O Invocador Sagrado - Capítulo 13
O sol se levantou detrás das árvores, largas sombras apareceram conforme sua luz se espalhou pelos campos esverdeados das planícies.
O assentamento estava quieto, as pessoas dormiam em um sono profundo. Os galos sequer ousavam perturbar o descanso dos pobres camponeses.
Uma das poucas almas vivas que contemplava o espetáculo da manhã era Lezandra. Ajoelhada em frente a um altar de madeira, seus olhos admiravam as cores e luzes que lentamente moldavam as pacatas pradarias.
— Deusa… eu te agradeço por tudo o que tem feito a mim — rezava, enquanto segurava as lágrimas de seus olhos. — Eu te agradeço por ter perdoado os meus pecados e enviado um espírito tão bondoso para recuperar a minha visão.
O ar lançava uma brisa fresca, as gotas do orvalho caíam das folhas conforme o vento corria. Os passarinhos voavam pelas nuvens e refletiam a glória da deusa Yondra para sua fiel.
— Por favor, minha deusa, eu oro para que tuas asas o protejam do terrível mal que o persegue — Ela inclinou o corpo para frente e encostou a testa no chão. — e põe tuas aves sobre meu caminho, pois não desejo cair na tentação dos meus inimigos, apenas na misericórdia dos teus ideais divinos.
Mesmo após encerrar a oração, continuou prostrada diante da estátua. Esse pequeno momento era para apreciar as criações da deusa; os cânticos das aves, a ventania agradável da manhã e as nuvens de algodão.
Ao se erguer, ela cruzou os braços em “X” e abaixou a cabeça. Os segundos silenciosos foram cobertos por um sorriso triste, seguido por algumas lágrimas que desceram pela ponta dos olhos.
O sol lançava raios felizes sobre a terra, mas não para a sacerdotisa. Um suspiro saiu de seus lábios, e assim ela deu as costas ao altar, encaminhando-se para seu fiel amigo; um cavalo de pelo escuro.
Puxou as rédeas, montou-o e acariciou os pelos do pescoço. Quando ia partir, uma voz distante a chamou: — Senhora Lezandra! Senhora Lezandra!
A elfa virou a cabeça e viu uma pessoa se aproximar do cavalo. Era uma moça de vestimenta branca, com o rosto coberto por um véu cinza e olhos esverdeados cheios de pressa.
A garota interrompeu o passo e apoiou as mãos nos joelhos. O coração batia com rapidez, suor descia da testa e a roupa calorenta atrapalhava seus passos desordenados.
— Por favor… senhora Lezandra. — Ela dava respiradas entre as palavras; em uma convicção decisiva, levantou a cabeça. — Me leve contigo! Eu imploro, me leve!
— Maithe? — Lezandra demonstrou uma expressão confusa e desceu do cavalo. — O que há com você, mocinha? Como soube que eu estava partindo tão cedo?
— Bem, minha vózinha não sabe guardar segredo tão bem. — Segurou uma risadinha, coçando uma das bochechas. — Mas esse não é o caso! Eu preciso que me leve, eu preciso encontrar ele!
— Ele? Quem?
— Um herói!
O quebra-cabeça ficava mais e mais complicado para a sacerdotisa resolver. Conhecera Maithe muito tempo atrás, só nunca esperava que a garota fosse tão insistente e enigmática simultaneamente.
Conforme a jovem balançava os braços e falava sem parar do tal “herói”, Lezandra foi capaz de entender a quem se referia.
Ela pôs os dedos nas pálpebras, uma pulga atrás da orelha indicava a uma certa pessoa, só tinha um grande problema; um grande problema furioso.
— Certo… vou lhe levar, porém não acho que você se dará tão bem com ele. Promete não se decepcionar ao conhecê-lo?
— Prometo! Eu tenho absoluta certeza do que meu coração diz!
— Então vamos… — Novamente, subiu na montaria, ajudando Maithe a subir. — Será uma longa viagem, tomara que sua avó Benia não fique triste pela sua saída.
— Senhora Lezandra, ela fez a mesma coisa que farei… — Com o peito estufado e um ar de confiança, Maithe abriu um largo sorriso. — Ir atrás do meu amado até o fim do mundo! Está no meu sangue!
A elfa foi obrigada a conter as risadas. Observava, com um bom humor, as atitudes animadas e inocentes da jovem na garupa.
A aura melancólica que tanto incomodava tinha desaparecido, o nascer-do-sol construía um aspecto mágico e radiante.
Logo, cavalgando pelas planícies esverdeadas, as duas sumiram de vista no horizonte, rumo à basílica de Cililiana.
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Um tilintar ecoou pelos vagões retangulares da locomotiva.
— Acordem logo, dorminhocos! — gritou Pólito, do lado de fora.
O barulho fez o trio se levantar em desespero. Saíram do quarto em fila com passos apertadíssimos, armados com a primeira coisa que encontraram nos quartos.
A porta foi aberta com um chute, pena que o alvoroço foi uma reação extrema demais para quem estava ali. Era o anão, equipado com duas panelas e um rosto assustado pela violência que os três agiram.
— Que susto, homem! — falou Cassandra, largando um abajur. — Pelo menos diz que tu teve um bom motivo pra acordar a gente assim.
— Claro que tenho, idiotas. — Uma das sobrancelhas de Pólito se ergueu, enquanto ele jogava as panelas para trás e cruzava os braços. — Acabamos de chegar no lugar onde vocês vão…
Cassandra e Ravi não deram espaço para o homenzinho terminar de falar, passaram pela sala num piscar de olhos e desapareceram de vista. Roan queria esconder o próprio rosto, era o único que sobrara ali.
— Me desculpe, Pólito… Acho que já esperava que eles reagissem assim.
O anão suspirou, então respondeu: — É, e como eu odeio prever as coisas.
Cientes da possível pressa que aquela dupla teria, ambos não tardaram em sair da sala adiante.
Roan não se esqueceu do cajado, deixou-o bem enrolado e prendeu nas costas, para ter plena certeza de que as mensagens não surgiriam novamente.
Ao chegar no penúltimo vagão, deu olhadelas pelas prateleiras de pergaminhos e para a estátua de Yondra; um tremelique e arrepios o incomodaram ao notar o par de buracos no lugar dos olhos da estátua.
Sem a intenção de pensar muito, ergueu a cabeça e se afundou na animação sobrenatural de seus companheiros. Seu coração palpitava apenas por ganhar a devida chance de rever a luz do sol de novo.
Ao chegar na cabine, pisou na plataforma de metal ao centro do recinto. Cassandra e Ravi fizeram a mesma coisa, a mulher pulava de felicidade.
Uma alavanca foi puxada, os painéis de vidro no teto se abriram, e a plataforma começou a subir por um túnel.
Batidas de pé rápidas e furiosas causavam estalos no piso, risos descontrolados ecoaram pelo túnel.
A luz do sol apareceu, Cassandra se jogou em direção à terra e rolou pelas gramíneas verdes, cheirou a terra e abraçou o próprio vento, enquanto Roan observava a descontrolada amiga gritar para o absoluto nada.
— Nunca a vi tão feliz… abstinência do mundo real parece ser pior do que não beber. — Abriu um pequeno sorriso, descendo da plataforma.
— Não sei como vocês humanos sentem isso… — respondeu Pólito, que igualmente desceu. — A bebida é muito melhor!
Algumas risadas descontraídas depois e o grupo estava enfim acomodado com o ambiente e o ar puro da natureza. Contudo, para a infelicidade deles, já era hora da dupla de paladinos partir, pois tinham cumprido o acordo.
— Vou sentir falta da sua habilidade de cozinhar, rapaz. — O anão se aproximou de Roan e apertou a mão dele. — Mas trate de guardar essas invocações até o fim do mundo!
— Capiche.
— Vocês três são pessoas admiráveis, senhor Roan — disse Vatares, meio risonho. — Espero nos vermos novamente em breve, foi uma boa companhia.
— Ah, esse garoto é frouxo como sempre… — retrucou Pólito, até que estalou os dedos e arremessou uma bolsa para o homem. — Pegue isso!
Roan apanhou pela alça e rapidamente checou o que havia dentro. Numa rápida olhada, achou o diário em que costumava escrever, três cantis — um que inclusive tinha cor diferente dos outros dois. — e um pergaminho enrolado.
— Pólito, isso…
— Não precisa me agradecer, garoto. — O anão deu uma piscadela. — Aí está tudo o que vocês precisam pra sua viagem, eu incluí umas coisinhas a mais. Então, aproveite!
Antes da plataforma descer, tanto anão quanto o jovem loiro acenaram em um sinal de “adeus”. Aos olhos de Roan, era uma despedida um pouco triste, mas necessária. Assim, com um último aceno de mão, ambos sumiram para o subsolo.
Segundos depois, houve um tremor, indicando que a máquina se movia por baixo da terra. O invocador suspirou, pôs a mochila nas costas, ajeitou o cajado e se aproximou de seus companheiros, que admiravam e beijavam a natureza.
— Vocês dois, vamos logo. — disse, desenrolando o mapa. — Temos uma longa viagem pela frente.
— Aff… liderzinho chato. — Cassandra inflou as bochechas e se levantou num salto.
— Não é melhor comermos alguma coisa antes? — perguntou Ravi, com a mão no estômago. — A gente não tomou café-da-manhã…
O estômago de Roan e Cass roncaram em sincronia ao escutarem aquele comentário. Ambos tinham esquecido do prato principal do começo de qualquer dia, e agora teriam que lidar com esse pequeno empecilho.
— Uma caça não faria mal… mas não esperava ter que desobedecer Pólito tão cedo. — O invocador puxou o diário e um frasco de tinta para desenhar.
Os dois se aproximaram para ver o que ele faria. Não demorou para que o desenho do símbolo de Sonnemond fosse traçado numa das páginas do diário, cada vez mais próximo da imagem original.
Roan observou o símbolo e pensou na imagem de uma criatura que os ajudasse a caçar. Deveria ser veloz, com um olfato e visão apurados, além de mortífera o suficiente.
Pouco a pouco, a mente dele processou um tipo de raposa, pequena e fofa como os desenhos que fazia. A raposa ganhou uma cor verde, olhos brilhantes e um certo charme de doçura.
O símbolo no caderno brilhou, a luz de transformou em um pilar, no qual deu origem à mesma criatura que o invocador tinha imaginado; com um pequeno detalhe a mais, ela era muito maior que uma raposa comum.
— Meu Deuzinho! — Cassandra pôs as mãos no rosto, encantada pela fofura daquele bicho. — Parece um cachorrinho! Olha que coisinha mais linda!
— Eu nunca vi um animal tão bonito assim! — Ravi foi tentado a tocar o animal, movido pela aparência tão amistosa da criatura.
— Tenham um pouco de calma. — Roan protegeu sua invocação pondo-se a frente. — Ele vai nos… ela vai… argh, cadê a tabela do sistema quando eu preciso?
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○ Nome: ???
○ Raça: Raposa Virente. ♂
○ Nível: 2
○ Habilidades
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Sentidos Aguçados — Rank D
Agilidade — Rank E
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— Esse camarada — corrigiu-se prontamente. — vai garantir que não passemos fome hoje! Então tenham calma!
Depois de contê-los, Roan deu uma simples ordem para a raposa procurar comida. O animal farejou o ar, em busca de um cheiro que o atraísse e não demorou para pôr o focinho no chão e seguir um caminho entre as árvores.
O invocador a acompanhou, junto de seus dois amigos. No caminho, observou a paisagem, contudo isso gerou um desconforto. As árvores eram muito altas, quase cobriam o céu, e a falta de arbustos ou grama alta criava grandes espaços abertos entre as árvores.
O silêncio no ambiente reforçava a ideia de um mar de árvores, já que nem os pássaros piavam e o vento soprava. Uma aura tenebrosa invadia aquele lugar, ao ponto de criar o pressentimento de estar sendo observado pelos próprios troncos de madeira.
— Seria melhor sairmos deste lugar primeiro…
— Tá com medinho, Roan? — Cass deu um sorriso fajuto, enquanto chegava perto do amigo para cutuca-lo. — Não vai sair nenhum monstro do chão pra te comer, bobinho.
— Do chão não, mas quem sabe do topo das árvores.
— Senhor Roan, fique calmo. — falou Ravi, com um tom mais relaxado que o normal. — Tenho absoluta certeza de que Pólito não nos deixaria à mercê de uma área perigosa assim. Além do mais, se ele se sentia tão endivididado comigo quanto parecia, por que faria isso?
— O menino tem razão. Relaxe um pouco, amigo de carne. — Por fim, ela deu tapinhas nas costas de seu amigo.
O homem suspirou e deu de ombros, imaginava que seria mesmo ilógico pensar naquelas coisas agora. Alguns passos depois e a raposa parou, levantou o focinho e sentou no chão.
Roan estranhou a reação, levando meio segundo para entender o porquê da invocação parar tão de repente. Foi então que o farfalhar de folhas atraiu seus ouvidos e o forçou a levantar a cabeça.
Um pequeno esquilo perambulava na copa de uma árvore e recolhia um pequeno fruto dali, que às vezes era lançado em queda livre por não ser de seu agrado.
— Kukuku… — riu Cassandra, com uma pedrinha em mãos. — Ótima maneira de começar o dia.
— Espere um pouco. — O homem estendeu a mão, impedindo que sua amiga tentasse qualquer coisa. — Raposo, pegue!
O animal entendeu a ordem no mesmo instante. Marchou na direção da árvore com rapidez, suas garras se fincaram no tronco e deram suporte para subir sem demais problemas.
O esquilo se desesperou e tentou fugir para um galho com um pulo, e esse erro foi a janela para a raposa pegá-lo com uma mordida na cauda. A invocação puxou o esquilo e desceu o restante da árvore, aproveitando para matá-lo com uma rápida mordida na garganta.
Finalizado o serviço, a raposa soltou sua presa nos pés de Roan e levantou a barriga para cima, enquanto abanava o rabo.
— Bom garoto. — Ele acariciou a barriga da invocação. — Viram só? Não precisamos nem caçar direito, minhas invocações conseguem dar conta do trabalho. Aliás, por que não fazemos uma fogueira enquanto ele caça?
— Que chato… — sussurrou a mulher, raivosa por ter perdido seu posto preferido. — Certo, deixa que eu faço isso.
Cassandra, a mais feroz e ágil do grupo, foi a segunda a subir nas árvores e pegar galhos secos perto das copas. Não se importava de cair em pé no chão de uma altura grande, na verdade sequer doía dar os saltos e pulos acrobáticos necessários para aquilo.
Em dados momentos, era difícil acreditar como ela conseguia se mexer depois de realizar tantas manobras perigosas, o que só atiçava o coração fraco de Roan, que sentia mais e mais medo dela se machucar.
Porém, nenhuma causalidade ocorreu, a fogueira foi montada e em pouco tempo o trio estava comendo um churrasco de esquilos. O invocador se prestou como cozinheiro, tirando os pelos e algumas partes nada agradáveis do animal para melhorar o produto.
— Senhor Roan, como suas invocações funcionam? — falou Ravi, de boca cheia.
— É bem simples… — Roan tirou as mãos do terceiro esquilo que assava e pegou o diário. — Consiste em alguns passos; eu preciso desenhar um símbolo especial, imaginar a criatura que quero invocar e ter mana o suficiente para invocá-la. Se houver um tipo de material dentro do círculo, isso pode influenciar na criatura invocada.
— Se era tão simples assim, por que você não me disse antes, hein? — retrucou Cassandra, com um rosto nada feliz. — E eu aposto que você sabia fazer isso há um tempo.
— Ora, eu não tive tempo, Cass. Primeiro fomos jogados neste mundo, depois nos metemos em problemas e agora estamos indo pra Deus-sabe-onde pra entregar uma carta.
— Humpf… — Ela tinha desistido de tentar argumentar, mas seus olhos se focaram na cicatriz no pescoço de seu amigo.
O barulho das chamas dançando ao vento era o único som naquele ambiente, os passarinhos se escondiam nas árvores e o céu começava a se fechar.
Eles apagaram a fogueira e retomaram a viagem, satisfeitos com o punhado de esquilos que comeram. Guiados pelo mapa, só restava caminhar em busca de uma cidade.