem conveniente… O que esse título faz?” Uma terceira janela se abriu.
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☆ Salvador dos Salvadores ☆
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★ Aumenta Resistência em 50 pontos.
★ O dano recebido é reduzido pela metade se o jogador usar seu próprio corpo para proteger alguém.
★ Cria o Atributo Vontade
→ Define a força mental de um jogador. Quanto maior este atributo, mais ele poderá ultrapassar o valor máximo de mana sem desmaiar.
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— Então quer dizer que além de soltar magia eu posso aguentar um monte de soco e ainda soltar mais magia? — Uma das sobrancelhas dele tinha se levantado, a série de benefícios fez sua imaginação voar. — Essa segunda habilidade também… os títulos parecem muito úteis.
Aproveitou o tempo para analisar o resto dos glifos e magias. Com exceção do glifo de Magia Negra, que subiu para o Rank D poucos dias atrás, as outras continuavam no mesmo Rank.
Coçou a nuca, pelo visto o glifo de magia era a opção mais preferível. Obviamente seria impossível elevar o rank de Remoção Animal, enquanto Resiliência Mental era uma habilidade muito abstrata para se ter uma ideia de como subir o rank.
Temia aumentar o rank do glifo de Invocação, pois se invocasse uma criatura forte ou muito destrutiva, a locomotiva seria comprometida.
Além disso, Pólito e Vatares eram contra a ideia de ter uma criatura invocada andando livremente pelos vagões.
“Se bem que eu poderia invocar uma das criaturas que eu já conheço e usar como um parceiro de treino…” Com uma das mãos no maxilar, ponderou sobre a ideia.
Bateu os punhos, estava decidido. Do bolso tirou o diário, então arrancou uma das folhas e desenhou o símbolo de Sonnemond.
As linhas eram traçadas com perfeição; o problema vinha nos círculos e bordas, que saíam trêmulas e sem muita forma.
Com um único pensamento, um pilar de luz iluminou o ícone da folha. Um ser saltou para fora, de escamas marrons e formato alongado.
Listras negras marcavam anéis no corpo, que refletia as luzes da sala branca. O pontudo chifre na cabeça e o chocalho em formato de broca davam um ar feroz ao animal.
— Já faz um tempo, cobrinha — disse Roan, enquanto sua companheira escamosa silvava de felicidade.
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Cobra Escavadora invocada.
Deseja ver as habilidades da criatura?
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— Hm…? É a primeira vez que isso aparece. — Ele clicou na opção “Sim”.
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○ Nome: ???
○ Raça: Cobra Escavadora. ♀
○ Nível: 1
○ Habilidades
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Presa Venenosa — Rank F
Escavar — Rank D
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— É, eu devia esperar que fosse assim… — Pôs a mão no queixo, pensativo sobre o nome.
A cobra rastejou na direção do invocador e subiu em sua perna, enrolando-se no pescoço sem pressionar.
Acomodou-se naquele lugar quente e olhou na mesma direção dele. Roan fez carinho na cabeça do animal, que se mostrou muito dócil ao afeto.
— Jade… é, seu nome pode ser Jade.
O espaço na tela amarela foi atualizado, o nome “Jade” logo foi adicionado no espaço vazio. Com um pequeno sorriso no rosto, invocou Geno, o soldadinho de madeira, e conferiu as habilidades.
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○ Nome: Geno
○ Raça: Golem de Madeira.
○ Nível: 1
○ Habilidades
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Resistência Mágica — Rank F.
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— Espere, está faltando aquela habilidade que consegui no covil…
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Criaturas que não sejam transferidas de volta sem o uso do círculo de invocação perdem todas as habilidades ganhas no meio tempo neste plano.
Nível e Raça se mantém que a transferência seja feita sem o círculo.
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— Porra. — Bateu no próprio rosto, tinha percebido como fora idiota em só deixar as invocações sumirem. — Se eu soubesse disso antes, você teria pelo menos umas habilidades a mais…
O pequeno golem acenou com a cabeça, mesmo sem ter ideia do que Roan quis dizer. Após alguns minutos de análise, fechou todas as janelas.
— Vocês dois me ajudarão em um treino hoje — Ele cruzou os braços. — Primeiro, se afastem.
Ambas as invocações acataram as ordens com rapidez e tomaram a devida distância. Era cômico os passos desordenados do constructo de madeira, além da cobrinha ter um estranho gingado no chocalho.
— Jade, não use veneno. Geno, seja um escudo para sua amiga, defenda-a das minhas magias. — Levantou a mão. — Ao meu sinal, venham para cima de mim.
Antes de iniciar o treino, Roan recriou uma esfera sombria na palma das mãos. Era pequena, pouca mana foi consumida para criar aquela versão menor de Bala Sombria.
Por garantia, evocou outras três esferas semelhantes, que orbitaram ao redor de sua cabeça.
Acrescentou também uma fina camada de energia sombria acima da pele, pequena o suficiente para não afetar as invocações.
Com tudo pronto, estalou os dedos. Geno agiu rápido, puxou a espadinha de madeira e correu na direção de seu mestre.
A espadinha avançou numa estocada, porém a aura negra que encobria Roan teve um estranho efeito; a ponta da arma se deslocou sozinha para o lado errado.
No mesmo movimento, disparou uma bala negra que estava em sua mão. O projétil atingiu o ombro do constructo e empurrando-o com o impacto, mas sequer arranhando a superfície amadeirada.
“É difícil controlar duas magias ao mesmo tempo…”, pensou o invocador, enquanto muito suor descia da testa.
Jade aproveitou o momento de distração para rastejar sorrateiramente por trás. Após ter um bom ângulo, usou do impulso para dar o bote.
Contudo, a barreira protetora causou uma estranha reação de novo, mudando o curso de direção da cobra e fazendo-a cair ao lado de Roan.
— Bicha asquerosa! — gritou, no meio de um salto de susto.
Outro disparo de uma Bala Sombria assustou sua invocação ao ponto de abrir uma distância segura. O que ele não esperava, porém, era uma terceira pessoa que o atacaria por trás.
Uma mão gelada tocou seu ombro, seguido por um aperto poderoso que cancelou imediatamente todos os feitiços conjurados, incluindo a barreira.
— Você falou isso pra quem, hein? — Era a voz de uma mulher, tão reconhecível quanto seu olhar mortal.
Roan virou a cabeça de maneira travada, sua espinha tremia e a força colossal aplicada em seu ombro era tanta ao ponto de deixar qualquer palavra presa na garganta.
Uma Cassandra de olhos furiosos o encarava, esboçando um sorriso cínico, igual ao sorriso que recebia dentro do alfaiate de dona Benia; um sorriso psicótico.
— Ah, o-oi, Ca-cass… — Era impossível fita-la diretamente, uma presença opressora o impedia de se mexer. — E-eu falei pra-pra cobra… aque-quela bem ali.
— Oh, bom saber.
Ela afrouxou o aperto, dando uma rápida espiada para as invocações. Ambas se encostaram na parede, intimidadas ao ponto de não se mexerem um centímetro sequer. Uma tela amarela apareceu em frente à bárbara.
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O glifo de Aura Intimidadora evoluiu!
Rank E → Rank D.
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— Ae, caramba!
Roan processou em menos de um segundo o que acontecia. Fechou o rosto, pôs uma das mãos no peito e tentou controlar a respiração desordenada.
— Desvaneça. — As duas invocações sumiram conforme o comando.
— Ah, você deixou elas irem embora… — Cassandra fez um biquinho, deixando sua voz decepcionada ecoar.
— Você está louca?!
O invocador se levantou do chão, cerrou os punhos e se virou para a loira. Tinha acumulado coragem suficiente para encará-la nos olhos, mas as pupilas de olhos de gato tiraram seu equilíbrio.
— O que que tem? — respondeu a amiga, dando um passo à frente. — Eu só quis testar uma coisa… Não precisava ser grosso.
— Grosso? Eu?! Você me mata do coração e vem com essa desculpa pra cima de mim?!?
— Relaxa o facho homem. Eu só… — Ela cerrou os olhos e interrompeu a fala. Um pequeno detalhe em Roan chamou sua atenção. — Ei, o que é essa marca no seu pescoço?
Ele instintivamente cobriu a região com a mão. Um silêncio constrangedor reinou, os modos inquisitivos de Cassandra se atiçaram pela pura curiosidade de saber o que eram aquelas marcas.
Ela ergueu a mão, para tocar a ferida e tirar a mão que a cobria. Porém, diferente da reação esperada, o homem se jogou para trás e se esquivou.
Seu jeito ofensivo e raivoso mudou de repente. Os tremores em seu corpo indicavam um medo sobrenatural, as pontas dos dedos pálidas e o rosto alterado só reforçaram aquele fato.
— Roan, deixa eu te…
O homem pouco quis saber das palavras da mulher. Deu as costas e saiu apressado, pressionando fortemente a região da garganta. Não olhou para trás, mas suas costas eram fuziladas pelas dúvidas impertinentes de Cassandra.
Assim, em meio ao melancólico silêncio, Roan saiu da sala, deixando sua amiga com a cabeça confusa e temerosa pelo futuro.
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Dia 9 — Acho que estou ficando mais apegado a este diário, tenho passado uma boa parte do tempo relendo minhas notas. Na verdade, não é isso, definitivamente não é…
Manter segredo sobre o covil tem sido mais difícil a cada dia. Tenho pesadelos com aquele lugar, às vezes sinto alguém me observar no escuro e um frio me assola quando vou dormir.
Por sinal, Cass parece prestar atenção em mim. Acho que ela desconfia que eu esteja escondendo algo, não contei sobre meus poderes e aquele momento na volta ao assentamento deve ter enchido de dúvidas.
O que realmente me preocupa é que ela está muito fora de si. Sinceramente, desde que viemos a esse mundo, notei o quão instável e esquisita ela tem ficado ao decorrer dos dias.
Lembro muito bem daquela vez que estávamos andando até a vila. Nós esbarramos com uns anõezinhos verdes e um deles foi esmigalhado até virar uma pasta de carne.
Tenho medo de também ter sido afetado, evito comentar sobre monstros ou histórias que pesquisei nos livros. A ideia de voltar para casa é minha prioridade número um, mas aparentemente não é a dela.
Outro detalhe que me amedronta é o tempo que Cass passa dentro da sala branca. Consigo escutar as pancadas de longe, e mesmo sem relógio, posso garantir que já se passaram três horas que ela entrou lá.
Às vezes a vejo sussurrar consigo mesma e produzir grunhidos animais. O que diabos essa mulher tem na cabeça?
Uma vez olhei nos olhos dela durante essas sessões de treino. Juro por tudo que as pupilas dela estavam diferentes, semelhantes a olhos de gato.
Não sei direito o porquê, mas costumo reparar nesses detalhes quando possuo o glifo de Discernimento Mágico equipado. Isso pode explicar um pouco dos eventos estranhos que vejo ocorrerem comigo ou com os outros.
Aliás, sobre eventos estranhos, Ravi é outro caso semelhante. Pensei que ele era medroso e envergonhado, mas me enganei de uma maneira absurda.
Vi-o trapaceando nas partidas de Glossário Aprofundado e em dados momentos o flagrei pegando comida no meio da madrugada. Eu realmente imaginei que ele fosse meio abobalhado, nunca me senti tão traído.
Ao menos, ele se mostra gentil comigo. Vive me chamando de “senhor” e frequentemente me ajuda na hora de cozinhar, além de ser bem educado. A real inconveniência é a barriga dele, preciso controlar as mãos de Cass para não dar mais do que ele pode comer.
Hm… que sentimento bizarro. Reli minhas notas há pouco, tenho a impressão de estar esquecendo de pontos importantes. Vou começar a escrever sobre os dias anteriores aos do início da viagem, por garantia isso pode me ajudar a relembrar tudo o que tem ocorrido com mais facilidade.
Eu só torço para conseguir logo entregar essa carta e voltar para casa. Não paro de pensar no quão perigoso seria encontrar aquele demônio de novo…
Espero não ter outro pesadelo hoje, as poucas horas de sono no escritório eram melhores que as noites turbulentas desse mundo.