O Invocador Sagrado - Capítulo 16
Estar num quarto irreconhecível era o cenário perfeito para um pesadelo. Roan, ao abrir os olhos, imediatamente se levantou da cama e arremessou as cobertas para longe. Varreu o recinto com os olhos, as mobílias e objetos chiques que quase o cegaram de tanto brilho.
Ele viu uma garota sentada no chão, com um pincel em uma das mãos e uma larga folha de papel no chão. Em outra mão, segurava um livro pequeno, de capa marrom e páginas curtas; ela desenhava um símbolo na folha, guiada pelas páginas.
A feição de Roan mudou, os olhos se arregalaram e o corpo tremeu por um mísero segundo. O passo rápido e pesado reforçava seu desespero, só faltava a lua para terminá-lo. No último momento, conseguiu agarrar o pulso dela, impedindo que continuasse.
— Pare agora mesmo! — gritou, também tirando o diário das mãos dela.
Por conta do susto, a menina soltou o pincel, o piso de madeira foi manchado com pontos pretos. Por outro lado, o homem só se permitiu relaxar ao rasgar a folha em pedaços e ter certeza de que nenhuma outra cópia de Sonnemond estivesse intacta.
Revirou as gavetas, procurou debaixo dos móveis e em qualquer outro lugar que levantasse suspeita. Terminada sua investigação, seus ombros se contraíram, suspirou de alívio e pôs as mãos no peito.
A garota o encarava, numa mistura de espanto e fascínio. Tinha lido as páginas do diário, logo um interesse gigante sobre o significado do símbolo e como ele funcionava era um tipo de conhecimento que desejava. Levantou-se, apontando um dos dedos para o sujeito à sua frente.
— Seu nome é Roan, correto?
O homem, receoso quanto às atitudes da garota, respondeu: — Sim…
— Pois esclareça minhas dúvidas, por favor! — Ela cerrou os punhos e estufou o peito. — Eu, Celline Shemov, necessito saber de tudo a respeito dos seus rituais! Chega a ser de outro mundo o quão bem estruturado eles são, e o quão bem descritos também foram!
— Como é? Você é louca, menina? — Uma das sobrancelhas se ergueu, junto disso a expressão de Roan passou para pura confusão. — Eu não posso te ensinar isso, na verdade, não era nem para você ter tocado nesse diário. É confidencial.
— Oh…
Celline abaixou a cabeça, extremamente decepcionada. Imaginava que sua imagem nobre, influência e poder seriam suficientes para atrair a atenção daquele homem; pelo visto, precisava de alguma forma de convencê-lo.
— Então, eu irei lançá-lo na cadeia e vou expor seu segredo a todos!
— Não, tudo menos isso! — A mísera ideia de ter o segredo exposto o fez perder o equilíbrio. — Eu faço qualquer outra coisa, qualquer!
— Somente se me dizer e me ensinar os rituais descritos no seu grimório, nada mais!
Roan foi encurralado pelo poder de uma garotinha, algo que ele mesmo imaginava ser impossível. Sua mente fervilhava para encontrar uma escapatória daquela situação desesperadora; até uma lâmpada se acender em sua cabeça.
— Tudo bem, eu te ensino.
— Sério? Sério?! — A garotinha deu um pulinho de alegria.
— Sim… e desculpe pela bagunça de mais cedo. — Fitou os pedaços de papel pelo chão, havia vários pedaços rasgados pelo carpete.
— Ah, não se importe com isso. Só me ensine!
A confiança e vontade de Celline era difícil de contornar, mas ele teria que pôr seu plano em prática. Ambos se assentaram no chão, arrumaram folhas de papel e tinta, desenharam um círculo interno e externo.
Primeiro, Roan descreveu que o símbolo precisava ter setas apontadas para dentro, não para fora. Segundo, o sol e a lua deviam estar centralizados com a linha do meio. Terceiro, era necessário materiais muito caros para a menor invocação que fosse.
— Mas por que há um desenho diferente no seu grimório? — questionou a menina.
— Ah… é porque eu tive pouco espaço para desenhar, não consegui traçar a forma correta. Você sabe, é difícil manter a página aberta e ilustrar ao mesmo tempo.
Então, houve uma série de explicações complexas e detalhadas sobre o “Grande Fluxo Anti-horário Espacial Espectral Mágico”, um fenômeno surpreendente do qual permitia o uso do ritual de maneira apropriada.
Resumidamente, em certos horários do dia, o fluxo de magia influenciava no espaço, enfraquecendo o tecido espectral e permitindo abrir portais para trazer criaturas ao seu mundo. Porém, por conta disso, era preciso uma grande quantia de mana para manter os portais abertos por tempo o suficiente.
Por fim, os materiais usados serviam de uma isca ou catalisador para atrair certos tipos de criaturas, geralmente uma espécie mais poderosa que as invocadas sem o uso dos materiais. Caso todos os passos fossem cumpridos, o ritual seria finalizado de forma automática.
Celline se embasbacou com o gigantesco conhecimento que aquele homem exibia. Ficou de queixo caído por toda a aula, seus olhos viraram estrelas conforme escutava os mínimos detalhes do Grande Fluxo Anti-horário Espacial Espectral Mágico. O nome era tão grande que ela resumiu para “Grande Fluxo”.
A pena em suas mãos se mexia rapidamente, tomando as devidas notas da belíssima ciência apresentada. Quando uma nova informação chegava, o movimento instantâneo de sua mão para escrever ocorria.
Roan respirou fundo após terminar de falar, sua garganta ficou seca e só um copo d’água foi o suficiente para limpar aliviá-lo. Ficou inclusive impressionado com sua habilidade, era a primeira vez que conseguia mentir inúmeras vezes em um tempo curto.
— Mestre — chamou a garota. —, eu gostaria de ver uma apresentação sua. Teria como?
“Mestre? Essa é a primeira vez que sou chamado assim, mas até que eu gosto…”, pensou o invocador, apanhando uma página.
— Pela limitação do Grande Fluxo, eu não poderia, contudo… — Ele fez um gesto estranho com uma das mãos. — Acabei de aplicar um encantamento especial, posso acessá-lo sem dificuldade agora. Observe.
Depois de Celline acenar com a cabeça, Roan procedeu em replicar um falso Sonnemond. Ao terminá-lo, pôs a mão no centro, torceu os lábios e franziu as sobrancelhas, genuínas expressões falsas de um esforço absurdo.
Os olhares curiosos da pupila recaíram sobre a técnica secreta do invocador, inúmeros seres mágicos diferentes passavam por sua cabeça; desejava ver uma criatura mítica, um dragão majestoso. No entanto, o resultado foi diferente.
O quarto foi inundado por um clarão, cegando-a por questão de segundos. Assim que o brilho parou, uma cobra saltou para fora do papel, rumo à Roan.
As escamas negras refletiam a pouca luz do recinto, o chocalho em forma de broca na sua cauda balançava sem parar e a criatura insistia em silvar.
— Esta é Jade, uma companheira minha — disse, enquanto acariciava a cabeça do animal.
— Ela é tão… bonita. — Celline ficava hipnotizada pelos movimentos ondulados da cobra. — Mestre, qual era aquele encantamento?
— Qual era? Um encantamento de altíssimo nível. — Fez um gesto com uma das mãos, remexendo-a de maneira aleatória. — Você só saberá usá-lo se tiver praticado bastante a arte da invocação.
— Invocação… — A menina pôs um dos dedos no queixo, após pensar por alguns momentos disse: — Mestre, invocação não é uma arte obscura de trazer demônios? Essa cobra no seu pescoço não é um demônio?
A expressão de Roan mudou repentinamente, uma ardência atingiu seu pescoço ao escutar a palavra “demônio”. Um silêncio aterrador inundou o quarto, ele tentava abrir a boca para responder, mas as cordas vocais não se mexiam.
Celline, ao perceber isso, insistiu em perguntar: — Invocação é mesmo uma arte sombria, mestre?
— Não, jamais será. — A resposta, por mais que tivesse surgido de uma maneira seca, era verdadeira. — Somente pessoas doentias e malignas poderiam usar um poder tão grande para trazer uma aberração ao nosso mundo. Eu jamais desejaria que alguma desgraça ocorresse a alguém por conta de uma invocação minha; seria um pesadelo.
Levantou o olhar, a seriedade era tão grande em seus olhos que o ar de mentira desapareceu em um piscar de olhos, trocado para uma aura de melancolia pesada a sua volta.
Por um momento, ele ponderou no que estava fazendo, no porquê mentir para uma garota que com certeza não seria capaz de usar as habilidades de invocação com tanta facilidade.
“Pra falar a verdade, o que eu tenho feito realmente?”, pensou enquanto olhava para a invocação ao redor do pescoço. “Tenho medo de tudo, minto para todos… mas será que é certo mentir assim? Será que faz diferença? Será?”
Nenhuma resposta o satisfazia, todas eram desculpas esfarrapadas para continuar a errar de novo e de novo, num ciclo vicioso de mentiras e enganações. Em um momento de lucidez, Roan desistiu de argumentar contra si mesmo, jogou a toalha.
Ele arrancou uma página do diário e desenhou o símbolo de Sonnemond, dessa vez da maneira correta. Então, fitou a menina nos olhos.
“Já é meio tarde, ela certamente tentará usar esse poder alguma hora. Mesmo com essa carinha de inteligente, certeza que fará alguma idiotice.”
— Celline, você possui algum objeto mágico ou especial?
— Objeto mágico…? Para que o senhor deseja, mestre?
— Vou preparar uma poderosa invocação, por isso preciso de um material especial. — A expressão receosa dela o obrigou a adicionar uma nota a mais. — Não se preocupe, será para você mesma.
Ao escutar aquelas palavras, os olhos de Celline passaram a brilhar de animação. Ergueu-se e pediu um momento para sair, em pouco tempo retornou com uma caixinha nas mãos.
Abriu a caixa, dentro havia uma esfera sombria com um núcleo roxo que pulsava. Era um coração negro, no qual relembrava e muito as magias do elemento Escuridão.
— Isso é um cristal mágico sombrio — explicou a garota. — Foi um presente de um antigo tutor meu, mas nunca tive a chance de usá-lo.
— Entendi…
Não tocou na caixa, apenas pôs o símbolo de invocação logo ao lado do objeto.
— Este é um símbolo especial, você poderá aplicar mana e a qualquer momento uma criatura aparecerá. Mas, tenha ciência de só usá-lo em casos de extrema urgência, certo?
— Sim!
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A conquista “O Legado do Verdadeiro Invocador” foi adquirida.
Mensagem sendo enviada ao Comissário. . . . . .
Mensagem enviada.
O Comissário futuramente o recompensará pela conquista.
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“O que?” Seus olhos quase saltaram do lugar ao ver aquela janela aparecer.
Ele não teve tempo de reagir, no momento que sua mente ia questionar sobre a estranha mensagem, uma barulheira o interrompeu. Uma gritaria sem fim soava do lado de fora, com um vozeirão tão ensurdecedor que Celline teve que conferir o motivo de tanta bagunça.
— Minha nossa… aquele homem está muito ferido.
A curiosidade de Roan se atiçou na hora. Encaminhou-se até a janela, lá embaixo ocorria a movimentação de vários dos aventureiros ao redor de um elfo de cabelo preto e rosto ferido.
Deduziu que fosse um acidente, mas um ponto vermelho no mar de pessoas o trouxe a lucidez e reviveu uma certa memória apagada.
“Cacete, como eu me esqueci deles?!”
Deu as costas e correu para a porta do quarto, precisava sair dali o mais rápido possível para se encontrar com determinado alguém. Desceu as escadarias com pressa, em passos pesados o suficiente para ressoarem pela estalagem inteira.
O alarde e a pressa do homem chamou atenção de um rapaz nobre que tomava um chá na recepção, que ao ver a presença daquele sujeito, se pôs na frente da passagem.
— Ei! Vo…
Roan se esquivou por baixo dos braços de Gael quase de modo instintivo, deixando-o atônito pelo quão rápido era. Ficou parado no lugar, uma estátua viva no meio da pequena sala de recepção, até que sua irmã apareceu nas escadarias.
— Irmão!
— Si-sim?
— O homem, vá atrás dele!
Gael retornou à realidade logo em seguida, balançou a cabeça de um lado para o outro e saiu ligeiro do recinto, sem sequer olhar para o rosto de Celline.
Roan, por outro lado, se aprofundava na multidão. Seus olhos se remexiam pelo mar de pessoas, à procura do ponto vermelho visto pela janela; por sorte, esse pontinho já estava um pouco separado do aglomerado de gente.
Empurrou todos da frente, lentamente abrindo espaço para se aproximar do indivíduo em questão. Ao chegar perto, colocou a mão no ombro dele, obrigando a pessoa a girar a cabeça para lateral.
— Senhor Roan! — disse Ravi, espantado. — Esteve aqui o tempo to…
— Cadê a Cassandra, Ravi?! — Roan o pegou pelos dois ombros e o encarou nos olhos.
— Be-bem…
O jovem de aparência exótica tomou seu tempo para explicar o que tinha acontecido após se separarem; que saíram em busca de Roan, mas que ao não encontrarem, rumaram até a floresta.
Nisso, acharam um elfo machucado no caminho, no qual ele apontou com o dedo para um homem caído no chão sendo tratado por outros aventureiros.
— Ele falou sobre um tal “demônio da nevóa” que estava sequestrando pessoas na floresta. Cassandra meio que surtou e decidiu investigar ela mesma, me mandando de volta.
Roan suava frio, a expressão pálida em sua face refletia o completo estado de pavor dele. Não parava de lembrar do covil, temia que a mesma acontecesse de novo, mas dessa vez não com ele, e sim com sua melhor amiga.
— Me leve até ela, agora!
Ravi estremeceu pelo tom do homem, obedecendo de imediato. Os dois saíram da vila em um ritmo apressado, os sons se distanciaram conforme percorriam a espaçosa floresta; quanto mais longe iam, menos vida também aparecia.
O invocador já estava um pouco farto de caminhar e não encontrar nada, acreditava que não chegaria a tempo, e por isso a primeira coisa que tratou de fazer era realizar uma invocação.
A terra molhada brilhou com o símbolo de Sonnemond, uma criatura tomou forma na hora que o lampejo parou. Era uma raposa de pelagem esverdeada, com olhinhos pequenos e brilhantes, além de um focinho longo e orelhas pontudas.
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○ Nome: Raposo
○ Raça: Raposa Virente. ♂
○ Nível: 2
○ Habilidades
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Sentidos Aguçados — Rank D
Agilidade — Rank E
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Roan não esperava ter que invocar tantas criaturas no mesmo dia, só tinha lhe restado 20% da mana total; isso causou reações inesperadas. Ofegava com frequência, seu corpo molenga pendia para os lados a cada passo.
Porém, mesmo com esses problemas, seria impossível fazê-lo parar para descansar. Sua mente inquieta o faria continuar até que a encontrasse, para só relaxar quando tivesse certeza de que nada poderia machucá-la.
Mal sabia ele que o perigo real não era o que Cassandra enfrentaria, mas com o que os inimigos dela se deparariam.