O Invocador Sagrado - Capítulo 14
A paisagem monótona enjoava os três do grupo. Desde a despedida dos paladinos, nada além de árvores altas tinham interrompido o caminho.
A falta de uma alma viva, misturada à claustrofobia que o espaço entre as árvores causava, os obrigavam a acelerar o passo.
O desconforto de Roan se tornou mais real com o tempo, era pior do que as mensagens do cajado. Sua mente processava e traçava linhas no mapa para escapar daquela prisão esquisita, porém de nada adiantou.
A repetição criava a impressão de andarem em círculos. Até então, os riachos desenhados e as figuras de casas no mapa não haviam aparecido, reforçando o sentimento labiríntico da floresta.
— Eu não aguento mais! — berrou Cassandra, enquanto escalava um tronco para conferir sua posição. — Cadê os monstros?! Cruzes, cadê essa gente?! Esse lugar parece um cemitério de tão quieto!
— Cass, certeza que não consegue ver nada?
— Nadica de nada!
Os temores do homem só pioraram, passou a ser desesperador a ideia de estarem perdidos. Ainda assim, existia uma pequena solução para o problema.
— Outra invocação, de novo… — resmungou, outra vez puxando o diário e tinta. — Ravi, preste atenção nos arredores, vou demorar um pouco mais dessa vez.
— Sim, senhor! — Com uma continência firme, o rapaz se virou e mirou os olhos na distância, à procura de alguém.
Um novo símbolo foi feito, cada vez mais perto da perfeição e de uma réplica exata da figura original. Ao terminá-lo, Roan balançou um dos dedos no ar para abrir uma janela do sistema.
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Glifo de Invocação
Rank — D
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O usuário pode invocar uma criatura a partir do símbolo de Sonnemond para protegê-lo. A invocação permanecerá no mesmo plano até ser atingida por um golpe fatal ou se o Invocador. A mana será reduzida em 20% por invocação.
Toda invocação sumirá a partir da palavra “Desvaneça”. Se feita dentro de um círculo de invocação, a criatura poderá ser reinvocada sem o uso de materiais.
Limite de Invocações: 3
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“Certo, eu já perdi 20% da minha mana e ainda posso invocar mais quatro criaturas.”, pensou, analisando as habilidades do glifo. “‘Se feita dentro de um círculo de invocação, a criatura poderá ser reinvocada sem o uso de materiais’… eu invoquei uma criatura e a desvaneci com um círculo. Será que eu consigo trazê-la de volta?”
Com essa dúvida na cabeça, ele se concentrou em recriar a imagem do pássaro. Como de praxe, um clarão se sucedeu à ativação do glifo, e mais uma vez a criatura surgiu diante dos olhos do invocador.
Suas penas coloridas dançavam com as brisas do vento, uma aura de calor envolvia as plumas multicoloridas.
Os olhos brilhantes revelavam pureza em sua existência, enquanto a calmaria do animal trazia uma surreal impressão de superioridade.
Roan engoliu seco ao encarar o pássaro, por um momento atordoado pela beleza dele. Ao estender a mão, a criatura ciscou a terra e pulou levemente para pousar no braço de seu mestre.
— Que estranho…
Estar tão perto do ser fez seu estômago revirar, não de medo, e sim de admiração. Olhava para um tipo de criatura mística e sobrenatural, tão bela ao ponto de desconforta-lo.
— Esse vai ser o almoço? — perguntou Cassandra, tendo pulado do alto da árvore e caído ao lado do amigo.
— O que?! Não, por favor, não! — Ele fitou a amiga pelo canto do olho com um pouco de escárnio, mas recompôs desfez a feição a tempo e se ergueu. — Precisamos encontrar algum povoado, e pensei que uma invocação voadora facilitaria o trabalho.
— Muito inteligente, senhor Roan! — complementou Ravi, do qual travava os olhos no pássaro com estrelas nos olhos.
O pássaro permaneceu silencioso, porém bateu as asas em voo antes de receber qualquer ordem. Subiu até os céus, acima das copas das árvores e rondou pelos arredores até retornar ao ponto inicial.
Mais uma vez Roan estranhou, pois era a segunda vez que o fenômeno ocorria; a invocação seguir um comando sem a necessidade usar o Glifo de Comando.
De alguma forma, o pássaro entendia seu mestre de forma direta, possuía uma espécie de raciocínio e tomava ações com base no seus arredores, diferente das demais invocações que precisavam de uma ordem para agirem.
“Não entendo… o que essa invocação tem de diferente das demais?” A dúvida permaneceu em sua cabeça, sem uma possível resposta.
Depois de tanto sobrevoar a área, a invocação lançou uma corrente de vento em direção ao chão com suas próprias asas.
Os três foram cobertos por uma brisa morna, repentinamente as sensações claustrofóbicas e desconfortáveis desapareceram.
O ambiente clareou, o céu ficou mais aberto e o peso da atmosfera diminuiu. Então, ciente do que havia ocorrido, a invocação tratou de conduzi-los para o caminho certo.
— Acho que ele descobriu um caminho.
— Tomara, se não essa galinha vai ser meu almoço!
Minutos de uma caminhada incessante depois e o mundo ao redor começou a ganhar vida.
Cervos com longos chifres saiam de seus esconderijos para enriquecer a fauna, andavam em bandos e pulavam de lá pra cá, aproveitando para apanhar frutinhas e gramíneas despejadas no chão.
Cogumelos de chapéus volumosos cresciam na borda de riachos, abelhas sobrevoavam as flores delicadas para coletar o néctar para suas colmeias.
Roan se perdia na vista e nos sons, existia uma certa magia atraente na floresta que seus olhos não perceberam previamente. O tempo desacelerou ali, os barulhos ressoaram nos ouvidos e por alguns instantes nada importou.
— Epa! Olha lá! — alertou a loira, com um sorriso no rosto e apontando para o horizonte.
Ao virar a cabeça, ele viu séries de casas construídas no chão e nos troncos das árvores, interconectadas por pontes de madeira e recheadas de passarinhos para complementar a pitoresca cidadezinha.
As estradas eram naturais, feitas de relvas verdejantes. Nenhuma carroça circulava entre as pontes e pelo caminho de terra, ao invés disso, os cidadãos levavam a carga nas mãos ou através de polias.
A maioria apresentava traços semelhantes, orelhas pontudas e arqueadas, com corpos esguios e uma altura que Cassandra invejava. Os contornos do rosto eram finos, os olhos eram claros e brilhantes, fatores que reforçaram a formosura sobrenatural daquele povo.
“Eles são muito parecidos com Lezandra…”, pensou Roan, analisando o local. “São elfos. Chega a ser estranho vê-los fora de uma obra de fantasia…”
Durante um curto tempo de observação, uma certa memória o fez perder o folêgo. Balançou a cabeça para todos os lados à procura do pássaro, temendo que alguém pudesse vê-lo voando.
A criatura estava escondida em uma das copas, estrategicamente posicionada para não ser vista por qualquer um que a procurasse por baixo. Roan só descobriu isso depois de utilizar o Glifo de Discernimento Mágico e passar por uma estranha fonte de energia colorida.
— Que alívio…
— Tá aliviado porque eu não vou comer a sua galinha? — Cassandra deu uma cotovelada no braço do amigo, que quase se desmontou com o susto. — ‘Cê sabe qual vai ser a primeira coisa que vamos fazer, né?
— Claro que sei. — O homem ergueu os ombros e estufou o peito, fazendo-se de sabichão. — A gente vai atrás de informação pra seguir pra próxima cidade.
— Credo, não! Nós precisamos de roupas!
— Eh?
— Olhe para o Ravi! — Ela apontou para o rapaz. — Ele está com essas roupas faz semanas! Olhe para nós também! Mal tivemos a chance de usar pelo menos algo decente além disso!
— Eu gosto dessa roupa… — comentou o garoto, puxando o capuz para cima.
— Deus do céu, não sejam tão porcos assim! Roupas, roupas!
Sem tanta paciência, a mulher empurrou os dois para dentro da vila, mesmo que alguns olhares recaíssem no exótico trio de humanos.
Ela pouco se importava, na verdade retrucava com um olhar feroz e odioso, espantando qualquer um que se atrevesse a ficar na frente.
Não encontraram com um estabelecimento onde vendia roupas e equipamentos. No máximo, achavam casas e pousadas de diversos nomes, como “A Andorinha Assobiante”, “Tronco Liso” e “Recanto das Folhas”.
Inevitavelmente, Cassandra deu risada das figuras que adentravam a segunda pousada, pois muitos tinham um perfil duvidoso e sempre andavam de maneira rápida para não serem vistos.
Por sorte, notaram que o comércio se concentrava na parte superior, entre as pontes das árvores. As pessoas subiam para lá a partir das vinhas distribuídas nos troncos, enquanto outros decidiram escolher um elevador improvisado.
Esse elevador era uma plataforma de madeira presa em polias, no qual se colocava uma grande pedra de um lado, para assim subir a plataforma enquanto a pedra caía. Quando se chegava no topo, eram colocados sacos de areia para aumentar o peso e descer.
A visão de ver o chão diminuir trazia uma leve nostalgia a Roan, eram os mesmos embrulhos de estômago ao se colocar num elevador subindo em alta velocidade. Felizmente, não precisou sofrer enjoos por tanto tempo.
— Ei, o que é aquela comoção? — apontou Ravi, ao reparar num certo movimento em um certo estabelecimento.
Havia uma comoção em uma das pontes, com uma fila enorme de gente voltada à um assentamento com a placa de “Guilda”. Roan identificou quem eram as pessoas no mesmo instante; suas armaduras e a diversidade de indivíduos os entregava facilmente.
— São aventureiros, Ravi. Tinha um pessoal assim em Hirote, mas lá eles só se reuniam em um mural negro e pegavam alguns pedidos.
— Peraí — interrompeu Cassandra, com uma mão no queixo. — É que nem as Guildas de jogos, é?
— Cass, como assim?
— Ah, é simples. Meio que as guildas serviam como um lugar para você pegar trabalhos, como coletar coisas ou matar monstros. Em troca, você receberia dinheiro.
Cassandra também tratou de explicar que as guildas eram um trabalho secundário, no qual você só precisaria preencher uma tabela de informações para ser admitido.
Ressaltou, inclusive, o quão mal-vistos eram os jogadores que possuíam má-fama de não concluírem trabalho ou de causarem problemas no meio de uma missão. Todas essas informações provinham de uma mesma fonte: jogos.
— Só que, se eu levar em conta que é um mundo real, eu chuto que eles recusam criminosos e devem bem ter um meio de classificar as pessoas. — Cruzou os braços, sua expressão antes animada ficou neutra conforme examinava as possibilidades. — Pensa só num Zé ruela pegando um trabalho arriscado só porque vale muito dinheiro.
— Devo concordar com a se… — Ravi pigarreou, corrigindo-se na hora. — Com você, Cassandra. Seria muito perigoso deixar qualquer um escolher por livre e espontânea vontade.
Os aventureiros passaram a conversar uns com os outros, formando um vozeirão. As portas da Guilda se abriram com um chute acompanhado do soar de trombetas, a multidão se dividiu em duas fileiras.
O coração de Roan pulou uma batida do tamanho susto, mas isso só atraiu a atenção do grupo para o fenômeno. Um homem com uma corneta saiu na frente, tocando a ensurdecedora música do instrumento para o par que o seguia.
Esse par consistia em dois jovens, respectivamente um rapaz e uma garota. Ambos usavam roupas de linho, tão brilhosas ao ponto de quase cegar, eram envolvidos em uma aura de grandeza.
— Tão lindo! — gritaram os homens da plateia para o rapaz nobre. — Olhe para nós, ó mestre Gael!
Então, em meio à gritaria, muitos deles rasgaram as próprias vestes para mostrarem seu rosto tatuado no meio do peito.
— Quanta beleza! — berraram as espectadoras femininas para a menina nobre. — Vai, vai, ó mestra Celline!
E assim, a maioria das mulheres levantaram para o alto plaquinhas com a face da garota estampada, ou roupas bordadas com o nome inteiro dela.
Os dois acenaram para a multidão e apressaram o passo para fugir de todos os admiradores fanáticos. De um segundo para o outro, o estabelecimento da guilda e as calçadas ficaram desertas.
De longe várias vozes repetiam os nomes dos dois jovens, gradualmente diminuindo de volume até ficar um completo silêncio.
— Aposta quanto que esses dois pivetes fedem a dinheiro? — perguntou Cassandra, com as mãos na cintura e uma das sobrancelhas erguida.
— Não vou apostar em algo no qual vou perder, Cass — brincou Roan, mais calmo decorrente da saída da multidão.
Após uma série de risadas, os três iam continuar a procurar uma bendita loja de roupas, mas Ravi parou o passo. Pelo canto do olho, viu um reflexo, um feixe de luz, e isso o fez virar a cabeça e encontrar um pingente largado no chão.
Ele se aproximou do pingente e o apanhou, fascinado pela jóia branca amarrada aos fios dourados do enfeite.
— Ravi! — chamou a bárbara loira, já um pouco longe. — Acorda pra vida! Vem!
— Estou indo!
Resolveu guardar o pingente no bolso, imaginando que mais tarde poderia encontrar o dono do objeto.
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Os dois jovens nobres conseguiram, de alguma forma, escapar do enlouquecido bando de fãs que os caçavam. Bastou chegarem na carroça que os aguardava na entrada da vila e o galopar dos cavalos abriu distância o suficiente para relaxarem.
— Enfim, paz… — resmungou o rapaz, trêmulo de tanto correr.
— Sim, enfim, irmão.
Quando a garota pôs as mãos no pescoço, sentiu a falta de um objeto. Assim, diante da falta de um fio metálico ao redor do pescoço, o rosto da menina se desmanchou.
Engoliu seco, seus olhos se arregalaram e procuraram por todo canto dentro e fora da carroça, mas nada achou.
— O pingente! Ele desapareceu!
Seu irmão, ao ouvir a queixa, ficou igualmente abismado. Eles ordenaram o cocheiro a parar. Mesmo depois de vasculharam toda a carroça, o pingente ainda estava sumido, não tinha nenhum vestígio de onde pudesse ter caído.
— Precisamos voltar, agora! — ordenou Gael, levando sua irmã para dentro da carroça. — Não podemos perder o tesouro da nossa família! Ande, Sebastian, bata nesses cavalos com mais força!
A carroça voltou a se mover, os cavalos galoparam com tanta força que a estrutura inteira balançava.
O pingente poderia ser algo pequeno e insignificante nas mãos de qualquer pessoa, somente aqueles dois sabiam o verdadeiro valor de um item tão especial.
Os irmãos batiam os pés, era catastrófico perder um objeto tão precioso. Se voltassem para casa sem ele, seriam, no mínimo, torturados ao nível de nunca mais desejarem viver novamente.
Saber desse detalhe amedrontava Gael, mas pior ainda, enfurecia a caçula, Celline. Naquele dia, uma certa cidade élfica sofreria uma tempestade, em pleno céu aberto e no mais pacifico dos dias, por um simples motivo: a fúria de uma nobre.