O Invocador Sagrado - Capítulo 17
Cassandra estava muito irritada, como de costume. O motivo da vez era a sensação de estar perdida entre o nevoeiro e as árvores da floresta.
Segurar o machado nas costas lhe pareceu uma ideia um tanto inútil, já que não tinha nenhum alvo para usá-lo.
— Justo quando eu queria usar uma arma pela primeira vez!
Mesmo com essas adversidades, continuava a caminhar, na menor esperança de achar um sinal que pudesse encontrar Roan. Arrastou o dedo no ar e abriu a janela de atributos.
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⌈ ⌉
· Nome ·
Cassandra
· Classe ·
Bárbaro
⠀· Nível ·
6
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༝ Força ༝
40
༝ Destreza ༝
23
༝ Guarda ༝
30
༝ Mágica ༝
1
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‹ Glifos Equipados ›
⧫ Glifo de Evolução Corporal.
⧫ Glifo de Sentidos Aguçados.
⧫ Glifo de Defesa sem Armadura.
⧫ Glifo de Aura Intimidadora.
⧫ Glifo de Fúria.
⌊ ⌋
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⌈ ⌉
Glifo de Sentidos Aguçados
Rank — E
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Os cinco sentidos físicos do usuário são
amplificados além da capacidade normal.
O usuário demonstrará alguns traços
animais se o glifo estiver ativo.
⌊ ⌋
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“Tsc, eu posso até ter ganho essas habilidades no covil há duas semanas atrás, mas até agora não pude utilizar nenhuma vez…”
Suspirou e pôs uma das mãos nas pálpebras para conter uma raiva gigante. Pior ainda era imaginar que quanto mais demorava naquele labirinto, maiores eram as chances de seu amigo estar passando por um tipo de tortura.
Estremeceu ao lembrar de um grito assustador que escutou dentro do covil. Ter que repetir a mesma cena novamente estava fora de seus planos, seu coração perdia as forças ao tentar se manter diante da memória daquele traumático som.
Bateu nas próprias bochechas e cerrou os punhos, precisava focar em descobrir uma pista da qual pudesse levá-la diretamente ao inimigo. Então, captou algo que teria passado despercebido se não tivesse parado.
Eram pegadas na terra molhada, profundas e de um diâmetro considerável. Ao usar sua própria mão como medida, calculou que a pegada era cerca de quatro vezes maior. Porém, mais estranho eram os outros rastros ao redor.
As gramíneas possuíam tons vermelho-escuro distribuídos de maneira irregular e sem padrão. Além disso, fragmentos de um metal preto estavam espalhados pelo chão, um deles inclusive se encaixava no pedaço restante do gume do machado.
— Deve ter sido aqui que aquele elfo e o demônio brigaram — concluiu, baseado nas pistas do lugar. — Ele não seguiu o elfo, se tivesse, eu o teria visto no caminho… Para onde o demônio foi depois disso?
A investigação a levou a uma série de sinais de destruição, como árvores derrubadas e marcas de garras nos troncos. Um arrepio tomou conta dela ao notar que a trilha ficava menos enevoada conforme seguia os rastros.
Era um alívio sair do nevoeiro labiríntico, mas também podia significar que se aproximava muito rápido do tal Demônio da Névoa. Assim que seu campo de visão clareou, Cassandra teve que conter os medos que se guardavam em seu peito.
— Oh, Deus…
Uma enorme fenda se alargava à sua frente em meio às dezenas de árvores. A profundidade da fenda era imensa, tanto que era possível enxergar cachoeiras nas paredes de pedra e lagoas no fundo.
Engoliu seco, pela primeira vez estava de frente a um desafio muito acima de seu nível. Felizmente, existia um caminho que poderia pegar para descer a fenda, e logo seus pés tremeram por ter colocado um pé nesse caminho.
Mexia-se encostada na parede; olhar para o abismo ao lado precisava de um esforço colossal para ser feito. Quando tentava, imediatamente voltava a encostar a face na parede.
Foi necessária uma grande força de vontade para superar o medo; por sorte, Cassandra estava mais determinada a seguir em frente para resgatar alguém.
No final do trajeto, um arco rochoso dividia a estrada de pedras e um corredor escuro, onde na distância uma pequena luz azul brilhava.
“A parte difícil já passou. Coragem, mulher!”
Cassandra retirou o machado das costas, estufou o peito e ergueu o queixo para adentrar a esquisita catacumba.
Correntes de vento invadiram seu coração, um tremor sacudiu as pernas e um vulto sombrio passou pela tocha azulada.
— Ei, calminha aí, pilantra!
A mulher acelerou o passo, dobrou no corredor em que a sombra tinha ido e se deparou com um muro sólido erguido.
Balançou a cabeça de cima a baixo, o vulto não estava estirado no teto e nem nas paredes. Cassandra então levantou o machado e bateu contra a parede. Como era de se esperar, o choque fez o gume da arma trincar ainda mais.
— Porra, eu pensei que ia ser que nem no covil…
Para piorar a situação, o corredor tinha desaparecido de vista. Deu um pulo de susto contra a parede, seu cotovelo afundou um dos tijolos, cliques metálicos soaram do lado de fora e o chão se abriu.
Em gritos e uma choradeira sem fim, Cassandra deslizou por um longo tobogã, até ser despejada para o lado de fora por um jato d’água e cair de bunda no chão.
Abraçou o machado, chocada demais para reagir. Ela estava de volta à frente da floresta.
— Não, não, não!
Ergueu-se do chão e fugiu dali, olhando para trás a todo instante, como se sentisse que algo a seguia.
Eis que, no meio da pressa, esbarrou-se em alguma coisa. Ela olhou para frente de novo, seus cabelos arrepiados e o coração a mil.
— Aí, aí… — reclamou o sujeito, que era magricela e de olhos de peixe morto. — Que que você tem hoje, Cass…?
Os olhos dela se esticaram, um pulo repentino para cima daquele homem foi mais que necessário para dizer que uma peça estava fora do lugar. Recebeu carícias de Roan, um cafuné no cabelo.
— Você tá bem? — perguntou ele. — Se machucou?
— Tô sim…
— Senhorita Cassandra, ficamos preocupados… — comentou Ravi, agachando-se ao lado dos dois. — Bem, o senhor Roan mais ainda…
— Sim, sim, te procuramos por toda parte. Por que você tava aqui?
— E-eu… — A mulher repentinamente encolheu e suas bochechas coraram feito tomates. — Eu tava te procurando…
— Me procurando?
— Argh! — Ela se levantou com um pulinho e virou o rosto para o lado. — Você tinha sumido, eu pensei que te sequestraram!
— Tá, tá, isso foi culpa minha… — Roan meneou a cabeça, até dar o último prego no caixão. — Mas sair da vila sem nem ter certeza disso foi imprudente. Imagina se algo te atacasse quando não estivesse vendo!
— Ma-mas aquele cara ta-tava todo ensanguentado! — Abanou as mãozinhas para o alto. — Não tinha como pensar em outra coisa.
— Cara ensanguentado…?
— Permita-me explicar, senhor Roan — interviu Ravi, mesmo sabendo que não deveria meter o dedo na discussão. — Mais cedo fomos lhe procurar. Acabou que algumas pessoas disseram ver uma pessoa semelhante à você nas redondezas. Saímos para procurar, só que nos deparamos com uma pessoa ensanguentada e ela disse “o demônio da névoa está vindo”. O resto deve dar pra imaginar…
— Isso, isso! — Cassandra bufou e concordou plenamente com a explicação. — Aí eu vim parar aqui e descobri que tem… um bicho e um negócio lá embaixo.
Apontou para a ravina com a cabeça, seus músculos se recusaram a se mexer naquela direção. O semblante analítico de Roan então mudou, as sobrancelhas se arquearam e a voz desapareceu.
Ele comandou a raposinha esverdeada para ir na frente e farejar o que estivesse por ali. Além disso, sua expressão sempre dava sinais de curiosidade, o que Cassandra estava morta de acostumada a saber.
Para impedir que fosse além, segurou-o pelo braço. O amigo girou na direção dela e uma troca franca de olhares sinalizou um detalhe oculto.
— O que foi? Eu só vou olhar se não tem nada e vamos embora.
— É-é alto…
— Certo… Ravi, pode ir até lá com sua habilidade de Furtividade?
— Pra já! — O menino sumiu de vista tão rápido quanto as interrompidas na conversa.
A loira abaixou a cabeça e mordiscou a língua para segurar toda aquela vergonha monstruosa. O problema era o fitar afiado de Roan, que parecia nunca perder uma mísera minuciosidade.
Dava bastante raiva, mas tinha que aguentar. Suspirou, enfim desistindo de segurar a verdade.
— Eu… ainda tô pensando naquele negócio do covil. — Abaixou o queixo, escondendo os olhos pela franja loira. — Tenho pensado nisso desde que aconteceu. Fiquei prestes a surtar quando você sumiu, então me apressei pra vir pra cá e…
— Já passou, Cass. Não chore. — Roan limpou as lágrimas que escorregavam pelos olhos dela. — Eu estou bem, aquilo já é passado. Fiquei mais preocupado foi contigo, você sempre se mete em confusão…
A mulher riu entre soluços, abraçou-o e apertou tão forte que houveram estalos baixinhos. Mesmo que uma vergonha batesse na porta de sua consciência, uma ousadia para afundar o rosto no peito dele surgiu e a guiou por aquele curto momento sentimental.
“Você é sempre um péssimo mentiroso…”, pensou, tentando se convencer das palavras de Roan. “Mas eu não ligo, vou crer no que diz.”
— A-ah! — O rosto do amigo tinha começado a ficar roxo e ela o soltou. — Desculpa!
— Cof… tá tudo bem… cof cof. — Apoiou as mãos nos joelhos, enquanto ofegava para recompor ar.
Foi difícil para Cassandra não rir, uma mordida na bochecha conteve o instinto; era incrível como sua tristeza sumiu perto daquele pateta profissional.
Então, em meio aos seus devaneios, Ravi retornou junto da raposa verde. Ao invés da roupa estilosa vermelha, vestia o conjunto de peças escuras. Se não fosse pela brasa acendida na ponta do capuz, estaria tudo bem vê-lo assim.
— O-o que diabos aconteceu com você…? — indagou a loira, de sobrancelha arqueada.
— Essa coisinha acionou algumas armadilhas no caminho… — Ravi virou a cabeça na direção da raposa, porém não conseguia sentir ódio por conta da fofura. — Mas deu tudo certo, eu descobri o que era o vulto e também onde o possível “dono” desse lugar está.
— Sério? E quem são?
— O vulto, pelo que consegui captar, devia ser um tigre azul bem grande. — Gesticulou os dedos, tentando replicar o tamanho da criatura. — Depois de segui-lo por um tempo, chegamos a uma câmara cheia de água e com uma cachoeira. Lá tinha esse outro cara, um homem mascarado de túnica azul e cetro. Parecia até uma fantasia de mago, não vou mentir.
— Então é como suspeitei — comentou Roan, inclinando os olhos na direção da entrada da dungeon. — Pode ser tudo um mal-entendido. Há pessoas querendo invadir a moradia dele e ele só está se defendendo.
— Mas tem rumores de pessoas sumindo, devíamos investigar — retrucou Cassandra, que se arrependeu no momento seguinte ao lembrar da altura. — Que-quer dizer, não somos obrigados… podemos voltar outro di-dia, né?
Uma pena que as opiniões e olhares de seus dois aliados discordavam até demais dessa ideia muito sugestiva.
Ela foi atacada por uma reprovação espontânea e logo se encolheu de sofrer mais do que um mero olhar feio.
— Entraremos, mas ficarei do seu lado caso algo aconteça — reforçou o homem, cruzando os braços. — Ravi, pode guiar o caminho?
— Claro… aliás, agora que lembrei. — O rapaz estalou os dedos para tomar a atenção dos dois e piscou um dos olhos. — Dessa vez tenho certeza que não vamos nos separar de novo, sabotei todas as armadilhas que fariam isso. Vamos lá!
Cassandra viu as costas de Ravi dispararem na direção da entrada daquela masmorra. Suspeitava o porquê de tanta animação, pois só lembrava de pura escuridão e do tobogã de água.
Sem prestar atenção, sua mão foi agarrada por Roan, que a puxou para lá. Ficou apoiada nele, evitando observar o abismo profundo que pairava na beirada da descida.
Agradeceu por ter uma parede magricela ao lado, mal teve como descrever o alívio de estar longe daquilo.
Outra vez ficou na frente da entrada da masmorra, o interior permanecia iluminado pela fagulha espectral na extremidade do corredor.
A mulher esticou os olhos para dentro, mesmo que não enxergasse nada. Notou que Ravi mantinha um dos dedos próximo aos lábios e usava a esquerda para apontar na direção do fogo.
Seguiram devagar, os passinhos sequer ecoavam por ali. Por conta da série de sinais e gestos, foi fácil se locomover pelo labirinto de brasas, exceto por algumas armadilhas ativadas por acidente, como serras giratórias e uma estátua que lançava chamas.
Enfim, após alguns altos e baixos e um caminho desnecessariamente longo — que talvez tenha ocasionalmente causado raiva a uma certa baixinha. — eles chegaram na bendita sala.
O terreno se assemelhava a uma gruta, com uma longa escadaria que levava ao piso de pedra e janelas naturais nas grandes paredes de rocha, que por sua vez eram camufladas por cachoeiras, criando um efeito de um arco-íris que cobria o teto em uma linha reta.
Cassandra não deixou de ficar maravilhada, pois era quase um cenário romântico, quase.
Um altar circular se erguia no centro da câmara, iluminado por um raio azul que lançava um fluxo de energia azul.
Receosa do que poderia ser aquilo, puxou o machado das costas, até sentir um arrepio na espinha. Tinha alguma coisa ali, parecia um ser grande e corpulento pelas batidas no chão.
— Atrás!
O tempo de reação foi curto, o machado rodopiou para trás e bateu direto no pelo duro de um grande tigre azul, que conseguiu arremessar os três do topo da escadaria.
— Aí, minhas costas… — reclamou, voltando a ficar de pé e observar o felino dali debaixo. — Gatinho arrombado, vou arrancar teus couro até virar tapete!
— Péssima hora para fazer piada, Cass… — Roan encostou as costas nas dela, com as mãos postas num cajado metálico. — O pior de tudo é esse cara… Posso contar contigo pra lidar com o grandalhão?
Ela observou por cima do ombro do amigo. Viu um homem de túnica e chapéu ciano, escondido por uma máscara cheia de espinhos nas laterais e que carregava um pedaço de madeira retorcido por onde corriam linhas brancas.
— É o jeito, né… — Abriu um sorriso, enfim disposta para uma ação de verdade. — E também, temos duas cartas na manga. Bora pra cima desses filhas da puta!