O Invocador Sagrado - Capítulo 15
A variedade de descontos e itens à venda era exorbitante. Por sorte, Roan andava com a aljava de dinheiro colada consigo, caso contrário Cassandra poderia deixá-los pobres em questão de instantes.
— Aí Deus! — gritou, com o rosto grudado nos vestidos da parede. — Esses babados… Ui, essa saia preta linda!
O vendedor, um elfo de monóculo dourado e barbicha ruiva, exibia um largo sorriso no rosto ao apresentar cada vestimenta à sua animada cliente. Chapéus, bijuterias e diversas peças compunham o vasto vestuário da loja.
Ravi, do outro lado do recinto, se importava mais com seu próprio estilo, pois possuía uma necessidade peculiar de gostar de um charme distinto. Seu traje escuro de capa era um meio de conseguir esse charme, porém ele precisava de mais.
Revirou o estoque à procura das mais exóticas combinações de roupa que pudesse encontrar. Como se não bastasse, ainda era apoiado por uma funcionária, uma elfa de cabelo curto prateado, que insistia em trazê-lo o que quisesse.
— Impressionante! Moço, você seria modelo, por acaso? É simplesmente incrível como tudo combina com o senhor!
Era fácil rir dos comentários bajuladores de um empregado da loja. Já Roan, diferente daqueles dois, se preocupava mais com o preço. Pouco importava o que usaria, desde que fosse barato o suficiente.
Seus olhos iam de um lado para o outro, em busca de algo que o agradasse o suficiente. Os preços oscilavam bastante entre um e três liros de cobre, sendo que ele só possuía liros de prata na aljava.
Constantemente olhava para a janela, para ter certeza que o pássaro não tinha mudado de lugar. O ponto brilhante nas copas permanecia lá, preocupando-o com frequência.
Num suspiro, decidiu se apressar e escolheu duas mudas de roupa muito simples e nada chamativas. Os outros dois, àquela altura, já separaram o que queriam usar; tiveram que se conter para não pegarem uma peça cara demais.
Aproximaram-se do balcão, o mesmo vendedor de monóculo se encarregou de atendê-los. Checou os preços, fez uma soma básica no papel e então entregou-o à Roan; no mesmo instante seu queixo caiu.
— Só uma prata…? — Era chocante o quão barato era.
— Estamos em promoção hoje. — O elfo levantou o polegar em sinal de aprovação. — Queima de estoque!
— Ei, Roan — falou Cassandra, com um biquinho e se escorando no braço do amigo. — Posso pegar mais uma coisa, posso? Só umazinha.
Por ser muito difícil resistir aquela cara de pidona, deu de ombros e respondeu: — Vai lá e pega.
Ela, toda risonha, correu para agarrar o que queria e pôs em cima do balcão. O resultado foi bem mais favorável que o esperado, o comerciante sequer cobrou pelo item adicional, isso por ter gostado da educação e jeito dos clientes.
Antes de saírem, cada um experimentou as roupas selecionadas. Cassandra optou por um estilo punk, usando uma jaqueta grossa de manga curta e uma estranha calça de couro, com uma bota alta para reforçar a imagem de “selvageria”.
Ravi era mais contido; preferiu usar uma blusa com um vermelho forte e sapatos sociais, pondo um brinco na orelha direita e alguns anéis nos dedos. A elfa de cabelinho curto o aplaudiu por sua forma “badboy”.
Por fim, lá estava Roan, com um estilo tão pacato que não valia a pena dar atenção. Era tão simples que ele poderia ser confundido com um camponês qualquer. Claro, a escolha foi feita para economizar, então era de se esperar uma abordagem tão “normal”.
— ‘Cê só pode tá de sacanagem comigo, né? — zoou Cassandra, observando-o de cima a baixo com pena.
— Me erra, Cass. Não tô num programa de TV pra ser bonito.
— Chato…
Ela inflou uma das bochechas e se aproximou, balançando o quadril a cada passo. Ao vê-lo de frente, tratou de puxar do bolso uma pulseira e a prendeu no pulso do amigo.
A pulseira tinha cor azul, com uma figura de uma lua gravada na lateral. Era macia, leve e bonita, um adorno contraditório à aparência simplória de Roan. Cassandra, contente da combinação esquisita, abriu um sorriso.
— Bem melhor. Você não parece mais um Zezinho ninguém.
Receber um presente de graça incomodou profundamente o homem. Era uma dívida a se pagar, um carinho a ser retribuído. Então, uma lâmpada acendeu em sua mente.
— Valeu, Cass. Que tal você andar um pouco mais? Vai que a gente acha um bar…
— Bar?! — Ela deu um pulinho de felicidade. — Você paga?
— Vou sim.
Aquelas palavras determinaram Cassandra, tanto que ela saiu pela porta e começou a correr em busca de um bar que pudesse vender uma cerveja boa e rápida. Ravi, com um aceno de cabeça, se despediu dos funcionários da loja e a seguiu.
Dessa vez sozinho, Roan chamou o vendedor e comprou um presente. Pediu até para deixar dentro de uma caixinha, para ser uma surpresa ainda mais agradável.
Com tudo certo e arrumado, saiu do estabelecimento e sua amiga já estava fora de vista, possivelmente ainda procurando pelo lugar ideal para beber, que tivesse música e uma mesa larga.
Ciente disso, aproveitou o momento para descer daquele “andar” da vila, então se afastou a uma distância segura. Não queria ninguém por perto, os olhares curiosos das pessoas o atrapalhariam em seu plano.
— Ei, já pode aparecer — falou, de cabeça erguida.
Um pássaro pousou no chão, conforme ordenado. Suas penas coloridas refletiam a luz do sol com intensidade, a postura de peito estufado realçava sua superioridade.
Roan se ajoelhou e estendeu a mão para a ave. A invocação se aproximou ciscando no chão, às vezes se movia em pulos. De frente ao seu mestre, deitou o bico na palma dele.
— Preciso logo te desvanecer, mas antes preciso pegar uma coisa emprestada… — Seus dedos deslizaram pelas plumas da invocação. — Será bem rápido.
Um beliscão foi mais que o necessário para puxar a pena. Isso causou uma péssima reação ao pássaro, que só queria um pouco de carinho. Bateu suas asas e deu pulinhos, a dor de perder uma parte de si era gigantesca demais para aguentar.
Com o peito estufado e uma grande raiva para dispor de suas ações, bicou os braços de seu mestre até não ter forças para mexer o pescoço.
Roan foi obrigado a erguer os braços para se defender da enxurrada de ataques, mas nem isso o protegeu de ganhar marcas vermelhas por todo antebraço.
— Aí, aí, aí — resmungou, observando as pequenas feridas causadas. — Pelo menos, consegui as duas coisas que eu queria.
Segurou a pluma colorida entre os dedos e retirou do bolso uma pequena corda de couro que tinha comprado. Envolveu uma parte da corda com a pena, para assim completar o simples colar.
Uma bijuteria icônica e única, assim como a pulseira em seu pulso. Sorriu ao ver o presente, era o tipo que poderia surpreender sua amiga. Porém, ciente da presença da ave, teria que primeiro resolver um pequeno problema.
Agachou-se e desenhou com o dedo o símbolo de Sonnemond, com um formato e tamanho decente para que a invocação coubesse no centro. Demarcados os círculos e setas, só restava um passo.
— Já é hora de voltar. Vou te desvanecer, tenho medo que alguém te veja.
A criatura se negou, sequer se moveu e foi totalmente contra a vontade do homem.
— Eu ordeno, fique no centro do círculo.
A ordem foi em vão, o Glifo de Comando não funcionou da maneira esperada. A ave, estática e numa pose ofensiva para seu mestre, ameaçava avançar na direção dele.
Roan deu um breve passo para trás, temendo as habilidades da invocação. Arrastou o dedo no ar com pressa, em busca das propriedades da criatura. A janela na qual se abriu, para seu temor, era pior do que imaginava.
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○ Nome: ???
○ Raça: Filhote de Fênix.
○ Nível: ?
○ Habilidades
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Transcendência — Rank EX.
???????? — Rank S
???????? — Rank S
???????? — Rank D
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“Você só pode tá de brincadeira comigo…”
— Desvaneça!
Um feixe de luz clareou o ambiente, a ave foi tomada pelo lampejo. Contudo, para o temor de Roan, nada aconteceu. O ser continuou ali, intacto, imune aos efeitos de suas habilidades, mesmo que fosse sua própria invocação.
Incrédulo, arregalou os olhos e encarou o animal com temor. Era a primeira vez que nenhuma de suas habilidades funcionavam, e ser visto como inimigo por uma invocação com atributos desconhecidos e alguns altíssimos era o pior de seus medos.
— Co-como…?
Engoliu seco, a fúria da criatura recaía sobre si em uma força gravitacional absurda. Porém, para sua sorte, foi desnecessário se preocupar com o ataque iminente. Por algum motivo, o pássaro bateu em retirada ao alçar vôo e se escondeu.
À primeira vista, o invocador não compreendeu a atitude repentina, até o chão tremer. Escutou passos na distância, virou-se por instinto para saber o que se aproximava, e nisso foi derrubado no com uma pancada poderosa.
Foi jogado no ar pela batida, rodopiou no ar e ao cair seus braços se arrastavam pela terra molhada. A visão enfraqueceu, a luz do céu perdeu sua cor e os sons se abafaram lentamente.
Antes de apagar, ele só pôde ouvir vozes de pessoas estranhas. Não entendeu o que falavam, muito menos sabia se estavam perto ou longe. Aquele foi o último sinal de consciência, e tudo escureceu.
— Sebastian! Deuses, o que você fez?! — gritou um rapaz, saltando para fora da carroça.
— Me-meu senhor, foi um a-acidente… Apareceu uma luz e eu não vi nada!
Celline, que também tinha descido, correu para verificar a situação do atropelado. Sua expressão era de pavor; mesmo sendo nobre, ela temia sujar as mãos de sangue.
Conferiu o rosto do sujeito, suas mãos, braços e até os arredores da cabeça. Nenhum ferimento grave fora encontrado, mas os arranhões e hematomas a incomodavam.
— Irmão, precisamos ajudar este homem…
— Ajudá-lo? Agora?! — Gael, descontrolado e cheio de descrença, teve uma leve expressão de desgosto. — Precisamos achar o pingente, irmã. Essa é nossa prioridade!
— Mas não irei contra o dilema da nossa família, dos Shemov, jamais! — retrucou, levantando-se com um olhar cheio de bravura. — “Aqueles a quem minha mão fere, mesmo sem minha intenção, são os que mais valem a pena me preocupar.”
O rapaz perdeu o chão com aquela recitação da clássica filosofia de sua família. Era um preceito inabalável, uma regra a ser seguida à risca por qualquer parente que detivesse o mesmo brasão dos Shemov.
Mordeu o lábio, indeciso entre aceitar o argumento inabalável de sua irmã ou a lógica de achar o bendito pingente para salvar sua pele. Um suspiro indicou sua derrota, cedeu aos apelos de Celline.
— Sebastian, ajude-me a colocá-lo dentro da carroça.
Assim foi feito, eles partiram levando consigo Roan desacordado. Mesmo sendo desconfortável cuidar de um desconhecido encontrado no meio da floresta, era difícil contra-atacar sua irmã Celline. A única opção de Gael era torcer pelo melhor.
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A espera passou de tranquila para preocupante. Cassandra já tinha terminado sua ronda em busca do lugar ideal, só faltava aguardar, só que a demora causava arrepios.
Era por volta das três da tarde, sua mente não parava de imaginar o que havia acontecido com seu amigo para demorar tanto. Roía as unhas de inquietação, sua preocupação voava para as nuvens.
Ravi, que a acompanhou desde a saída da loja de roupas, estava mais sereno e calmo. Imaginou que Roan estivesse bolando uma surpresa agradável, ou só que havia se atrasado decorrente de algum problema.
Infelizmente, nenhuma esperança da aparição do homem foi suficiente. Cassandra, a mais desesperada em achá-lo, deu o primeiro passo para iniciar sua busca.
— Já cansei de esperar. Vamos, Ravi.
O rapaz acenou com a cabeça, e assim buscaram por Roan na vila. Conversaram com diversas pessoas, algumas indicaram que uma pessoa semelhante havia saído há pouco tempo.
Crentes dessa informação, rumaram à entrada, só para se depararem com uma nova comoção. As pessoas não davam espaço, esbarravam-se umas nas outras para terem seu devido lugar naquele evento.
A causa dessa comoção foi o retorno inesperado do par de jovens nobres. Cassandra revirou os olhos ao ver os dois moleques retornarem, era nojento saber que aqueles dois ainda insistiam em chamar tanta atenção.
— Cassandra, acho que se formos por aqui conseguiremos dar a volta — falou Ravi, ao lado de um beco.
Ambos seguiram pelo atalho, conseguindo contornar a multidão e retornar ao mar de árvores. Aprofundaram-se na floresta devagar, com o devido cuidado da viagem anterior para não se perderem novamente.
O caminho ia ficando silencioso devagar, uma névoa fina crescia no horizonte. A mulher, hesitante, pôs o braço à frente de Ravi para que ele não desse um passo em frente.
Ela arrastou o dedo no ar e rapidamente trocou os glifos, as pupilas de seus olhos se afinaram, ao ponto de se tornarem um risco. Na distância, encontrou uma silhueta esquisita, deformada e sem proporções exatas, mas que crescia devagar
— Se eu falar para você correr, corra — alertou, sem desviar o olhar da silhueta. — Tem algo vindo na nossa direção, tenho certeza que não é o Roan.
Ravi engoliu seco e recuou um passo para trás, pronto para fugir caso necessário. A sombra foi se aproximando mais e mais, ganhando tamanho até sair da corrente de névoa.
Cassandra, preparada para atacar qualquer inimigo que aparecesse, se espantou ao descobrir o que era a tal sombra. Era uma pessoa, um elfo de cabelo preto, com cortes nos braços e nas pernas.
Em suas costas havia um grande machado de gume partido, a armadura que cobria seu corpo possuía trincas e aberturas nas regiões feridas. Pendeu para frente, forçado a colocar uma mão no chão para não cair.
— Saiam… saiam daqui… — Sem forças para continuar, sua cabeça caiu, respingando sangue junto. — O demônio… o demônio da névoa está vindo…
Os dois se apressaram para se aproximar do homem caído. Cassandra o pegou pelo ombro, dando-o apoio, e perguntou:
— Demônio? Quem é esse demônio?
— É um… — Mais sangue fugiu de sua garganta, interrompendo sua fala. — É um espírito… ele sequestrou várias pessoas, mas eu fugi a tempo…
— Então quer dizer que…
Ela virou a cabeça para a parede de névoa. Se fosse correto seu pensamento, Roan só poderia estar em um único lugar. Ela pegou o machado quebrado das costas do homem e apertou o passo em direção às profundezas da floresta, sem exibir medo algum.
— O que…? Essa mulher… ela é louca? — disse o elfo machucado.
— Corajosa, senhor, corajosa — respondeu Ravi, ajudando-o a se levantar.
Como fora deixado para trás, a opção restante era retornar e avisar as outras pessoas do que teria acontecido. Contudo, essa opção o fazia querer dar as costas e apoiar Cassandra, o fazia se sentir um peso morto que estava às custas dos dois aliados.
Ele suspirou, e com a consciência um pouco pesada, retornou à vila, rezando para que aquela bárbara o encontrasse.